Tudo para o agronegócio, mas o agro não é tudo
O mantra é assim: os novos instrumentos financeiros democratizarão
o acesso a recursos pela agricultura e pecuária no Brasil e o
agronegócio dependerá menos do dinheiro público. Esse discurso é repetido no
parlamento, em lives, debates, aulas de coaches financeiros: todas as vezes que
o crédito para o agro é abordado. Foi uma das bases de argumentação para a
aprovação das novas Leis do Agro (13.986/20 e 14.421/2022) e do Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais, o Fiagro)
(14.130/2021) – leis que estruturam instrumentos do mercado financeiro
lastreados em dívidas, produção e terras no Brasil.
Só que não é verdade. O agronegócio sempre dependeu
e vai depender de recursos públicos. “O crédito é um fator de produção tão
relevante quanto a terra, o fertilizante ou a máquina agrícola. Dessa maneira,
seria impensável a expansão do Agro brasileiro
sem a política de crédito rural que norteou a política agrícola nacional”,
afirma a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) em “O Futuro é Agro – 2018-2030”, um “Plano de Estado”, apresentado aos
candidatos à presidência em 2018.
No Plano Safra 2023/2024, R$ 364,22 bilhões, 26,8%
a mais que o Plano Safra de 2022/2023, são
direcionados para a atividade. Desses, R$ 186,4 bilhões (+31,2%) têm taxas
controladas e R$ 101,5 bilhões (+26,1%) apresentam taxas equalizadas, ou seja,
subsidiadas. Sem contar recursos para obras de infraestrutura como a Ferrogrão, uma Embrapa dedicada a seus
interesses, bilhões que ainda devem ser anunciados para o seguro rural, isenção
de imposto de renda nas aplicações em títulos financeiros do agronegócio,
isenção de imposto de exportação com a Lei Kandir e perdões periódicos de dívidas do agronegócio.
Esses recursos são deixados de fora da conta quando
os empresários falam em “subsídios ao agro”. E são pagos por toda a população
do país. Agora mesmo, o relator da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), reduziu mais
a alíquota do Imposto sobre Valor Agregado (IVA)
sobre produtores agropecuários, por pressão da bancada ruralista. Com isso, a
alíquota para os produtos agropecuários e da cesta básica será de 40% do total
da alíquota padrão (que será definida no futuro, na regulamentação da reforma).
Antes, o relatório já previa redução de 50% em relação à alíquota geral, mas
acharam insuficiente.
O crescimento explosivo de aplicações em instrumentos financeiros do agro – e portanto de
recursos que o mercado financeiro aplica
no agronegócio –
significa que o setor empresarial tem mais alternativas para captar recursos
privados.
Não significa uma democratização no acesso a crédito porque este dinheiro é para grandes grupos
ou para seus parceiros. E democratização,
no sentido que o agronegócio usa,
é algo relativo. Não há um número maior de produtores com acesso ao dinheiro,
mas sim o turbinamento do modelo de produção que esses mecanismos reproduzem:
commodities para exportação, monocultura, uso intensivo de maquinário, agrotóxicos, transgênicos.
Com exploração da mão-de-obra e uma gigantesca especulação em torno da valorização das terras
agricultáveis no Brasil.
“O Agro é tudo”, diz a propaganda. “Tudo é agro”,
reclamam os ruralistas em junho de 2023, para atacar a decisão do governo
federal de lançar dois Planos Safra 2023/2024: um para a
agricultura corporativa e outro para a agricultura familiar.
Há um conceito para os atos de fala ou de linguagem
que, além de expressar algo, também são uma ação. É o conceito de “performativo”,
que vem de performance: executar, fazer. Neste caso, a comunicação do
agronegócio e de seus representantes expressa e realiza, a todo momento, o que
ele é: monocultura e destruição da diversidade. Mesmo quando outros segmentos
da agricultura brasileira tentam acessar crédito nessas regras inventadas por
eles.
Em 2020, quando foi sancionada a nova Lei do Agro,
para ampliar o uso de mecanismos financeiros privados, o crédito para a
agricultura familiar havia secado. O governo Michel Temer havia acabado com
o Ministério do Desenvolvimento Agrário, e
políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) passaram
por anos de desmantelamento, agravados por Jair Bolsonaro.
