domingo, 30 de julho de 2023

Caso Pochmann: o “cosmopolitismo periférico” dos liberais brasileiros

O cientista político e historiador, Christian Lynch, usou o exemplo da grande mídia sobre a nomeação do economista Marcio Pochmann à presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) para ilustrar os aspectos estruturais do debate ideológico, como o “cosmopolitismo periférico” dos liberais brasileiros e a intolerância no meio acadêmico. 

>>> Confira:

A “polêmica Pochmann” revela aspectos estruturais do debate ideológico que nada têm que não tem a ver com a qualidade, nem o caráter do Pochmann ou da Simone Tebet. A primeira delas é o famoso “cosmopolitismo periférico” dos liberais brasileiros.

Os cosmopolitas periféricos se veem como “cidadãos do mundo moderno”, mas esse mundo na verdade se resume aos EUA e os outros países que falam inglês. Acreditam que ciência, filosofia e teoria são universais, mas esse universo curiosamente só existe no Atlântico Norte.

O liberal brasileiro como “cidadão do mundo” se vê como representante da cultura, da filosofia, da teoria anglófona em uma periferia. O Brasil é percebido em um lugar periferico, atrasado, é tudo que se produz nele tende a ser percebido como qualitativamente inferior.

O cosmopolita periferico não gosta do Brasil, preferia morar fora. Só gosta de aspectos do país que não tema ver com a sua civilização humana, como a natureza, ou culinária, ou aspectos da cultura que repetem padrões do Atlântico Norte ou por ele reconhecidas, como bossa nova.

Para o cosmopolita periferico, o único modo de ser “cidadão do mundo” é como cônsul do que se pensa ou se produz no “universo” (Atlântico Norte) na periferia, ocupando o mesmo lugar de tradutor ou intermediário cultural exercido pelas elites no tempo em que o Brasil era colônia.

Por conseguinte, o cosmopolitismo periferico acha que o Brasil é um lugar problematico, porque sua cultura é diferente da americana, e que ele só se levantará no dia em que abrir todos os seus poros para a cultura que fala inglês e se tornar uma espécie de 51o. estado americano.

Do ponto de vista acadêmico, nada que se produz que não esteja alinhado com o que se faz no atlântico norte tem valor científico. O debate teórico de lá nunca é pensado como tendo a ver com problemas ou aspectos da cultura de lá, porque o Atlântico Norte é o “universo” inteiro.

Para o cosmopolita periferico, o que está fora do Atlântico Norte são colônias incapazes de produzir teoricamente algo de valor sobre seus próprios problemas. Os problemas da periferia são sempre os mesmos do “centro”.

A boa ciência brasileira é aquela que vai a reboque da que está na moda no Atlântico Norte, e seus bons centros de pesquisa são aqueles que lhe dão a impressão de “não estar no Brasil”. Quem não trabalha nessa chave, sequer é considerado acadêmico.

O curioso e ainda mais ideológico no cosmopolitismo periferico dos liberais é que a produção intelectual do próprio centro não se resume à produção de orientação ideológica liberal. Lá tem de tudo. Mas só é considerado universal o que vier do Atlântico Norte & for liberal.

É óbvio que não há como produzir ciência sem pretensão a universalidade, e que há muita porcaria que se produz em nome da autonomia do decolonial ou do nacionalismo exagerado. Não defendo aqui nem um nem outro, porque ambos produzem muito maus resultados.

Chamo só a atenção para o fato de que a militância ideológica está no exagero das duas pontas, ou seja, tanto no caráter colonizado do cosmopolitismo periferico quanto do eventual nativismo do nacionalismo periferico, que frequentemente prima pelo improvisado ou falta de rigor.

O segundo ponto para o qual gostaria de chamar a atenção é para a intolerância no meio acadêmico. Um acadêmico que produz algo de que você não gosta porque não partilha da sua concepção de ciência não é um “não acadêmico”, “um falso acadêmico”. É só um “mau acadêmico”.

Eu discordo de uma porção de gente na academia, à esquerda e à direita, por serem demasiado ideológicos ou militantes, mas não posso em São consciência negar que sejam meus colegas. Se são doutores e fazem pesquisa, são meus colegas.

E a qualidade acadêmica não tem a ver com a militância em si. Todo mundo que escreve para o público, que tem coluna em jornal e revista, emite opinião e é portanto “militante” em algum grau. Foucault, Weber, Keynes, Hayek, eram todos acadêmicos e militantes. Aqui é a mesma coisa.

