‘O chamado da floresta’: médica relata experiência e rotina de cuidado
com povo Yanomami
Quando, nos idos de 2016, a médica Carla Rodrigues
concluiu a graduação no interior de São Paulo, já suspeitava que seu destino
não estaria em um consultório tradicional, com os pacientes vindo à procura de
atendimento de saúde. Devota da Medicina de Família e Comunidade, ela adotou a
ideia de peregrinar, se fosse preciso, até lugares mais longínquos para
garantir esse acompanhamento a pessoas em situação de maior vulnerabilidade.
Algum tempo depois, resolveu, então, candidatar-se a uma vaga no programa Mais
Médicos.
Em 2021, em plena pandemia, Carla aportou pela
primeira vez na Terra Indígena (TI) Yanomami, a maior reserva indígena do país,
e por ali chegou com uma mochila-consultório nas costas, peito aberto e coração
pulsante, à espera da mais nova jornada profissional. Nascida em Rondônia e
filha de um ex-garimpeiro que atuou no estado na década de 1980, a médica se
deparou com algo de valor subjetivo que, sem perceber, trouxe-lhe de volta até
o Norte do país. “Quando eu fui fazer terapia, eu falei ‘caramba, tinha um
ponto aí do qual eu nem estava consciente’”, narra.
Em uma primeira temporada, Carla ficou 11 meses na
TI, de onde decidiu sair depois por conta do conjunto das dificuldades. Em
fevereiro deste ano, a médica acabou retornando para atuar pela Secretaria de
Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, e viver, então, outros
desafios. “Tem um chamado, o chamado da floresta. Para mim, era o único caminho
a seguir e não existia outro. Fui seguir o meu chamado, e as portas foram se
abrindo”, afirma, ao revelar o tom místico que a narrativa foi ganhando.
E foi a partir disso que a missão com a população
Yanomami frutificou. A jornada foi lhe rendendo um rosário de vivências,
provocações, aprendizados que vão desde o choque cultural, a lida com a cosmovisão
indígena diante de seus processos de doença e morte até o desafio de
administrar os atendimentos de saúde em meio às complexidades da situação
local.
Atualmente, passados seis meses do decreto do
governo federal que formalizou a emergência sanitária na TI Yanomami, a tarefa
cotidiana de Carla Rodrigues e outros profissionais de saúde inclui a tentativa
de libertar a comunidade de doenças já familiares para a medicina, mas que têm
ciclos longos de tratamento e por isso desafiam os serviços de saúde.
“Às vezes demora seis meses, 12 meses para a gente
conseguir tirar uma pessoa da desnutrição. Você tira [da situação] grave com
complicação, mas aí depois ela continua grave, fica [em uma situação] moderada,
depois não mais grave, mas ainda assim precisando de uma manutenção para que
não retorne ao estágio inicial. Então, é algo de longo prazo”, explica a
médica.
Mais que isso, trata-se também de enfermidades que
são velhas conhecidas dos profissionais de saúde, mas para as quais os grandes
laboratórios não deram muita audiência ao longo da história. “São doenças
negligenciadas, que a ciência não tem interesse em estudar porque não dão
retorno financeiro, como malária, tuberculose, desnutrição. A ciência não
chegou aqui dentro”, desabafa Carla Rodrigues, a médica que aprendeu ainda a se
encantar com a experiência na TI Yanomami.
E eis que o feitiço da experiência engrandece a
bagagem que a profissional carrega hoje consigo. “Aprendi a dar risadas. Eles
dão muita risada. Os olhos das crianças são brilhantes. Fico hipnotizada. No
meio urbano, as crianças parecem que estão anestesiadas, pálidas, mas lá dentro
as pessoas são muito vivas”, conta. Foi com essa leveza que a médica atendeu o
Brasil de Fato, em uma brecha da agenda de folgas, e conversou sobre esses e outros
pontos que cercam sua atuação no local. >>>>> Confira a seguir
os principais trechos da entrevista.
