'Não sei de onde ele tirou isso': especialistas derrubam mitos de
influenciador pró-Kiev no Brasil
As derrotas das Forças Armadas da Ucrânia no campo
de batalha não impedem uma nova ofensiva no campo informacional. A Sputnik
Brasil conversou com especialistas para derrubar mitos propagados por
combatentes informacionais pró-Kiev atuando na podosfera brasileira.
Nesta quarta-feira (26), o jornal The New York
Times anunciou o início de mais uma fase da contraofensiva ucraniana, focada na
região de Zaporozhie. Os ataques, perpetrados por unidades treinadas pela OTAN,
não surtiram os efeitos desejados, conforme informou o Ministério da Defesa da
Rússia e a redação do jornal norte-americano.
Os revezes das Forças Armadas da Ucrânia no
terreno, no entanto, não impedem novas ofensivas no front da guerra
informacional. Nas últimas semanas, novos influenciadores e autoproclamados
especialistas militares pró-Kiev fizeram investidas na podosfera brasileira, a
fim de impulsionar narrativa anti-Rússia no país.
Um dos combatentes informacionais a serviço de Kiev
é o instrutor de tiro João Bercle Gonçalves, que coleciona participação em
canais do YouTube para relatar sua suposta experiência como combatente no front
ucraniano.
Durante suas longas exposições, que chegam a durar
sete horas, o instrutor de tiro – que se considera um "operador militar
internacional" – passa informações duvidosas, cai em contradições e comete
erros crassos de análise e geografia.
Zelensky ligou para Putin para evitar o início da
operação russa em fevereiro de 2022?
O combatente informacional João Bercle Gonçalves
alegou em uma de suas exposições que o líder ucraniano, Vladimir Zelensky,
tentou negociar com seu homólogo russo, Vladimir Putin, para evitar o início da
operação russa em fevereiro de 2022.
No entanto, as negociações que antecederam o
agravamento do conflito datam de dezembro de 2021, e foram conduzidas entre a
Rússia, EUA e potências europeias, e não diretamente com a Ucrânia.
"É possível que o conflito pudesse ter sido
evitado por vias diplomáticas. No entanto, não foi isso que ocorreu, graças à
atuação do bloco atlântico e da própria Ucrânia em recusar o diálogo e um
compromisso com a Rússia", disse o especialista em Rússia do Núcleo
Avançado de Avaliação de Conjuntura (NAC) da Escola de Guerra Naval (ESG)
Pérsio Glória de Paula à Sputnik Brasil.
As propostas colocadas pela Rússia em 2021 para
evitar o confronto "abarcavam questões de natureza política, geopolítica e
geoestratégica", como a garantia de não expansão da OTAN e a proibição da
alocação de mísseis estratégicos de curto e médio alcance na Europa.
"Ou seja, as propostas russas envolviam um
compromisso com o Ocidente, entendido pelos russos como o patrono do regime
ucraniano, e não com a Ucrânia em si", esclareceu Glória de Paula.
"Os EUA e oficiais da OTAN afirmaram que as demandas russas eram
inaceitáveis e que pretendiam fornecer a Kiev os meios necessários para
resistir."
Além disso, "os russos já haviam manifestado
desconfiança em relação às autoridades ucranianas, que violaram tratados
anteriores", como os Acordos de Minsk, assinados para solucionar o impasse
em relação à administração da região do Donbass.
"A Ucrânia e o próprio Zelensky poderiam ter
promovido políticas concretas e sinais diplomáticos como uma proposta de emenda
constitucional para garantir a neutralidade do país, a criação de uma zona
desmilitarizada nas antigas linhas de contato no Donbass", considerou
Glória de Paula. "O governo ucraniano não só não tomou nenhuma medida
desse tipo, como também o próprio Zelensky antes do dia 24 de fevereiro havia
afirmado que as demandas russas eram um blefe e que continuaria a buscar uma
adesão à OTAN."
A expansão da OTAN é uma desculpa usada pela Rússia
para realizar a operação?
O combatente informacional João Bercle Gonçalves
também expõe o argumento de que a expansão da OTAN não é uma real preocupação
da Rússia, mas sim uma desculpa utilizada por Moscou para legitimar o início da
operação na Ucrânia. Segundo Gonçalves, "se fosse verdade eles teriam
reagido militarmente à entrada de dois novos países na OTAN, que fazem
fronteira com a Rússia", ou seja, à adesão da Finlândia e da Suécia.
"Primeiro, sobre as disposições geográficas e
históricas: a Suécia não detém fronteiras terrestres com a Rússia, somente
marítimas", esclareceu Glória de Paula.
