Milly Lacombe: Por que a direita não se reconhece como ideologia?
Marcio Pochmann é o presidente do Instituto Lula e
doutor em Ciência Econômica pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)
Comecemos com uma afirmação: quando alguém diz que
a escolha foi ideológica o que está sendo dito é que a escolha foi por alguém
do campo da esquerda.
São inúmeros os exemplos, mas falemos de Márcio
Pochmann, recém escolhido para comandar o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas.
O nome de Pochmann está despertando o que poderia
ser chamado, sem exageros, de desespero por uma parte da imprensa e da ala
neoliberal de analistas econômicos, uma ala que, diga-se, apoiou Paulo Guedes
mesmo depois de o governo Bolsonaro se revelar escancaradamente pelo que sempre
anunciou que seria: um governo de tendências nazifascistas.
Pochmann, eles gritam, é apontamento ideológico de
Lula.
Seria o caso de nos perguntarmos por que Lula,
presidente da nação, não poderia fazer um apontamento ideológico.
Paulo Guedes, ainda herói dos liberais, foi escolha
ideológica para a Economia.
Roberto Campos Neto foi escolha ideológica para o
Banco Central.
Mas aqui ainda navegamos por águas econômicas.
Saiamos delas.
Pazuello e Queiroga, ministros da saúde de Jair
Bolsonaro, foram escolhas ideológicas.
Estranhas não por serem ideológicas, mas por
estarem à frente de uma pasta da qual nada entendiam durante uma pandemia.
Por que a direita e a extrema-direita não se veem
como ideologias? Por que os liberais não se enxergam como ideológicos?
Por que Campos Neto nunca foi chamado de escolha
ideológica? Pelo contrário: para jornalistas de direita trata-se de escolha
técnica.
Não é preciso muito para ser nomeado como escolha
técnica: basta ter vindo do mercado, para onde, aliás, todos eles voltam ao
deixarem o governo.
Por que o comunismo é ideologia mas o capitalismo
não é?
Por que o colonialismo nunca é chamado de regime
ideológico mas o stalinismo sim?
Por que apenas jornalistas do campo da esquerda são
chamados de ideológicos e os da direita de vendem como técnicos?
Respondamos.
A direita não se vê como ideologia pois se entende
universal. É a ela que tudo se compara, como um carbono isótopo 12 do universo
político.
Ideologias universais se pretendem invisíveis por
serem hegemônicas. Mas não são. Pelo menos não mais.
Assim como a identidade do homem branco e
heterossexual se pretende invisível e universal. A ela todos nós devemos nos
comparar.
Identidade é isso aí que vocês são. Nós aqui somos
apenas a razão e o poder, eles dizem.
Qualquer crítica decente às pautas identitárias
deveria começar pela crítica a essa identidade dominante que se pretende
universal.
Marcio Pochmann, gostem ou não, é escolha técnica e
também ideológica.
Técnica porque seu currículo é irrepreensível:
doutor em ciências econômicas, professor da Unicamp, ex presidente da Fundação
Perseu Abramo, do IPEA e autor de dezenas de livros, entre eles “O Neocolonialismo
à Espreita” (recomendo), e vencedor do Jabuti pela obra “A década dos Mitos”,
de 2002.
E ideológica porque tudo na vida contém alguma
ideologia, e não há nada de errado com isso porque todas são.
A questão deveria ser de que ideologia estamos
falando.
No caso de Campos Neto, por exemplo, estamos
falando de uma ideologia neoliberal que não se acanha em apoiar o nazifascismo
bolsonarista e os interesses do mercado em detrimento dos sociais.
Uma ideologia mais moral do que econômica que
trabalha encolhendo o espaço público e alargando o privado.
Uma ideologia hegemônica que acha razoável dizer
que crianças vendendo bala na rua tiveram a vida melhorada pela criação do PIX.
No caso de Paulo Guedes, idem: era para ele
intolerável que trabalhadoras domésticas estivessem indo passear na Disney mas
absolutamente legítimo ministro da economia ter dinheiro em paraíso fiscal.
No caso de Pochmann, a ideologia é de esquerda e
social. Inclusiva e atenta aos mais vulneráveis.
Me parece um bom começo para liderar o IBGE que
Bolsonaro tentou esvaziar para depois destruir diante do silêncio da turma que
hoje acordou abruptamente para bradar sobre a importância do IBGE.
Todos somos mobilizados por alguma ideologia.
Políticos, economistas, empresários, donas-de-casa e jornalistas.