Em 2021, sete cooperativas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
– e que precisavam de recursos para beneficiar sua produção – decidiram usar um
dos instrumentos financeiros de mercado, os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA). Aí se viu que “o agro é tudo” – menos o MST.
“Era uma operação micro, R$ 17,5 milhões, mas
incomodou muita gente. O agronegócio tentou barrar de todas as formas”,
recorda João Pacífico,
fundador da securitizadora que fez a emissão do CRA, a Gaia
Securitizadora. A Comissão
de Valores Mobiliários (CVM) suspendeu por 30 dias a oferta, depois
de sua divulgação, e determinou que as cooperativas colocassem explicitamente,
no prospecto, que parte de seus associados se identificavam com o MST.
Está lá, na página 184, na descrição dos devedores
da oferta. “São cooperativas agropecuárias; seus sócios proprietários
(cooperados) são agricultores familiares, os imóveis agrícolas onde atuam,
estão sediados em assentamentos da Reforma
Agrária regulamentados pela Lei
8.629. Parte dessas
famílias, as quais constituem e prestam serviços às Cooperativas, se identificam com
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos diversos movimentos sociais no país que buscam a
implementação da reforma agrária no Brasil.”
O Joio e O Trigo desafia os leitores a encontrar outro prospecto de CRA que registre a atuação
política dos devedores. Ou seu time de futebol. “Algum desses cooperados, com
certeza, torce pelo Palmeiras.
Mas isso ninguém perguntou”, ironiza Luís
Costa, gerente do Finapop,
organização criada em 2020 para buscar financiamento e crédito a organizações
de famílias assentadas, e que participou da estruturação do CRA.
A suspensão determinada pela CVM e a ordem de explicitar a
relação entre cooperativas e MST foi
somente um dos obstáculos que a operação superou. Para serem realizadas, as
emissões de CRA precisam
de um conjunto de atores ligados ao mercado: a securitizadora (organiza o
processo, é a responsável primeira linha), o coordenador líder (corretora onde
o investidor abre a conta, aporta o dinheiro, onde o título é oferecido), o
agente fiduciário (olha para a operação e confirma garantias previstas), o
custodiante registrador (cuida de regulamentos, registros, registro na CVM), o agente liquidante (fecha a
operação).
Pelo menos um deles recebeu ligações de clientes do
agronegócio, na noite anterior ao lançamento público da oferta, avisando que
“se trabalhar para o MST, tiramos
o dinheiro daí”. Pelo menos um deles nunca mais aceitou fazer um CRA ou outro tipo de emissão com
cooperativas que tenham, entre seus associados, participantes do MST.
Alguns escritórios de advocacia se recusaram a
trabalhar na operação. Os organizadores receberam – e não seguiram – a
orientação de cancelar a live de apresentação, divulgada somente para quem
tinha manifestado interesse nela. Luís,
gerente do Finapop, ainda
hoje não cita nomes das empresas ou pessoas que agiram dessa maneira. Conta o caso
para falar das questões estruturais que impedem atores fora do modelito do
agronegócio de terem acesso a crédito adequado.
Concluído o processo, Pacífico publicou um texto. “Chorei por causa do MST”. A operação foi um sucesso,
ele se recorda. “O MST foi
para a B3 dentro da regra de governança mais exigente, a de ofertas para o
varejo. Sete cooperativas passaram no escrutínio. Aí fica difícil falar mal dos
caras”, avalia.
No meio da conversa, lembra-se de outro detalhe: o
do jornalista inconformado com os juros oferecidos (5,5% ao ano), taxa mais
baixa que a do mercado. “Mas então os investidores perderam dinheiro!”,
reclamou o repórter. “Só que os investidores estavam dispostos a trazer um
impacto positivo ao mundo. Ninguém precifica as externalidades negativas dos
investimentos. Poluição, desigualdade, ninguém olha. Investir a
5,5% ao ano ajudou o agricultor familiar, aumentou a renda dessas pessoas,
levou recursos para a agroecologia. Melhor do que ganhar 10% investindo em
termoelétricas”, responde Pacífico,
de novo, ainda, em 2023.