·
A emergência sanitária na TI
Yanomami está completando seis meses agora. O secretário de Saúde Indígena,
Weibe Tapeba, afirmou na sexta-feira (21) que a situação está melhor, mas ainda
não está resolvida. Na sua experiência como médica ali na comunidade, de que
forma percebe na prática que de fato a problemática da saúde Yanomami ainda tem
desafios pela frente?
Carla Rodrigues: A
gente pode pontuar a situação da malária, uma doença que não pode ser
controlada rapidamente porque tem os fatores ambientais (do mosquito, dos
reservatórios, dos locais onde os mosquitos se reproduzem, os criadouros), tem
que se ter um trabalho contínuo de atendimento, de busca ativa dos casos junto
aos pacientes e do controle do tratamento. Isso só pra ilustrar um dos casos.
Às vezes demora meses ou anos para se conseguir controlar uma doença como a
malária. Então, em seis meses numa área onde, por segurança, a gente ainda não
conseguiu adentrar todas as comunidades do território Yanomami, que é muito
grande, a malária é o nosso “top one” de problema dentro da terra.
São doenças que não são de fácil resolução. Não é
em uma ação pontual que a gente consegue resolver tudo, como se fosse uma
catástrofe em que a gente vai lá, vai atrás das pessoas que estão soterradas e
leva para o hospital. Malária, desnutrição, tuberculose são coisas que demandam
um tempo para se controlar, por isso que a gente ainda não conseguiu sair da
emergência. E são pessoas que estão há muitos anos debilitadas por essas e
outras doenças. Por exemplo, às vezes demora seis meses, 12 meses para a gente
conseguir tirar as pessoas da desnutrição. Às vezes você tira ela [da situação]
grave com complicação, mas aí depois ela continua grave, fica [em uma situação]
moderada, depois não mais grave, mas ainda assim precisando de uma manutenção
para que não retorne ao estágio inicial. Então, é algo de longo prazo.
·
A senhora se graduou em
2016. Já tinha essa vontade de atuar junto à população indígena naquela época?
Eu sempre quis não trabalhar dentro de um
consultório. Nunca gostei de ficar entre quatro paredes esperando que o
paciente viesse até mim. Quando eu fui descobrindo que existia a saúde
indígena, que era uma política pública, que eu teria essa chance, fui me
apaixonado e [pensei] “nossa, existem outros modos de se fazer medicina que não
numa cidade”. E acho que pela minha história de vida também: eu vim do Norte,
meu pai foi garimpeiro na década de 1980, eu tive contatos com a população
indígena em Rondônia e aquilo ficou no meu imaginário. Agora, quando eu fui
fazer terapia, eu falei: “Caramba, tinha um ponto aí do qual eu nem estava
consciente!”.
·
Essa experiência
profissional lhe leva para o seu passado?
Com certeza.
·
A senhora chegou à TI
Yanomami em 2021, em plena pandemia. Como foram os seus primeiros momentos no
local?
Como muitas pessoas que estão no contexto urbano,
eu não conhecia muito a saúde indígena. No meu imaginário, eu achava que não
teria estrutura nenhuma, que dormiria ao relento. Então, eu vim extremamente
preparada [para o caso de] ter que dormir em acampamento. Fiz uma
mochila-consultório e lembro que meu pai me ensinou muito sobre acampamento –
eu acampava muito com ele quando era criança. Então, eu já tinha um pouco essa
habilidade de sobrevivência nesses contextos. Quando eu cheguei, queria ir para
os lugares que precisavam mesmo.
Não importava para onde me levassem, e aí os meus
primeiros lugares tinham estrutura, apesar do alto grau de complexidade, tinham
o mínimo. Eu fiquei meio frustrada e pensei “nossa, mas eu não quero trabalhar
nisso” porque eu continuava dentro de um consultório, apesar de ele ser
adaptado.
·
Isso era dentro do
território?