Então academia e militância, ou intelectualidade pública pelo exercício público da razão, não são atividades incompatíveis, nem interdependentes. Podem ser bem feitas ou mal feitas, juntas e separadas, tanto por simpáticos aos tucanos quanto por simpáticos aos petistas.

Ideologias, temos todos. A questão é o seu grau, e se dela conseguimos conscientemente separar os papéis, que devem ser desempenhados de forma distinta, e em lugares distintos, para ser bem desempenhados, com capacidade e responsabilidade nas duas pontas.

Claro que, quando se está filiado a um partido, a coisa fica complicada, porque o grau de comprometimento ideológico tende a se elevar. Mais ainda quando se trata de um seu intelectual orgânico, como o Jessé ou Pochmann, cujos méritos acadêmicos não avalio, para não fulanizar.

O intelectual de partido tende a não produzir boa ciência, porque tende a ir a reboque da política partidária. Mas mesmo assim, isso depende da maior ou menor qualidade do acadêmico, se ele sabe ou não separar as coisas. Então, convém não generalizar, e julgar caso a caso.

Poderá ficar horas aqui falando desse assunto, mas minha paciência acabou. Abraços a quem conseguiu chegar até aqui.

 

Ø  A revanche do velho jornalismo. Por Luís Nassif

 

Há muitas maneiras de interpretar essa onda jornalisticamente desmoralizante do linchamento de Márcio Pochmann. Há um aspecto psicológico que não pode ser minimizado.

Depois de um amplo período de desmoralização, começou a renascer, aos poucos, uma nova geração de jornalistas recuperando os princípios básicos do jornalismo: objetividade, apuração de fatos e contextualização.

A nova era é de jornalistas que vão atrás de fatos, conversam incessantemente com suas fontes, graças aos recursos de mensagens e outras formas digitais de contatos. Ainda impera um amplo achismo mal informado, de repetidores de bordão. Mas é possível identificar a nova elite do jornalismo.

Esse modelo tornou anacrônico o estilo anterior, de pontificações ideológicas e de agitadores de torcida organizada – que marcou profunda e negativamente o jornalismo de 2005 a 2020. Os antigos gurus passaram a segundo plano.

Essa onda contra Márcio Pochmann foi apenas uma tentativa de reposicionamento da velha guarda, saudosa dos tempos em que agitava o gado com gritos de guerra ideológicos e incitamento ao linchamento do “inimigo”.

Espero que esse episódio não sufoque o rejuvenescimento do primeiro time do novo jornalismo. Que os que se consolidaram nos últimos anos, recuperando princípios básicos de jornalismo e de disputa civilizada, não entrem no canto de sereia dos chefes de torcida, querendo a volta do velho jornalismo de esgoto.

O jornalismo merece sair vencedor. Linchamentos como o de ontem são o último vagido de um sub-jornalismo que precisa ser sepultado.

 

Ø  A volta do jornalismo de esgoto e a guerra dos índices, por Luís Nassif

 

Foi uma reestreia em grande nível da pior fase do jornalismo brasileiro: o jornalismo de esgoto, através do qual a mídia difundia as acusações mais inverossímeis visando estimular o estouro da boiada, o gado que atuava de maneira irracional nas grandes ondas de linchamento.

Lembrou as acusações de Cuba enviando dólares ao PT através de garrafas de rum, as FARCs invadindo o Brasil, a ABIN espionando o Supremo, Ministros recebendo propinas nas garagens do Palácio, e factóides em geral.

Criaram um crime impossível e atribuíram a um “inimigo”, usando o recurso do “SE”, que suporta tudo. “Se minha avó fosse roda, eu seria bicicleta”, por exemplo.

O crime impossível: a manipulação dos dados do IBGE.

Como explicou Sérgio Besserman, ex-presidente do IBGE e intelectualmente muito mais honesto que Edmar Bacha, outro ex-presidente, é impossível qualquer manipulação de dados no IBGE, devido à estrutura profissional dos funcionários do órgão.

A última manipulação ocorreu no período Delfim Netto, na primeira metade dos anos 70 – com plena aprovação do sistema Globo, que comanda o atual linchamento. Como reação, surgiram inúmeros outros índices, o do DIEESE (Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas), o da FGV (Fundação Getúlio Vargas), da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), da Universidade de São Paulo. Além deles, todas as grandes instituições financeiras montaram seus próprios levantamentos de preços.