A Gaia
Impacto, que João Pacífico mantém
depois de ter vendido a parte de investimentos tradicionais de seu negócio,
segue captando recursos para cooperativas da agricultura familiar, populações
tradicionais e cooperativas de assentados da reforma agrária. O Finapop se transformou em
empresa em 2022 e continua em atuação, articulando 150 cooperativas e
associações.
O prospecto de outro CRA, de 2023, cita o MST.
Mas não porque vá investir em assentados. Pelo contrário. É o da 207ª emissão
da Ecoagro, realizada para
a Usina Coruripe Açúcar e Álcool, de R$ 106
milhões. O movimento aparece na parte dos “riscos”: “As terras da Devedora e/ou
de seus fornecedores podem ser invadidas pelo Movimento dos Sem Terra. A
capacidade de produção da Devedora e de seus fornecedores pode ser afetada no
caso de invasão do Movimento dos
Sem Terra, o que pode impactar negativamente suas atividades e sua
capacidade de pagamento dos Direitos Creditórios do Agronegócio e
por sua vez o pagamento dos CRA pela
Emissora.” A definição usada no mundo do agronegócio para algo assim – de novo
performativa e sempre atribuída a outrem – é “postura ideológica”.
O registro de questões ideológicas em um documento
de emissão de CRAs não é de hoje. Em 2013, em um prospecto da 52ª emissão
da Ecoagro para Produtores de Soja, sobrou até para a Comissão Pastoral da Terra. “Movimentos
sociais, como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Comissão Pastoral da Terra, são ativos no Brasil. Invasões e ocupações de terrenos agrícolas por grande
número de participantes desses movimentos são comuns e, em algumas áreas, os
proprietários não contam com a proteção efetiva da polícia nem com
procedimentos eficientes de reintegração
de posse. Não é possível assegurar que as propriedades envolvidas nos
contratos de parceria, arrendamento de terras, alienadas fiduciariamente, de
posse ou de propriedade do Devedor
dos Créditos, não estejam sujeitas à invasão ou ocupação por grupos
desse tipo.“
·
Trinta anos
O Plano
Safra 2023/2024 para
a Agricultura Familiar recebeu,
como o Plano Safra Empresarial,
um volume recorde de recursos. Mas vejam a desproporção: são R$ 71,6 bilhões,
enquanto o plano dos produtores de commodities é de R$ 364,22 bilhões.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar ter o próprio plano safra incomodou o agronegócio. E não se
discute o fato de o mercado ter cada vez mais alternativas de financiamento –
sem abrir mão dos recursos públicos –, enquanto os agricultores familiares
enfrentam obstáculos para receber sua cota.
“Não é apenas a vontade política e a
disponibilidade que garantem que esses recursos cheguem de fato para as
famílias que estão produzindo alimento saudável. No caso das famílias
assentadas da reforma agrária, o problema é a garantia real exigida pelos
bancos. Nossos assentados não têm propriedade da terra. A propriedade é
da União. Não haveria
problema com isso, desde que as famílias pudessem pagar os empréstimos com sua
própria produção. A gestão pública deveria subsidiar essa agricultura da
produção de alimentos”, constata Dirlete
Teresinha Dellazeri, da direção da Copran, cooperativa de Arapongas, no Paraná.
Um exemplo é o assentamento Santa Maria, em Paranacity (PR), que tem 234
hectares e foi criado em 1983. Somente depois de 30 anos de existência
conseguiu aprovar um projeto para receber empréstimo pelo Pronaf – Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. A Copavi, cooperativa do
assentamento, reúne 104 associados e é uma das sete cooperativas financiadas
pelo CRA do MST.
Jovens e mulheres são muito atuantes dentro da
cooperativa. Cristina Sturmer é
economista e faz parte da diretoria compartilhada. “Quando a gente foi
assentado, minha mãe, Claudete, não tinha terminado o segundo grau. Ela fez
parte da diretoria. A cooperativa tinha uma uma política de garantir que as
pessoas fizessem Supletivo, Ensino de Jovens e Adultos.
Então minha mãe terminou o Ensino
Médio e passou na universidade pública. Não terminou o curso, mas
fez dois anos de Serviço Social, já com 45 anos. Os mais novos sempre tiveram
incentivo para estudar. Temos veterinário, temos agrônomo”, ela conta.
