sábado, 29 de julho de 2023

'Não sei de onde ele tirou isso': especialistas derrubam mitos de influenciador pró-Kiev no Brasil

As derrotas das Forças Armadas da Ucrânia no campo de batalha não impedem uma nova ofensiva no campo informacional. A Sputnik Brasil conversou com especialistas para derrubar mitos propagados por combatentes informacionais pró-Kiev atuando na podosfera brasileira.

Nesta quarta-feira (26), o jornal The New York Times anunciou o início de mais uma fase da contraofensiva ucraniana, focada na região de Zaporozhie. Os ataques, perpetrados por unidades treinadas pela OTAN, não surtiram os efeitos desejados, conforme informou o Ministério da Defesa da Rússia e a redação do jornal norte-americano.

Os revezes das Forças Armadas da Ucrânia no terreno, no entanto, não impedem novas ofensivas no front da guerra informacional. Nas últimas semanas, novos influenciadores e autoproclamados especialistas militares pró-Kiev fizeram investidas na podosfera brasileira, a fim de impulsionar narrativa anti-Rússia no país.

Um dos combatentes informacionais a serviço de Kiev é o instrutor de tiro João Bercle Gonçalves, que coleciona participação em canais do YouTube para relatar sua suposta experiência como combatente no front ucraniano.

Durante suas longas exposições, que chegam a durar sete horas, o instrutor de tiro – que se considera um "operador militar internacional" – passa informações duvidosas, cai em contradições e comete erros crassos de análise e geografia.

Zelensky ligou para Putin para evitar o início da operação russa em fevereiro de 2022?

O combatente informacional João Bercle Gonçalves alegou em uma de suas exposições que o líder ucraniano, Vladimir Zelensky, tentou negociar com seu homólogo russo, Vladimir Putin, para evitar o início da operação russa em fevereiro de 2022.

No entanto, as negociações que antecederam o agravamento do conflito datam de dezembro de 2021, e foram conduzidas entre a Rússia, EUA e potências europeias, e não diretamente com a Ucrânia.

"É possível que o conflito pudesse ter sido evitado por vias diplomáticas. No entanto, não foi isso que ocorreu, graças à atuação do bloco atlântico e da própria Ucrânia em recusar o diálogo e um compromisso com a Rússia", disse o especialista em Rússia do Núcleo Avançado de Avaliação de Conjuntura (NAC) da Escola de Guerra Naval (ESG) Pérsio Glória de Paula à Sputnik Brasil.

As propostas colocadas pela Rússia em 2021 para evitar o confronto "abarcavam questões de natureza política, geopolítica e geoestratégica", como a garantia de não expansão da OTAN e a proibição da alocação de mísseis estratégicos de curto e médio alcance na Europa.

"Ou seja, as propostas russas envolviam um compromisso com o Ocidente, entendido pelos russos como o patrono do regime ucraniano, e não com a Ucrânia em si", esclareceu Glória de Paula. "Os EUA e oficiais da OTAN afirmaram que as demandas russas eram inaceitáveis e que pretendiam fornecer a Kiev os meios necessários para resistir."

Além disso, "os russos já haviam manifestado desconfiança em relação às autoridades ucranianas, que violaram tratados anteriores", como os Acordos de Minsk, assinados para solucionar o impasse em relação à administração da região do Donbass.

"A Ucrânia e o próprio Zelensky poderiam ter promovido políticas concretas e sinais diplomáticos como uma proposta de emenda constitucional para garantir a neutralidade do país, a criação de uma zona desmilitarizada nas antigas linhas de contato no Donbass", considerou Glória de Paula. "O governo ucraniano não só não tomou nenhuma medida desse tipo, como também o próprio Zelensky antes do dia 24 de fevereiro havia afirmado que as demandas russas eram um blefe e que continuaria a buscar uma adesão à OTAN."

A expansão da OTAN é uma desculpa usada pela Rússia para realizar a operação?

O combatente informacional João Bercle Gonçalves também expõe o argumento de que a expansão da OTAN não é uma real preocupação da Rússia, mas sim uma desculpa utilizada por Moscou para legitimar o início da operação na Ucrânia. Segundo Gonçalves, "se fosse verdade eles teriam reagido militarmente à entrada de dois novos países na OTAN, que fazem fronteira com a Rússia", ou seja, à adesão da Finlândia e da Suécia.

"Primeiro, sobre as disposições geográficas e históricas: a Suécia não detém fronteiras terrestres com a Rússia, somente marítimas", esclareceu Glória de Paula.