Isso, só que era para o lado do Amazonas, em Maturacá,
que é próximo a São Gabriel da Cachoeira. Era um outro molde, porque dentro do
território Yanomami existem diferentes moldes. Tem onde não tem nada, tem onde
não tem estrutura, onde tem o mínimo de estrutura. Eu falei que queria ir para
o outro extremo, onde fico mais hoje.
·
Quando chegou lá de início,
no meio da crise sanitária da covid, como foram as primeiras ocorrências de
saúde que lhe apareceram?
Lá onde eu estava tinha muito a questão obstétrica.
Era um lugar aonde as indígenas iam para ganhar bebê e eu me preocupava mais
com isso. Tinha a parte respiratória também, mas a gente costuma dizer que a
população indígena vive uma endemia há muito tempo, então, a covid foi só mais
uma entre as tantas outras que eles vivem. Claro que complicou um pouco, teve
um pouco mais de [demanda] respiratória, mas eles têm muitas doenças
respiratórias também. Não que eles não tenham sentido – eles sentiram muito [a
covid] –, mas já estavam acostumados a viver nessas situações, infelizmente.
·
O imaginário social tem uma
certa impressão do que seria a Terra Indígena Yanomami. Quando a senhora chegou
lá, aquilo lhe pareceu diferente do que se vê nos noticiários, por exemplo?
Sempre há os choques culturais, mas, como a minha
formação – eu fiz residência em Medicina de Família e Comunidade –, uma das
coisas que a gente estuda é a interculturalidade, é como lidar com culturas
diferentes das nossas. O primeiro passo era observar, era o quase não agir, ir
observando como era a relação saúde-doença para essas pessoas, a relação com a
alimentação, como elas lidam com a morte. Eu entrei numa posição mais de
observadora e só agia quando era inevitável.
Esse preparo que a Medicina de Família me deu me
permitiu ir adentrando aos poucos, sem chegar muito como a gente tem na
medicina mais comum, que é essa coisa mais intervencionista. Às vezes rolavam
ate umas críticas, como se eu não quisesse fazer nada. Eu me lembro de um caso
de um indígena que era um idoso, devia ter mais de 60 anos, o que é uma
raridade pra um Yanomami porque a expectativa de vida deles é menor. Quando a
gente acha alguém com 60 anos, é como se fosse alguém muito especial.
Ele estava no fim da vida dele e a equipe de saúde
estava muito preocupada porque ele ia morrer e eu fiquei pensando que,
primeiro, precisava entender o que a família esperava, se ela queria que eu
ressuscitasse ou que eu só estivesse ali. Depois, fui entendendo que a família
apenas queria que eu fosse lá ver os sinais vitais para ajudá-los a entender
qual era o momento em que ele tinha morrido porque [na visão deles] era o
momento mesmo de ele morrer e eles não queriam que eu passasse soro nem nada
porque isso iria dificultar a subida do espírito. Aí fiquei só na retaguarda,
então, olhando os sinais vitais.
Nisso, foi rolando o xabori, que é como uma
pajelança [conjunto de práticas que evocam a religiosidade indígena],
grosseiramente falando. Então, foi um momento de observação e de eu estar ali
com a família. Ter estudado cuidados paliativos e essa parte cultural foi algo
que me ajudou porque, talvez, em outro momento eu quisesse intervir muito,
ressuscitar, etc., e isso seria mais agressivo para a família.
·
Essa experiência parece
muito diferente daquilo que se vivencia em uma unidade de saúde urbana,
segmento em que a senhora também já atuou. Se pudesse traçar um paralelo, o que
colocaria como diferença entre esses dois universos?
Por mais que seja diferente, talvez seja uma
postura que nós deveríamos ter mais, algo que a gente devesse respeitar e
entender o que o paciente quer, independentemente de ele ser indígena. Na
cidade, a gente tem mais dificuldade de lidar com a morte. Muitas vezes eu vi
famílias dizendo “doutora, passa medicamento, passa soro, não deixa ele
morrer”. A gente acaba fazendo [isso] com a família ali, mas, no paralelo, [a
diferença] seria uma dificuldade de lidar com o fim.
