Maria Firmina dos Reis: a literatura contra a colonização
A imagem da estátua de Borba Gato, no bairro de
Santo Amaro, em São Paulo, consumida pelas chamas ganhou as redes sociais e
provocou acaloradas discussões em 2021, inclusive entre os que estavam de
acordo com o passado criminoso do bandeirante. Enquanto uns defendem a ressignificação
da memória no espaço público ensejada pela ação, outros a desaprovam,
acreditando nas vias institucionais para a remoção do monumento. Não discordo
inteiramente destes últimos, pois precisamos lutar por instituições cada vez
mais fortes e que sirvam de proteção, em especial, para as minorias. No
entanto, é contra estas que as instituições, historicamente, no Brasil, atuam
até hoje. As milhões de pessoas escravizadas, violentadas e mortas, entre
negras e indígenas, sustentaram a colônia e o império brasileiros. O sistema
escravocrata foi abolido e o regime político mudou, mas o extermínio da
população negra e ameríndia não. Para uns é exceção, mas, em uma perspectiva
benjaminiana, para os que vivem nas aldeias e periferias deste país, é a regra.
A literatura, como instituição, também promove suas
exclusões, pois reflete e é refletida pela sociedade. Por isso, o resgate de
escritoras e escritores apagados de sua história é cada vez mais necessário,
não apenas porque precisam ser lembrados, mas também porque precisamos deles se
queremos romper com essa estrutura de manutenção de privilégios e
aprofundamento de desigualdades. Maria Firmina dos Reis foi uma escritora
negra. Nascida no Maranhão, em 1822, publicou seu primeiro livro em 1859,
Úrsula, tornando-se a primeira romancista brasileira. Seu nome ficou esquecido
por muito tempo, até ser recuperado em 1962, em um sebo no Rio de Janeiro.
Desde então, sua obra vem sendo reeditada e conhecida. Foi a homenageada da
FLIP de 2022. Mesmo assim, ainda é pouco. Nenhum esquecimento, na história ou
na literatura, é acidental, ainda mais se for de uma mulher, negra e escritora
latino-americana.
Ler a obra de Maria Firmina dos Reis nos oferece
novas perspectivas sobre a literatura e a sociedade brasileira do século XIX,
mas que, de certa maneira, ressoam nas estruturas mantidas até os dias atuais.
Embora seu romance tenha um papel fundamental na compreensão de sua obra e de
seu lugar na literatura brasileira oitocentista, é preciso destacar também a
relevância de suas narrativas curtas conhecidas até então, “A escrava” e
“Gupeva”. Em 2021, organizei uma antologia com essas duas histórias e alguns
poemas da autora no livro A escrava, editado pela Hedra.
O conto “A escrava” foi publicado na edição nº 3 da
Revista Maranhense, em novembro de 1887. Na atualidade, vem sendo incluído em
várias antologias sobre a autora e recebendo cada vez mais análises críticas.
Ao dar protagonismo à Joana, uma mulher negra, escravizada, Maria Firmina
reforça uma visão moderna da história, contada a partir dos oprimidos, dos que
lutaram e resistiram contra sua eliminação física e simbólica. A história
começa ambientada em “um salão onde se achavam reunidas muitas pessoas
distintas, e bem colocadas na sociedade”, que conversavam sobre assuntos “mais
ou menos interessantes”, até chegarem em uma temática “sobre o elemento
servil”. Depois de discutirem diversos pontos de vista, uma personagem
identificada apenas como “uma senhora” relata o encontro repentino que teve com
a escravizada Joana e seu filho Gabriel, depois de fugirem de seu algoz, o
senhor Tavares. Um dos momentos mais representativos da narrativa é quando
Joana toma as rédeas de sua própria história. Ao admitir desconhecer “esse
homem tão mau”, a senhora avisa que pedirá a Gabriel mais informações, mas
Joana intervém: “Eu mesma. Ainda posso falar.”
A escritora, filha de uma ex-escravizada liberta,
sabia da importância de dar voz àquelas que foram silenciadas, e ainda são,
pelo gênero e pela cor de sua pele, questão que também surge em alguns de seus
textos poéticos. Por isso, o conto não é apenas um relato sobre a escravidão,
mas, também, de resistência e liberdade, demonstrando, na esteira de outras
grandes personagens negras da nossa história, que não foi a assinatura de uma
princesa que, efetivamente, deu fim ao sistema perverso. Ele veio ao chão após
muita luta em diversas frentes. A literatura de Maria Firmina dos Reis estava
em uma delas, e ainda está, como tantas outras, até hoje.
Com a novela “Gupeva”, a escritora maranhense se
volta para o indianismo romântico, assim como o poema “Por ocasião da tomada de
Villeta e ocupação de Assunção”, em Cantos à beira-mar, mas, diferentemente de
alguns dos principais nomes do período, a aproximação entre o nativo e o
colonizador é questionada. Com o subtítulo “romance brasiliense”, a novela saiu
pela primeira vez, de forma incompleta, no semanário O Jardim das Maranhenses,
entre outubro de 1861 e janeiro de 1862. A versão completa e revista por Maria
Firmina foi publicada em dois periódicos pouco tempo depois, no jornal Porto
Livre, de fevereiro a maio de 1863, e em Eco da Juventude, de março a abril de
1865.
No lugar da idealização do indígena, a narrativa
aponta para a profunda violência envolvida na relação entre as duas culturas,
culminando na morte das principais personagens nativas. Assim como em sua
narrativa abolicionista, Maria Firmina confere protagonismo aos que foram
explorados em sua própria casa e destaca a repetição da violência sofrida entre
as gerações, exibindo o caráter estrutural e atroz da colonização. A novela
conta a história do indígena tupinambá Gupeva e da filha de sua esposa, Épica.
Com a morte da mulher logo após o parto, o indígena batiza a criança com o
mesmo nome da mãe e passa a cuidar dela como pai, mesmo não sendo o seu
genitor. A paixão de Épica, a filha, por Gastão, um marinheiro francês, faz
emergir um passado perverso e que traz trágicas consequências na vida de todos.
No fim, as relações entre a violência, a loucura e o colonialismo também
atravessam a narrativa indianista da escritora maranhense.
Além de tocar em temas cruciais, as narrativas
curtas de Maria Firmina dos Reis são bastante atuais na maneira como lidam com
o espaço e o tempo em sua composição, por meio de flashbacks, o que mostra a
sintonia da autora com o desenvolvimento da narrativa moderna. Neste sentido,
forma e conteúdo se entrelaçam, pois a escritora apresenta e discute problemas
resultantes de um passado de profunda violência e que, se não forem resgatados
e trabalhados pela memória, tendem a se perpetuar sem fim. Não por acaso, a
violência contra negros e indígenas persiste, e não apesar das instituições,
mas, principalmente, por causa delas. Por isso, precisamos de mais monumentos à
vida e obra de Maria Firmina dos Reis, para que não mais ergam nem lamentem o
fim dos monumentos da nossa barbárie.
Fonte: Por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves na coluna da
Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)
Nenhum comentário:
Postar um comentário