Ela tem impacto sobre nossa linguagem, sobre o que
escolhemos ler, o que escolhemos ver, o que escolhemos vestir e onde escolhemos
ir. Acreditar que existe qualquer ação que seja desprovida de ideologia é
inocência ou ignorância.
Já na política, apontar o dedo e berrar que a
escolha é ideológica é de duas uma: ou falta de capacidade de analisar
conjunturas (não assombra, então, que os mesmos que tenham deixado de ver o
nazifascismo em Bolsonaro sejam agora aqueles que berram que Pochman é escolha
ideológica) ou desonestidade intelectual.
A pergunta que deve ser feita é: qual ideologia é a
sua? Inclusiva ou excludente? Nazifascista ou democrática? Liberal ou social?
Ficam os questionamentos.
Ø Pochmann no IBGE: A ameaça
do desenvolvimento aos cultos do laissez-faire. Por David Deccache
A história nos ensina que cada mudança no
equilíbrio de poder ressoa profundamente nas estruturas ideológicas da
sociedade. A recente nomeação de Pochmann, um renomado desenvolvimentista com
viés socialista, para a presidência do IBGE não é exceção. Este movimento
provocou um embate com os economistas liberais, fervorosos guardiões de uma
ciência econômica supostamente “pura” e universal. Porém, mais do que um
conflito de ideias, este embate revela uma luta de classes subjacente no
coração do pensamento econômico.
Os liberais, fervorosos devotos do laissez-faire,
veem a economia como um sistema governado por leis naturais, comparáveis à
física. Eles defendem um mercado ideal, onde a intervenção estatal é
minimizada, refletindo os interesses da classe dominante que se beneficia de
tal ordem. Nesse contexto, a ascensão de Pochmann ao IBGE é percebida como uma
provocação, uma ameaça à hegemonia de sua “verdadeira ciência”.
Em contraste, os desenvolvimentistas, especialmente
os que dialogam com uma perspectiva socialista, enraizados na história e na
dinâmica das classes sociais, apresentam uma visão da economia que valoriza a
flexibilidade e a contextualização. Eles veem métodos estáticos como
ferramentas, não como fins em si mesmos.
Ao passo que os liberais representam os interesses
dos ricos e poderosos, os economistas desenvolvimentistas são os que defendem
as pretensões da maioria dos despossuídos, que há séculos são responsabilizados
pelos ortodoxos como culpados pela própria miséria e exploração que são
submetidos.
A tensão atual é mais do que um conflito acadêmico.
É um reflexo da contínua batalha pela hegemonia no pensamento econômico, onde
diferentes classes lutam para moldar a “verdade” econômica à sua imagem. Essas
“verdades” são construções sociais, profundamente sensíveis à correlação de
forças existente em cada período.
A economia, ao contrário das ciências exatas, não
opera em um vácuo. Está intrinsecamente entrelaçada com as nuances da sociedade
e da política. É luta de classes.
A atual agitação, alimentada pela nomeação de
Pochmann, é um reflexo desta luta contínua. Assim, a única certeza é que a
“verdade” de hoje pode ser questionada e transformada amanhã, conforme a
dialética histórica das classes se desenrola.
E aqui nos encontramos, à beira de um novo capítulo
na história econômica. Em meio a essa luta, lembramos que a verdadeira natureza
do pensamento econômico não reside em fórmulas estáticas, mas na compreensão
das forças vivas e conflitantes que o moldam.
A nomeação de Pochmann, para nós, preocupados com
as profundas desigualdades sociais, é uma oportunidade de trazer as
complexidades e os desafios das lutas de classes para o centro do debate
econômico.
Portanto, como Marx nos ensinou, o barulho da luta
de classes ressoa até nas batalhas diárias mais sutis, como a nomeação de
Pochmann. Este evento aparentemente insignificante se transforma em uma batalha
no campo das ideias, uma luta pelo futuro da economia.
Como sempre, a história estará encarregada de
julgar quem estava no lado certo do campo de batalha.
Ø FCE/UFRGS: Nota em solidariedade ao professor Marcio Pochmann
A Direção da Faculdade de Ciências Econômicas da
UFRGS e os ex-diretores em atividade no Departamento de Economia e Relações
Internacionais vêm, por meio desta nota, registrar sua mais elevada
consideração e respeito ao Prof. Dr. Marcio Pochmann, economista graduado em
nossa instituição no ano de 1984, cuja trajetória acadêmica e profissional é
amplamente reconhecida.