Para o especialista, essa argumentação "ignora as diferenças básicas nos campos da geopolítica, geoestratégia, e até mesmo as distinções nas relações históricas, sociais e culturais, entre a Ucrânia, a Finlândia e a Suécia".

"A Finlândia e a Suécia eram países neutros durante a Guerra Fria, mas, no decorrer da década de 1990 e até hoje, ambos os países engendraram uma série de programas de cooperação com a OTAN", notou Glória de Paula. "Portanto, na perspectiva russa, Finlândia e Suécia já eram membros de fato do bloco ocidental."

As condições climáticas, geográficas e populacionais da Finlândia reduzem sua capacidade de constituir uma ameaça real a Moscou. Caso a Finlândia seja utilizada pela OTAN como ponta de lança para um ataque, "seria necessária uma extensa operação anfíbia no mar Báltico".

"Já a Ucrânia é um país com mais de 40 milhões de habitantes [...] atravessado pelas estepes eurasiáticas, que foram utilizadas diversas vezes em incursões militares contra a Rússia", lembrou Glória de Paula. "Essa foi a principal rota de incursão não só do Exército nazista na Segunda Guerra Mundial, mas também das tropas napoleônicas e até mesmo das hordas mongóis."

Além disso, "as fronteiras ucranianas são adjacentes ao núcleo geopolítico russo: a região que abriga a maior parte da população, as indústrias e os centros de decisão do país".

"Com a Ucrânia em uma aliança hostil, esse núcleo estaria vulnerável não só a ataques convencionais, mas também à possível alocação de armamentos estratégicos no território ucraniano, que mudariam drasticamente a estabilidade nuclear entre Rússia e EUA, por exemplo", disse o especialista.

A Rússia precisa da Transnístria para ter capacidade de dissuasão contra a Europa?

Outra suposição geopolítica feita por João Gonçalves em suas exposições on-line é a de que o real objetivo da Rússia no conflito é ocupar diretamente o território da Transnístria, localizado entre a Ucrânia e a Moldávia. A posse definitiva desse território garantiria a capacidade russa de atacar "qualquer país da Europa".

De acordo com Glória de Paula, esse argumento é incorreto, uma vez que o arsenal de mísseis de curto, médio e longo alcance da Rússia já garante ao país euroasiático "um alcance praticamente global".

"Além disso, se fosse necessário alvejar a Europa com mísseis de curto alcance ou mísseis intermediários, isso poderia ser feito com o posicionamento dessas armas em Kaliningrado, um 'exclave russo' que faz fronteira com a Polônia, excluindo qualquer necessidade de ocupação da Transnístria para essa tarefa", notou Glória de Paula.

·         A Ucrânia abateu mísseis hipersônicos russos Kinzhal, que já não constituem uma ameaça?

O instrutor de tiro João Gonçalves também afirmou que as Forças Armadas ucranianas foram capazes de "abater oito mísseis [hipersônicos russos] Kinzhal ao mesmo tempo", supostamente provando que essas armas seriam ineficazes no campo de batalha. A cifra citada por Gonçalves, por sua vez, não condiz nem com as estimativas da Ucrânia, que citou seis unidades, nem com as do Pentágono, que citou a derrubada de uma unidade.

A verdade, no entanto, é que nenhum míssil Kinzhal foi abatido pelas Forças Armadas ucranianas, cujo sistema de vigilância tem dificuldade em detectar os seus lançamentos. Em 10 de maio de 2023, a Ucrânia apresentou destroços de um míssil à imprensa internacional, alegando serem partes do suposto Kinzhal abatido. De acordo com especialistas militares e combatentes ouvidos pelo jornal russo Izvestia, os destroços são realmente de mísseis russos, mas não de Kinzhals.

De acordo com o ministro da Defesa da Rússia, Sergei Shoigu, a Ucrânia "confunde o tipo de mísseis o tempo todo, e é por isso que eles erram" as tentativas de interceptação.

"Eu já disse isso antes e vou repetir novamente: não lançamos tantos mísseis Kinzhal quanto eles 'supostamente' derrubam em suas declarações todas as vezes", afirmou Shoigu.

·         Ucranianos lutam contra a Rússia para evitar um novo Holodomor?

Outro argumento que o instrutor de tiro pró-Kiev propaga nas redes sociais brasileiras é que a Ucrânia estaria lutando contra a Rússia para evitar um novo Holodomor. O Holodomor é um termo que se refere à grave fome ocorrida entre 1932 e 1933 na antiga União Soviética.