Depois de duas gerações, uma delas formada pela
primeira vez em universidades, a Copavi conseguiu
recursos do Pronaf por
meio do Banco Regional de
Desenvolvimento do Extremo Sul. “Os bancos não veem a gente como
cliente, como prioridade. Dá muito trabalho, para eles, entender um
empreendimento diferente da maioria. Não é uma empresa. São agricultores e
agricultoras que querem produzir na terra de modo coletivo. Eles não veem isso
como rentável, veem somente como um risco. Não existe esse processo de
democratização de acesso a crédito adequado”, explica Cristina.
O primeiro obstáculo é a exigência de garantia real
– a terra. Assentados da reforma agrária não têm títulos individuais de terras
e, mesmo que tivessem, explicam Cristina e Luís, não querem dar algo que tanto
custou conquistar, onde vivem e produzem, em garantia de empréstimos.
Para esses agricultores, a terra não é um
patrimônio, um ativo. É a forma de produzir e reproduzir a vida. No caso do MST, o lastro do CRA foram Cédulas do Produto Rural Financeiras (CPR-F)
e as garantias adicionais foram a produção das cooperativas (arroz em casca, soja, leite UHT, leite em pó, milho e açúcar mascavo) e recebíveis de
contratos de fornecimento de alimentos saudáveis para prefeituras.
Outro obstáculo é que o que a agricultura familiar
produz e a maneira como produz não cabem no formato de projetos com os quais os
bancos gostam de lidar. “Os pacotes dos bancos são direcionados para aquele
modelão de produção: adubo químico, veneno, vaca e trator”, conta Luís Costa, do Finapop.
“As empresas que vendem insumos têm agrônomos ou
técnicos agrícolas que dão assistência para as famílias. Montam o pacote que
elas precisam para ir ao banco pegar recursos e esses recursos vão direto para
pagar o fornecedor de insumos. Aí chega um agricultor da agroecologia querendo
comprar adubo orgânico, semente. Mesmo com o Pronaf Agroecologia foi difícil aprovar
projetos. Os bancos perguntavam como iriam fiscalizar sementes orgânicas que,
dependendo de onde são obtidas, sequer têm nota de origem.”
Os indicadores usados para fazer a análise dos
projetos também não são adequados. Desconsideram diferenças entre as regiões do
país, outras formas de organizar a produção e externalidades positivas, como
conta Cristina.
“Quando a gente usou crédito para modificar a
estrutura de moagem de nosso engenho, aumentou a extração de caldo. Geramos
mais produtos para vender. É um indicador econômico. Mas a gente agora
consegue, também, secar o bagaço da cana e queimar na caldeira. Diminuímos o
consumo de lenha. O maior efeito não é econômico: a gente está formando uma
estrutura quase sustentável do ponto de vista da energia. E isso não entra no
indicador.”
A Copavi consegue
lidar com a complexidade de documentos e enorme burocracia porque formou, no assentamento,
pessoas que sabem fazer isso. Não é a regra entre pequenos agricultores.
“Pessoas que estão lidando nesses empreendimentos às vezes não têm condição de
compreender, de preencher a papelada. É uma burocracia significativa para um
recurso que às vezes é pequeno, e isso barra as pessoas no primeiro momento”,
constata Cristina.
E, para quem consegue superar esta fase, muitas
vezes a resposta é “não”. Não fosse a disposição do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul de realizar parceria com a Copavi, não haveria financiamento. “Apresentamos um documento de
50 páginas, um dossiê de nossa história, de como estão nossos processos
produtivos, o que projetamos para os próximos anos e onde esse crédito
entraria. Enviamos documentos da diretoria e da cooperativa. Não foi um
processo longo mas foi trabalhoso. E se efetivou”, celebra.
“Os bancos não veem a gente como cliente, como
prioridade. Dá muito trabalho, para eles, entender um empreendimento diferente
da maioria. Não é uma empresa. São agricultores e agricultoras que querem
produzir na terra de modo coletivo. Eles não veem isso como rentável, veem
somente como um risco. Não existe esse processo de democratização de acesso a
crédito adequado”
A Copavi decidiu, no ano 2000, tornar agroecológica
toda sua produção. São 500 toneladas de derivados de cana (melado, açúcar
mascavo e cachaça), 75 mil litros de leite orgânico certificado, iogurte,
queijo e 45 toneladas de hortifrutis por ano. Seus produtos são orgânicos,
certificados pela Rede Ecovida de Agroecologia, e a linha de
derivados de cana possui certificação para a exportação para União Europeia fornecida
pela Associação de Certificação Instituto Biodinâmico.