Claro que o outro extremo que a gente tem na terra
Yanomami, que são as mortes das crianças por desnutrição ou causas evitáveis,
também é uma coisa que não dá para a gente ficar lá só assistindo. A gente sabe
o que tem que fazer para evitar essas mortes. Mas, no caso do idoso, que era
uma pessoa mais velha, de idade avançada, seria muito mais agressivo intervir
dessa maneira à qual a gente está acostumado. Para eles, se o espírito não
subir como tem que subir, isso vai causar um trauma psicológico enorme. Tem que
se estar de coração aberto para entender todo esse contexto.
·
Na época em que se inscreveu
para o Mais Médicos, a senhora tinha receio de alguma coisa? Não é muito comum
os profissionais de saúde quererem ir para distritos de atendimento a
indígenas…
Eu tinha um pouco de receio, mas era da violência,
não dos indígenas, e sim do pessoal que entra lá, do garimpo, do narcotráfico.
Não sei se é muita loucura, mas eu sempre achei – e hoje acho mais ainda – que
a floresta tem um chamado, o chamado da floresta. Para mim, era o único caminho
a seguir e não existia outro. Então, eu fui seguir o meu chamado e as portas
foram se abrindo, às vezes fechando, me mandando para outro lugar, mas eu tinha
um chamado dentro de mim.
·
Tem algo de místico nessa
experiência, então, né…
Sim.
·
Por falar em medos, a
senhora disse uma vez em entrevista que, na sua primeira temporada na TI
Yanomami, chegava a dormir com facão em uma rede porque tinha medo de ser
atacada. Como está a sua sensação de segurança hoje?
Acho que está bem melhor. Parece que nosso espírito
está mais calmo. Não é que não tenha mais problemas, tem muitos. Mas agora a
gente consegue adentrar o território com comunicação, a gente conseguiu uns
telefones que permitem mandar mensagem e sempre tem alguém na retaguarda na
logística. Se você precisar, eles vão atrás, vão dar um jeito, vão chamar o
Ministério da Defesa, que está junto e pode mandar helicóptero, enfim. Parece
que agora a gente tem mais segurança, ainda que tenha muitos desafios.
·
A senhora chegou lá pela
primeira vez em maio de 2021. Tem alguma situação que tenha sido mais marcante
de lá para cá?
Tem várias, mas eu acho que [foi] a primeira vez em
que vi uma criança morrer, e ela tinha 4 meses. Até hoje é difícil falar porque
aqui fora parece que as nossas crianças não morrem e a gente vê elas lutarem.
Os estágios pelos quais passei em pediatria atendendo criança [me mostraram
que], se uma criança está desidratada, você expande e ela volta. Então, as
crianças não morriam. A primeira vez, isso foi no meu segundo mês de TI
Yanomami, eu presenciei uma criança morrer. Aquilo foi uma coisa que me rasga
até hoje, e foi só a primeira de muitas, mas eu não me conformava.
Acho que essas experiências de morte são coisas que
me marcam e que, infelizmente, são muito comuns aqui por muita coisa que
acontece, seja por briga, por conflitos armados, enfim, mas ver essa primeira
criança morrer foi especificamente a que mais me marcou. É que também a família
já sabia que a criança estava muito debilitada e, quando eles pediram à gente
[para ir], eu fiquei umas quatro horas com os indígenas fazendo xabori e era um
lugar muito escuro, muito quente.
Eu tive que fazer um acordo para estar ali dentro
com eles e, quando eles chegavam para fazer o xabori, eu tinha que sair. Quando
eles saíam, eu entrava. Acho que foram mais de quatro horas nesse movimento
quase catártico, em que eu achava que estava pisando na linha da morte e
voltando e, no final, eles sabiam primeiro que eu que a criança já tinha ido.
E, quando isso acontece, tem um choro dos Yanomami que é muito forte. É um
grito, parece que dá para ouvir lá do espaço. E aí vem a comunidade inteira
passar a mão no corpo da pessoa que faleceu e eles fazem os ritos deles.