"O tema do Holodomor se tornou central na mitologia nacional ucraniana. A ideia é que a fome de 1932-1933 teria sido uma tentativa deliberada, planejada e implementada pelo governo soviético para matar a população ucraniana", disse o historiador especialista no período soviético Rodrigo Ianhez à Sputnik Brasil.

Segundo ele, "não há nenhuma evidência de que a fome de 32-33 tenha sido planejada, tampouco materialidade sobre os motivos que levariam os bolcheviques a empreender uma política de genocídio contra a Ucrânia".

Além disso, os ucranianos não foram o único povo afetado por esse terrível período de seca e fome. A crise atingiu também a região do norte do Cáucaso, as margens do rio Volga e territórios atualmente localizados na Polônia, Romênia e Cazaquistão.

"Se essa fome foi planejada propositalmente, como é possível que ela tenha extrapolado as fronteiras do governo que supostamente a planejou? Se foi planejada para exterminar ucranianos, por que tantos outros povos também foram atingidos?", indagou Ianhez. "De acordo com os números mais recentes, os cazaques sofreram proporcionalmente ainda mais do que os ucranianos."

Além disso, a cadeia de comando soviética responsável pelo trato da crise não era majoritariamente formada por russos étnicos.

"Estamos aqui falando de autoridades soviéticas como Josef Stalin, que era georgiano, Lazar Kaganovich, que era judeu ucraniano e Nikita Khruschev, que era ucraniano russo", notou Ianhez. "E a liderança do governo soviético em Kiev da época era composta basicamente por ucranianos."

A disseminação da ideia do Holodomor como uma política deliberada foi particularmente explorada no período da Guerra Fria, para opor as diásporas ucranianas em países como o Canadá ao regime soviético.

"Um dos principais pesquisadores que patrocinou essa ideia foi Robert Conquest, que havia sido membro da inteligência britânica e assessor do presidente norte-americano Ronald Reagan. Ele lançou o primeiro livro de alcance mundial, tratando o Holodomor como uma política genocida, ainda na década de 80", relatou Ianhez.

Anteriormente, o tema do Holodomor havia sido explorado pela Alemanha nazista durante a ocupação da Ucrânia, "para legitimar a narrativa de que estariam libertando o país do jugo soviético".

"O tema é muito polêmico e divide o campo dos historiadores: um grupo atribui responsabilidade total ao governo, e o outro defende que o fator principal era climático, com um grupo de pesquisadores no meio desse espectro, que pesam esses e outros fatores", disse Ianhez.

O debate sobre o tema, no entanto, é dificultado, uma vez que "qualquer pessoa que tente contextualizar a fome de 1932-1933 é imediatamente taxada de negacionista de genocídio".

"Levantar a possibilidade de algo similar acontecer nas condições do mundo atual me parece ser simplesmente uma grande peça de propaganda", lamentou o historiador.

 

Ø  Analista: esforços de Zelensky e EUA para quebrar a vontade da América Latina não terão resultado

 

Os esforços do presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, para realizar uma reunião com os líderes dos países latino-americanos a fim de pedir apoio não terão sucesso, disse à Sputnik Christian Lamesa, analista argentino de assuntos internacionais.

Zelensky tentou organizar tal evento com a ajuda do presidente do Brasil, informou na quarta-feira (26) o jornal Globo.

"Não acho que o presidente Lula da Silva esteja muito inclinado a ajudar Zelensky na questão do encontro com líderes latino-americanos, porque [se o fizer] ele ficará em uma situação difícil, a qual não trará nada de positivo para o Brasil, mas, ao invés, [acarretará] certos problemas", disse Lamesa.

De acordo com ele, muitos países da região estão enfrentando sérios problemas econômicos, e o líder ucraniano mesmo assim decidiu pedir e exigir-lhes armas e dinheiro.

"Acho que os esforços de Zelensky e de Washington de quebrar a vontade da América Latina não terão nenhum resultado. Esta é uma região que historicamente sempre foi mais inclinada à paz do que ao conflito armado", ressaltou Lamesa.

Em meados deste mês de julho, decorreu em Bruxelas a cúpula da União Europeia (UE) e da América Latina. O evento não contou com a participação de Zelensky, que foi inicialmente convidado mas depois os organizadores mudaram de decisão.

O presidente brasileiro havia dito que a comunidade mundial está se cansando do conflito na Ucrânia, observando ao mesmo tempo a importância dos esforços de todos os países para resolvê-lo.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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