Depois de criar o crime impossível, criaram o suspeito do “SE”: se o futuro presidente do IBGE, Márcio Pochmann, manipular as estatísticas, ocorrerá o mesmo que ocorreu com o IBGE argentino. E “se” Pochmann não manipular as estatísticas? Aí perde-se o gancho.

O que poderia ser uma crítica técnica ao pensamento de Pochmann, tornou-se um caso de linchamento público desmoralizante para o jornalismo da Globo. Após a primeira suspeita lançada, seguiu-se um festival de ataques de jornalistas analfabetos econômicos, zurrando como sábios contra os estudos de Pochmann, sem a menor noção sobre o papel do IBGE ou sobre temas tratados por Pochmann e sobre a própria biografia de Pochmann, “acusando-o” de ter posições ideológicas. E Roberto Campos Neto? Esse tem posição técnica.

Cronista esportivo, coube a Milly Lacombe, da UOL, enxergar o rei nú: em um país em que a economia é dominada pela ideologia do mercado, as acusações a todos que não concordam com isso é serem “ideológicos”.

Em suma, um movimento que em nada ficou devendo aos movimentos do gado bolsonarista, as mesmas suposições sem base factual, o mesmo terraplanismo, a mesma intenção de fazer o gado pensar com o fígado.

Depois de um dia de ataques bárbaros, capitaneados por Miriam Leitão, restou uma única crítica válida: o anúncio do Secretário de Comunicação Paulo Pimenta, antecipando-se à Ministra do Planejamento Simone Tebet, uma grosseria, sem dúvida. E a soberba lição de civilidade de Tebet, quando cercada pelo gado setorista e indagada sobre o que achava das acusações sobre o crime impossível de Pochmann:

·         A briga dos índices

Por trás dessa baixaria completa, está o receio da grande guerra pelos índices.

O ponto central da ideologia mercadista é vender o peixe de que todas as medidas beneficiando o mercado são “técnicas”, e não políticas.

A consolidação dessa ideologia se deu através do monopólio dos indicadores e pela exclusão de qualquer análise sistêmica sobre medidas econômicas.

Vende-se a ideia de que gastos públicos aumentam a inflação prejudicando os mais pobres. E se começarem a ser desenvolvidos trabalhos mostrando os efeitos das taxas de juros sobre o emprego e sobre a situação dos mais pobres?

Em pleno período de ataques aos aumentos do salário mínimo, o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) divulgou um estudo, com base no IBGE, mostrando que em mais de 50% das famílias, com um aposentado ou pensionista, eles eram o arrimo econômico. Ou seja, o aumento do salário mínimo beneficiou a saúde, pelo fato de ajudar a alimentar a família; a educação, permitindo às crianças entrar mais tarde no mercado de trabalho; a segurança, tornando as crianças menos suscetíveis às investidas do crime organizado.

E se o IBGE utilizasse seus levantamentos para analisar, por exemplo, as externalidades positivas dos investimentos públicos ou dos gastos sociais? Por exemplo: o dinheiro gasto em uma estrada reduziu em xis porcento as perdas com transporte e com carga, permitindo um ganho adicional de ypisilone para a economia brasileira.

Ou a visão sistêmica sobre os financiamentos do BNDES?  Hoje em dia, o mercado meramente compara os custos de financiamento do BNDES com a taxa Selic – e diz que a diferença é déficit público. E se forem incluídos nas contas as empresas criadas, os fornecedores, os empregos e o pagamento de impostos desse novo universo produtivo? Aí se poderia saber que, além de gerar empregos e investimentos produtivos, os financiamentos do BNDES ajudam na arrecadação fiscal. E seriam desmascaradas as análises rasas que sustentam muitos dos estereótipos econômicos que alimentam a mídia.

Em suma, há uma grande batalha ideológica em torno dos índices. O medo desse pessoal não é com a manipulação de índices, mas como a elaboração de novos índices, bem embasados academicamente, podendo comprometer a sua própria manipulação de conceitos. Eles não temem a manipulação da estatísticas: temem o que as estatísticas podem mostrar.

 

Fonte: Por Christian Lynch, no Jornal GGN

 

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