No início de 2023, com outras cooperativas do Paraná, a Copavi fez um Plano
de Desenvolvimento, como uma forma de pressionar os governos por mais
políticas públicas. “Nossa necessidade não é apenas o crédito direto, mas
também investimento em estradas rurais, captação e aproveitamento de água. Este
plano engloba infraestrutura, que é uma dívida histórica do Estado brasileiro com as
populações rurais. Investimentos em habitação, saneamento básico no campo”,
conta.
A demanda de investimentos de longo prazo é de R$
25 milhões. “Com infraestrutura de energia solar, captação e aproveitamento de
água nas indústrias, saneamento básico, estrada, nosso projeto de laticínio”,
enumera Cristina.
Para o curto prazo seriam necessários R$ 7,5
milhões. “Capital de giro, a estrutura do laticínio de leite orgânico, a
reforma do canavial e o plano de reflorestamento para a área de 10 hectares que
selecionamos, no assentamento, para fazer parte do Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis e estamos revitalizando”,
continua Cristina. O crédito recebido pela Copavi via Pronaf foi
de R$ 800 mil.
Se bancos e assistência técnica rural não conseguem
enxergar a viabilidade e a importância de dar crédito da agricultura familiar a
uma cooperativa como essa, o que dizer de camponeses/as que fazem agroecologia em suas terras e quintais?
“Eles não consideram uma associação de mulheres
quilombolas um negócio. O que chamam de agricultura familiar é o agronegocinho – aquele mesmo pacote, mas de tamanho menor. E
em lugares privilegiados do ponto de vista estrutural nas regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste”, sintetiza Cristina,
explicando que mesmo parte dos recursos da agricultura familiar é capturada
pela cadeia do agronegócio.
Dirlete, da Copran, se lembra do tempo em que a
produção familiar era diferente. “Cresci no campo, vendo meu pai e minha mãe
plantarem feijão. Nunca vi nenhum dos dois com uma máquina de passar veneno.
Nós destruímos o ecossistema e temos que começar a recuperar. Não podemos
deixar como está para nossos filhos e netos porque não foi assim que recebemos
de nossos pais. Não precisa voltar naquela época, mas precisa de uma tecnologia
adequada para hoje. A ciência evoluiu e nós evoluímos como humanidade.”
A lógica do Pronaf é a mesma da agricultura
empresarial: limitar o incentivo à produção de determinadas e poucas espécies
alimentares. E a produção agroecológica é feita com biodiversidade, manejo
combinado de alimentos, cultivo de floresta. Os bancos
tampouco consideram o tempo de trabalho que tem de ser aplicado nesta produção.
Quando uma camponesa recebe crédito para criar galinhas, os recursos passam de
imediato para o fornecedor de insumos. De que ela vai viver enquanto as
galinhas não estão botando ovos?
Enquanto colhia café catado – quando se pega
somente o grão que já madurou, está docinho – com uma quilombola no Vale do Ribeira, Miriam Nobre, da Sempreviva Organização Feminista,
ouviu este relato de como a vida é.
A camponesa tinha dificuldade de fechar a mão por
causa de um acidente de trabalho, um machucado com o facão que prejudicou seu
tendão. Trabalhava no pedágio e, quando voltava, corria para fazer as coisas da
roça e da casa antes de as crianças chegarem da escola. Na pressa das muitas
coisas por fazer, se feriu.
O trabalho no pedágio foi a solução para pagar um
empréstimo para plantar pupunha orgânica. O pupunhal fracassou: foi destruído
por um fogo que o vizinho ateou em sua roça.
·
Há produção
De acordo com o Censo Agropecuário 2017, 1,6 milhão de
agricultores e agricultoras produzem principalmente para o autoconsumo. “Além
de ser diversa, esta produção é grande”, conta Sarah Luiza Moreira, militante da Marcha Mundial das Mulheres e do GT Mulheres da Articulação
Nacional de Agroecologia (ANA). As Cadernetas Agroecológicas, em que mulheres do campo por todo o
país anotam o que plantam, o que colhem e quem consome, mostram um volume
importante de valores não contabilizados como produção.