Nisso, eu tive que sair por baixo, senão seria
atropelada pela comunidade inteira. Foi uma coisa que me deixou muito tempo –
ainda me deixa às vezes – sonhando à noite com esse momento. É que também você
se envolve espiritualmente, você vê eles fazendo o xabori. No final, eles
vieram me consolar e falaram: “doutora, é assim mesmo. Foi o espírito do
urubu”. Depois aconteceram outros casos, mas esse é o que mais me marca até
hoje.
·
E, para enfrentar outras
situações dessa, a senhora precisou trabalhar o seu emocional? É diferente
agora?
Acho que agora meu espírito está mais forte. Acho
que também eu já sei os caminhos. No começo, eu era inexperiente na [área de]
saúde indígena, principalmente com os Yanomami. E também agora é um momento em
que a gente tem mais recursos. Eu não entro mais em uma área sem material de
emergência, sem material de malária, eu não entro mais desassistida. E eu sei
que [se precisar] eu consigo uma remoção [de paciente]. Às vezes a família não
quer, mas aí eu vou trabalhando [isso]. Acho que agora também as próprias
comunidades estão mais abertas ao verem que vão ser atendidas porque muitas
vezes eles não queriam ser removidos porque sabiam que seriam mais agredidos
ainda no hospital ou em outros centros. Agora acho que eles estão sentindo que
podem confiar mais na Saúde.
·
Por falar em material de
socorro, a senhora disse à imprensa que, na sua primeira temporada no
território, chegava a separar uma parte do seu salário para comprar itens
básicos de socorro. Quando a senhora percebeu que deveria fazer aquilo? O que
lhe moveu naquela ocasião?
Foi no segundo mês, em 2021, quando a farmácia
estava desabastecida. E não era só eu que fazia isso. Muitos outros médicos
faziam. A gente falava “ir lá só com o nosso corpo não vai resolver [o
problema]” porque eles sempre falavam que tinham processos de licitação
atrasados e tudo mais. Eu preferia comprar que ter que brigar. Eu só queria ir
lá e fazer o meu trabalho. Queria contar com o que eu tinha e foi nesse intuito
de “não quero brigar com ninguém e espero ir lá fazer o meu trabalho”.
·
Como tem sido atualmente a
dinâmica do seu trabalho, o seu expediente na área?
Geralmente, o médico trabalha um para folgar um, então,
fica 15 dias em área e 15 dias de folga ou 30 e 30. Como são lugares de difícil
acesso, é uma temporada lá e uma temporada de descanso. É mais ou menos isso. A
gente tem alguns profissionais que moram em Boa Vista e outros até em outros
estados. Eu geralmente prefiro ficar 15 [dias de trabalho] e 15 [dias de folga]
porque, emocionalmente, acho muito intenso.
·
Mesmo que hoje haja uma
situação diferente em termos de socorro, com muitas equipes mobilizadas, apoio
da polícia e um clima diferente no Brasil, ainda é, em alguma medida, desolador
fazer esse trabalho?
Sim, é, principalmente agora. É um tema difícil de
se falar… Com a saída do garimpo, eles, de certo modo, perderam o ponto de
apoio que tinham. Era ponto de alimentação, comunicação, eles tinham certa
dependência e relações. Então, quando o garimpo saiu, tirou-se isso deles e
alguns não conseguiram entender.
Agora, quando a gente entra em lugares de onde o
garimpo acabou de sair, é muito desafiador porque a gente teria que ser mais
sedutor que o garimpo para conseguir trabalhar com eles, e a gente não vai ser
por questões éticas, porque, enfim, não é do nosso trabalho. Então, é mais
difícil conversar com eles. E eles também estão mais doentes, têm mais malária,
desnutrição. Como a gente estava dizendo, não são doenças fáceis. Não é só eu
ir lá, tratar e acaba em poucos dias.