Para o especialista, essa argumentação "ignora
as diferenças básicas nos campos da geopolítica, geoestratégia, e até mesmo as
distinções nas relações históricas, sociais e culturais, entre a Ucrânia, a
Finlândia e a Suécia".
"A Finlândia e a Suécia eram países neutros
durante a Guerra Fria, mas, no decorrer da década de 1990 e até hoje, ambos os
países engendraram uma série de programas de cooperação com a OTAN", notou
Glória de Paula. "Portanto, na perspectiva russa, Finlândia e Suécia já
eram membros de fato do bloco ocidental."
As condições climáticas, geográficas e
populacionais da Finlândia reduzem sua capacidade de constituir uma ameaça real
a Moscou. Caso a Finlândia seja utilizada pela OTAN como ponta de lança para um
ataque, "seria necessária uma extensa operação anfíbia no mar
Báltico".
"Já a Ucrânia é um país com mais de 40 milhões
de habitantes [...] atravessado pelas estepes eurasiáticas, que foram
utilizadas diversas vezes em incursões militares contra a Rússia", lembrou
Glória de Paula. "Essa foi a principal rota de incursão não só do Exército
nazista na Segunda Guerra Mundial, mas também das tropas napoleônicas e até
mesmo das hordas mongóis."
Além disso, "as fronteiras ucranianas são
adjacentes ao núcleo geopolítico russo: a região que abriga a maior parte da
população, as indústrias e os centros de decisão do país".
"Com a Ucrânia em uma aliança hostil, esse
núcleo estaria vulnerável não só a ataques convencionais, mas também à possível
alocação de armamentos estratégicos no território ucraniano, que mudariam
drasticamente a estabilidade nuclear entre Rússia e EUA, por exemplo",
disse o especialista.
A Rússia precisa da Transnístria para ter
capacidade de dissuasão contra a Europa?
Outra suposição geopolítica feita por João
Gonçalves em suas exposições on-line é a de que o real objetivo da Rússia no
conflito é ocupar diretamente o território da Transnístria, localizado entre a
Ucrânia e a Moldávia. A posse definitiva desse território garantiria a
capacidade russa de atacar "qualquer país da Europa".
De acordo com Glória de Paula, esse argumento é
incorreto, uma vez que o arsenal de mísseis de curto, médio e longo alcance da
Rússia já garante ao país euroasiático "um alcance praticamente
global".
"Além disso, se fosse necessário alvejar a
Europa com mísseis de curto alcance ou mísseis intermediários, isso poderia ser
feito com o posicionamento dessas armas em Kaliningrado, um 'exclave russo' que
faz fronteira com a Polônia, excluindo qualquer necessidade de ocupação da
Transnístria para essa tarefa", notou Glória de Paula.
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A Ucrânia abateu mísseis hipersônicos russos
Kinzhal, que já não constituem uma ameaça?
O instrutor de tiro João Gonçalves também afirmou
que as Forças Armadas ucranianas foram capazes de "abater oito mísseis
[hipersônicos russos] Kinzhal ao mesmo tempo", supostamente provando que
essas armas seriam ineficazes no campo de batalha. A cifra citada por
Gonçalves, por sua vez, não condiz nem com as estimativas da Ucrânia, que citou
seis unidades, nem com as do Pentágono, que citou a derrubada de uma unidade.
A verdade, no entanto, é que nenhum míssil Kinzhal
foi abatido pelas Forças Armadas ucranianas, cujo sistema de vigilância tem
dificuldade em detectar os seus lançamentos. Em 10 de maio de 2023, a Ucrânia
apresentou destroços de um míssil à imprensa internacional, alegando serem
partes do suposto Kinzhal abatido. De acordo com especialistas militares e
combatentes ouvidos pelo jornal russo Izvestia, os destroços são realmente de
mísseis russos, mas não de Kinzhals.
De acordo com o ministro da Defesa da Rússia,
Sergei Shoigu, a Ucrânia "confunde o tipo de mísseis o tempo todo, e é por
isso que eles erram" as tentativas de interceptação.
"Eu já disse isso antes e vou repetir novamente:
não lançamos tantos mísseis Kinzhal quanto eles 'supostamente' derrubam em suas
declarações todas as vezes", afirmou Shoigu.
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Ucranianos lutam contra a Rússia para evitar um
novo Holodomor?
Outro argumento que o instrutor de tiro pró-Kiev
propaga nas redes sociais brasileiras é que a Ucrânia estaria lutando contra a
Rússia para evitar um novo Holodomor. O Holodomor é um termo que se refere à
grave fome ocorrida entre 1932 e 1933 na antiga União Soviética.