Sua recente indicação para presidir o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) suscitou debates públicos que
questionam sua capacidade técnica e idoneidade para o exercício de funções
públicas. As críticas sugerem que o Dr. Pochmann carece de predicados técnicos
devido à sua formação teórica e à sua atuação acadêmica, ambas caracterizadas
pela ênfase na crítica a determinadas correntes de pensamento existentes dentro
da área da Economia. Esta, por sua vez, caracteriza-se pela pluralidade de
tradições teóricas, metodológicas, epistemológicas e ontológicas. Se, para
algumas pessoas, esta característica é um problema, para a FCE ela é uma
virtude.
Nossa Faculdade entende que a pluralidade e a
liberdade acadêmica são essenciais para garantir a boa formação dos futuros
profissionais que atuam em nossas áreas de competência. Valorizamos o
contraditório e os debates respeitosos, que devem permear aspectos objetivos
dos temas em tela e não idiossincrasias pessoais.
A Economia, como outras áreas do conhecimento, é
rica por ser diversa. A FCE reconhece isso e tem como um dos seus valores a
defesa da pluralidade. Nosso Portal registra o que segue: “entendemos que
existem diversas abordagens para a compreensão de sistemas econômicos.
Aceitamos e defendemos a pluralidade de ideias e métodos, compreendendo que
essas diferenças se complementam e estimulam a busca da excelência acadêmica.”
O Prof. Dr. Marcio Pochmann foi formado neste
ambiente. Reconhecemos nele um profissional competente, cujos serviços
prestados à academia e à gestão pública merecem o nosso mais elevado respeito.
Desejamos a ele sorte e sucesso em todas as suas atividades profissionais.
Ansiamos pelo dia em que o Brasil retome um
ambiente mais civilizado no debate público, onde as pessoas sejam avaliadas
pelo que são capazes de contribuir para com a sociedade, independentemente de
suas posições ideológicas e políticas, sempre que estas se encontrem nos marcos
da legalidade e da democracia.
Maria de Lurdes Furno da Silva – diretora
André Moreira Cunha – vice-diretor
Carlos Henrique Vasconcellos Horn – diretor,
2016-2020
Helio Henkin – diretor, 2008-2016
Ø Reitoria e Instituto de Economia da Unicamp manifestam apoio a Márcio
Pochmann
Reitoria da Unicamp e a direção de seu Instituto de
Economia (IE) vêm a público cumprimentar o professor Márcio Pochmann, titular
aposentado e colaborador dessa instituição, pela sua indicação à presidência do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Reiteramos aqui o respeito e o reconhecimento pela
trajetória acadêmica e política de nosso colega e lamentamos profundamente as
tentativas de desqualificação a que tem sido submetido nos últimos dias. Essas,
em grande parte das vezes, envolvem o IE e a Unicamp.
Não cabe a uma instituição pública como a nossa se
posicionar em disputas internas a outros órgãos públicos, muito menos opinar
sobre as escolhas de um governo. Mas gostaríamos de pontuar alguns aspectos.
A atribuição — leviana — de eventuais manipulações
de estatísticas num futuro exercício do cargo é uma arma retórica que não
costuma fazer parte desse tipo de discussão e se revela bastante inusitada. Não
parece o tipo de recurso que engrandece o debate num momento de necessária
reconstrução das relações políticas e institucionais no Brasil.
As adjetivações, inverdades ou difamações dirigidas
ao instituto e à Universidade — que não são novidade — revelam mais uma vez
desconhecimento da realidade e intolerância à diversidade de pensamento, em uma
área do conhecimento tão rica quanto a Economia ou as Ciências Humanas em
geral. Prestam-se muito mais aos acalorados (e pouco iluminados) atritos em
redes sociais, que tanto mal causam à convivência social no Brasil e no mundo
atualmente. No debate acadêmico, a desqualificação costuma ser sintoma de falta
de argumentos melhores.
Orgulhamo-nos da contribuição de vários economistas
e outros docentes da Unicamp ao país, em diferentes etapas e diferentes
governos, e da orientação geral das reflexões desenvolvidas nesta Universidade,
que não se limitam aos cânones do pensamento convencional e sempre estiveram
preocupadas com o desenvolvimento do Brasil. Neste rumo, sempre houve e há
espaço para divergências, opiniões e atuações pessoais.
Por fim, desejamos a Márcio Pochmann sucesso e
excelente gestão à frente do IBGE, instituição com credibilidade e história,
fundamental para o conhecimento e a formulação de políticas públicas.
Campinas, 28 de julho de 2023
Fonte: UOL/Página do autor/UFRG/Unicamp
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