A malária, por exemplo, tem uma medicação
assistida, que todo dia a gente tem que estar com eles tomando porque pode ser
que uns peguem todas as medicações e tomem de uma vez e outros podem dizer que
não vão tomar, e aí não acabam o tratamento. Tem que ser um trabalho bem
próximo, [tem que] ficar assistindo eles e conversando. Muitas vezes, quando a
gente entra, tem que fazer comida para dar a medicação. O tratamento de malária
é com uma medicação muito forte, então, tem que fazer mingau, dar a comida para
depois dar a medicação.
E isso num lugar onde às vezes não tem estrutura
porque eles estão em migração. Eles migraram para outro lugar tentando achar
mais fertilidade no solo ou uma água mais limpa. Então, está num momento de
transição pra eles também, e isso é difícil.
·
É bastante comum que médicos
não queiram se habilitar para fazer atendimento nesses locais. Que credenciais
a senhora acha que um profissional da medicina precisa ter para atuar nesse
espaço e conseguir desenvolver o seu trabalho?
Eu acho que, primeiro, tem que sair do pedestal em
que nos colocam aqui fora [no meio urbano]. Acho que tem que ser um ser humano,
entender que vai lidar com outro ser humano, com uma equipe. Tem que ter
resiliência porque são muitos desafios, ter o espírito meio aberto, meio livre
para fazer o seu trabalho independentemente da estrutura ou de onde ele
estiver. Também tem que ter um poder de criatividade porque, se eu não tenho,
sei lá, uma sonda, vou ter que ir atrás de outra coisa. Tem que ter
criatividade para achar soluções.
Tem que ser alguém que goste de problemas e de
resolver problemas. Acho que isso que é importante também. É ter uma abertura
intercultural, de conseguir absorver e não julgar, de se abrir para conhecer o
outro, mas eu acho que o principal é estar disposto a aprender mais do que
ensinar. Eu aprendo muito mais, em vários sentidos. Eu recebo bem mais, sem
falsa modéstia. As equipes me ensinaram muitas coisas que eu não teria
aprendido. Aprendi sobre malária com os agentes de endemias, por exemplo.
Quando cheguei, como muitos de nós [médicos], eu só tinha visto malária nos
livros e quem me ensinou muito foram eles. Eu levava os casos para eles e ia
discutir com a equipe, perguntando “o que vocês acham que a gente pode fazer?”.
E eles sabem muito porque lidam com malária há 20
anos, e isso às vezes falta para os profissionais que chegam. A gente chega
trazendo o que aprendeu nos livros, mas muitas vezes os casos não estão nos livros.
Eles estão aqui porque, como são todas doenças negligenciadas, que a ciência
não tem interesse em estudar porque não dão retorno financeiro, como malária,
tuberculose, desnutrição, enfim, a ciência não chegou aqui dentro. Então, não
adianta você vir achando que sabe tudo, que estudou tudo porque, quando você
chega aqui, a realidade é outra. Quem tem experiência clínica é quem vai,
muitas vezes, conseguir fazer um [atendimento de] saúde melhor para essa
população. Acho que esse é um perfil muito importante de se ter. É ter essa
abertura, aprender a buscar outras soluções.
·
Além das questões médicas,
que tipo de coisa a senhora tem aprendido com a população Yanomami que vai
levar para a sua jornada de vida pessoal?
Olha, aprendi a dar risadas. Eles dão muita, muita,
muita risada. Eu acho isso muito bonito porque eles estão passando pelo que
estão passando, mas estão rindo. Os olhos das crianças são brilhantes. E eu
digo isso não romantizando porque não é algo a ser romantizado, mas é algo que
me encanta. Eu fico hipnotizada e às vezes acho que não consigo sair. No meio
urbano, as crianças parecem que estão anestesiadas, pálidas, mas lá dentro [na
TI Yanomami] as pessoas são muito vivas. Acho que é isso que eu levo, essa
vivacidade que elas têm.
Fonte: Por Cristiane Sampaio, no Brasil de Fato
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