"O tema do Holodomor se tornou central na mitologia
nacional ucraniana. A ideia é que a fome de 1932-1933 teria sido uma tentativa
deliberada, planejada e implementada pelo governo soviético para matar a
população ucraniana", disse o historiador especialista no período
soviético Rodrigo Ianhez à Sputnik Brasil.
Segundo ele, "não há nenhuma evidência de que
a fome de 32-33 tenha sido planejada, tampouco materialidade sobre os motivos
que levariam os bolcheviques a empreender uma política de genocídio contra a
Ucrânia".
Além disso, os ucranianos não foram o único povo
afetado por esse terrível período de seca e fome. A crise atingiu também a
região do norte do Cáucaso, as margens do rio Volga e territórios atualmente
localizados na Polônia, Romênia e Cazaquistão.
"Se essa fome foi planejada propositalmente,
como é possível que ela tenha extrapolado as fronteiras do governo que
supostamente a planejou? Se foi planejada para exterminar ucranianos, por que
tantos outros povos também foram atingidos?", indagou Ianhez. "De
acordo com os números mais recentes, os cazaques sofreram proporcionalmente
ainda mais do que os ucranianos."
Além disso, a cadeia de comando soviética
responsável pelo trato da crise não era majoritariamente formada por russos
étnicos.
"Estamos aqui falando de autoridades
soviéticas como Josef Stalin, que era georgiano, Lazar Kaganovich, que era
judeu ucraniano e Nikita Khruschev, que era ucraniano russo", notou
Ianhez. "E a liderança do governo soviético em Kiev da época era composta
basicamente por ucranianos."
A disseminação da ideia do Holodomor como uma
política deliberada foi particularmente explorada no período da Guerra Fria,
para opor as diásporas ucranianas em países como o Canadá ao regime soviético.
"Um dos principais pesquisadores que
patrocinou essa ideia foi Robert Conquest, que havia sido membro da
inteligência britânica e assessor do presidente norte-americano Ronald Reagan.
Ele lançou o primeiro livro de alcance mundial, tratando o Holodomor como uma
política genocida, ainda na década de 80", relatou Ianhez.
Anteriormente, o tema do Holodomor havia sido
explorado pela Alemanha nazista durante a ocupação da Ucrânia, "para
legitimar a narrativa de que estariam libertando o país do jugo
soviético".
"O tema é muito polêmico e divide o campo dos
historiadores: um grupo atribui responsabilidade total ao governo, e o outro
defende que o fator principal era climático, com um grupo de pesquisadores no
meio desse espectro, que pesam esses e outros fatores", disse Ianhez.
O debate sobre o tema, no entanto, é dificultado,
uma vez que "qualquer pessoa que tente contextualizar a fome de 1932-1933
é imediatamente taxada de negacionista de genocídio".
"Levantar a possibilidade de algo similar
acontecer nas condições do mundo atual me parece ser simplesmente uma grande
peça de propaganda", lamentou o historiador.
Ø Analista: esforços de Zelensky e EUA para quebrar a vontade da América
Latina não terão resultado
Os esforços do presidente da Ucrânia, Vladimir
Zelensky, para realizar uma reunião com os líderes dos países latino-americanos
a fim de pedir apoio não terão sucesso, disse à Sputnik Christian Lamesa,
analista argentino de assuntos internacionais.
Zelensky tentou organizar tal evento com a ajuda do
presidente do Brasil, informou na quarta-feira (26) o jornal Globo.
"Não acho que o presidente Lula da Silva
esteja muito inclinado a ajudar Zelensky na questão do encontro com líderes
latino-americanos, porque [se o fizer] ele ficará em uma situação difícil, a
qual não trará nada de positivo para o Brasil, mas, ao invés, [acarretará]
certos problemas", disse Lamesa.
De acordo com ele, muitos países da região estão
enfrentando sérios problemas econômicos, e o líder ucraniano mesmo assim
decidiu pedir e exigir-lhes armas e dinheiro.
"Acho que os esforços de Zelensky e de
Washington de quebrar a vontade da América Latina não terão nenhum resultado.
Esta é uma região que historicamente sempre foi mais inclinada à paz do que ao
conflito armado", ressaltou Lamesa.
Em meados deste mês de julho, decorreu em Bruxelas
a cúpula da União Europeia (UE) e da América Latina. O evento não contou com a
participação de Zelensky, que foi inicialmente convidado mas depois os
organizadores mudaram de decisão.
O presidente brasileiro havia dito que a comunidade
mundial está se cansando do conflito na Ucrânia, observando ao mesmo tempo a
importância dos esforços de todos os países para resolvê-lo.
Fonte: Sputnik Brasil
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