“É uma produção invisível porque não é direcionada
para o mercado. Não gera dinheiro, gera vida. A produção para o autoconsumo é
feita geralmente por mulheres e gera alimentos saudáveis, sem veneno, em uma
lógica diversificada que preserva o ambiente ao mesmo tempo que garante a
alimentação das famílias e comunidades”, relata Sarah.
Essa produção cria segurança alimentar para as
famílias. Se não existisse, elas precisariam comprar mais alimentos. “Isso
precisa de apoio do Estado,
a partir de políticas públicas. Por isso, a nossa grande luta não é apenas por
crédito. As mulheres precisam de apoio para manter sua produção e não para
entrar em dívidas com bancos. Políticas públicas de acesso à
água, de reforma agrária, para fomento produtivo”, explica.
Dirlete cita, antes de responder às perguntas que lhe enviamos, números
que, insiste ela, precisam ser considerados na sua devida dimensão: a de
questionar onde, afinal, o país deseja investir uma parte tão importante de
seus recursos públicos.
“Em 2022, na agricultura familiar, tivemos apenas
14% da destinação dos créditos, enquanto o agronegócio teve 86%. Eles
concentram 76% das terras agricultáveis. A comida produzida para o povo
brasileiro foi 70% produzida pela agricultura camponesa. E 74% da mão de obra
do campo é da agricultura familiar. Os empresários do agronegócio criam um
campo sem gente”, enumera.
O agronegócio divulga que os recursos do Plano Safra correspondem a apenas
um terço de sua necessidade de expansão. Dirlete está olhando para a necessidade de ampliar a produção
de alimentos. Explica que dois programas importantes criados nos primeiros
governos Lula –
o Plano Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)
e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) –,
agora em processo de reconstrução, são importantes não apenas porque financiam
a agricultura familiar mas porque, ao fazê-lo, incentivam a diversificação da
produção.
“Ninguém vai plantar alface, pepino, abóbora,
beterraba, cenoura, melancia sem saber para quem vai vender. Incentivar a
produção diversificada é a coisa mais fundamental que o PAA e o PNAE têm, porque muitos pequenos
agricultores acabam plantando milho e soja porque têm certeza de que vão
vender”, alerta.
Ainda assim, planta-se comida. Na chamada aberta
este ano pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab),
para comprar R$ 300 milhões em alimentos, a agricultura familiar apresentou R$
1,1 bilhão em propostas. E isso porque há um limite: cada família só pode
vender R$ 15 mil por ano. De acordo com Edegar Pretto, presidente da Conab, foram recebidas propostas de 77 mil famílias e 77%
delas foram ofertadas por mulheres.
“Ninguém vai plantar alface, pepino, abóbora,
beterraba, cenoura, melancia sem saber para quem vai vender. Incentivar a
produção diversificada é a coisa mais fundamental que o PAA e o PNAE têm, porque muitos pequenos
agricultores acabam plantando milho e soja porque têm certeza de que vão
vender”, alerta.
“Nós produzimos muito mais! Muita gente ficou de fora, muita gente nem entrou.
A Copran tem um CNPJ e 1.045 famílias associadas.
A gente poderia, com o CNPJ,
apresentar um projeto de até R$ 1,5 milhão. É muito pouco, em um programa
importantíssimo. O povo está precisando comer e a oferta de R$ 1 bilhão mostra
que temos comida.”
Enquanto o agronegócio segue na guerra ideológica
para expandir seu modo de produção, pequenas agricultoras e agricultores
trabalham por políticas públicas que enxerguem a diversidade da população, da
produção e dos modos de produzir. “Não estamos pegando um recurso para comprar
uma caminhonete toda equipada ou para colher milhões de sacas de soja e milho.
Não estou dizendo que isso não é importante: estou dizendo que os recursos
públicos são nosso caixa comum, do povo brasileiro”. Dirlete está dizendo que o
agronegócio não é tudo.
Fonte: Por Patricia Cornils, para O Joio e o Trigo
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