Marielle Franco e Anderson Gomes: Justiça a caminho
O assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes,
em março de 2018, é daqueles crimes políticos que extrapolam a esfera jurídica,
causam comoção pública, mudam a percepção da sociedade e podem alterar o
destino do País. Esse é o caso dessa execução bárbara da vereadora do PSOL,
negra, de origem pobre e líder da comunidade LGBTQIA+, e de seu motorista,
ocorrida num ano de eleições presidenciais fortemente polarizadas.
O Rio de Janeiro estava sob o regime de Garantia da
Lei e da Ordem (GLO) – o interventor era o general Braga Netto – e o vencedor
do pleito foi Jair Bolsonaro, notório pelo seu relacionamento com milicianos. E
dois ex-agentes policiais vinculados a essas quadrilhas foram presos já em
2019, apontados como executores da ação.
Mas o inquérito permaneceu cercado de dúvidas,
esperando uma mudança do humor político. Isso aconteceu agora. Pouco depois de
seis meses após a troca de governo, a dinâmica foi finalmente esclarecida. E
isso deixa os investigadores próximos de apontar os mandantes e financiadores e
esclarecer a motivação do crime, um passo crucial para que o Brasil acerte
contas com sua história e retome sua credibilidade internacional.
Tudo mudou com a confissão de um dos presos, o
ex-sargento da PM do Rio de Janeiro Élcio de Queiroz. Sua delação premiada,
anunciada na última segunda-feira, 24, representou um divisor de águas no caso,
que já havia passado pelas mãos de cinco delegados, dois Procuradores-Gerais do
estado e contou com uma breve ação da Polícia Federal que conseguiu desbaratar
uma operação despiste.
Por mais de cinco anos, enquanto esteve na alçada
da Polícia Civil fluminense, pouco ou quase nada se caminhou na elucidação do
crime.
Mas “não existe crime perfeito”, lembrou Flávio
Dino. Há, sim, investigações malfeitas, poderia se acrescentar. Neste ano, em
pouco mais de cinco meses, quando a PF passou à frente das apurações juntamente
com o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), tudo avançou.
Isso desembocou na Operação Élpis, no mesmo dia 24,
quando a PF deteve o ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa. Além dele, a polícia
também cumpriu sete mandados de busca e apreensão na cidade do Rio de Janeiro e
região metropolitana. Os demais nomes ainda não foram informados. Maxwell é
acusado de vigiar Marielle, acobertar os matadores e destruir provas.
A riqueza de detalhes da delação de Élcio de
Queiroz, todos validados por provas produzidas pela PF e pelo Ministério
Público, não deixa dúvidas sobre o que aconteceu no dia da execução, sobre o
seu planejamento, o descarte de evidências e rastros e, principalmente, a
autoria dos disparos.
Mais do que isso, a confissão do ex-PM gerou um
arsenal de novas provas e traz personagens inéditos.
“O fato de nós termos a certeza de que alguém
mandou matar Marielle já é um passo fundamental. Não é uma certeza intuitiva.
Ela é sustentada pelas provas concretas nos autos, e esse é um salto qualitativo
e importante na investigação.” - Ministro da Justiça, Flávio Dino
Em fevereiro, Dino levou as investigações à alçada
da PF. “Revelar quem matou, quem mandou matar é uma causa fundamental não só
para a família, mas creio que para a toda a sociedade”, disse o ministro.
>> Queiroz havia sido expulso da PM em 2015 e
está preso desde março de 2019. Ele revelou:
1) que dirigiu o veículo usado na emboscada;
2) que Ronnie Lessa, ex-PM e detido também há
quatro anos, usou uma submetralhadora para atirar em Marielle e Anderson Gomes;
3) que o sargento da PM Edmilson Oliveira da Silva,
o Macalé (um novo personagem no caso), foi o intermediário entre os mandantes e
Lessa;
4) e que Maxwell Simões Corrêa, preso anteriormente
por obstruir as investigações, fez campanas para vigiar a vereadora.
Escalado inicialmente para conduzir o veículo,
Maxwell teria sido substituído na última hora pelo próprio Élcio. Em seu
depoimento, Élcio também forneceu pormenores do crime, do veículo usado na
execução (encaminhado para um desmanche) e da destruição de provas (as armas
foram atiradas no mar e pedaços da placa do carro, picotados e jogados em uma
linha de trem).
Depois de fechar a delação, Élcio foi transferido
para uma ala de segurança máxima da Papuda, em Brasília, destinada a presos
vulneráveis. Não se sabe ainda que benefícios serão concedidos a ele pela
delação. Em princípio, deve permanecer preso por mais oito anos e sua família
passou a ter proteção policial.
As revelações emocionaram a ministra da Igualdade
Racial, Anielle Franco, irmã de Marielle, e também trouxeram alívio para
Marcelo Freixo (hoje presidente da Embratur), com quem Marielle trabalhou por
10 anos enquanto ele era deputado e presidiu a CPI das Milícias na Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
“Para chegar ao mandante é preciso ter a autoria
muito bem desenhada, e nós não tínhamos. O Lessa tinha álibis fortes, assim
como o Élcio. Tudo isso caiu com a delação. Todos os álibis foram derrubados”,
afirma. “É uma etapa muito importante que é concluída. Havia muita dificuldade
para chegar ao mandante, e agora acho que esse passo foi dado”.
Um dos álibis foi derrubado pela própria mulher de
Lessa, Elaine Lessa. Há dois meses, ela recuou de um depoimento anterior e
disse que seu marido não estava em casa na noite da morte de Marielle, como ele
e Élcio alegavam.
O ministro Fávio Dino se mostrou muito confiante.
Ele fez questão de frisar que “avenidas virtuosas, não ruas, se abrem para
saber quem matou Marielle”. Evitando citar detalhes revelados pelo delator
(apenas parte do depoimento foi divulgado), o ministro afirma que o caso está
próximo de ter respostas definitivas.
O caso pode desbaratar o funcionamento de milícias,
seus braços financeiros e possíveis apoiadores no mundo político e na estrutura
do Estado.
Segundo Dino, os negócios criminosos “são
conhecidos desse procedimento de milicialização das relações sociais e
políticas e econômicas de um estado como o Rio de Janeiro”.
“Marielle incomodava pela sua atitude, sua postura,
suas mensagens e seu engajamento em causas que de algum modo ameaçavam o
ecossistema criminoso”. - Flávio Dino, ministro da Justiça
Mas isso não é tudo. Marielle virou um ícone
político, sua execução tornou-se um escândalo internacional. O esclarecimento
do caso (assim que for concluído), ao contrário, será uma vitória das
instituições e símbolo do fortalecimento da democracia.
Marcelo Freixo lembra que a morte dela não estava
em nenhum radar na época. “Nada gerou em nós qualquer ideia de que ela
estivesse ameaçada. Foi muito surpreendente. A minha situação era diferente por
causa da CPI das Milícias, mas isso não passava para ela. Eu presidi a CPI que
levou 240 milicianos à prisão e ando com escolta desde 2008 por conta de
ameaças concretas e reais”, afirma.
Segundo a delação premiada de Élcio de Queiroz,
desde 2017 o assassinato de Marielle estava sendo preparado. Ronnie Lessa teria
narrado uma tentativa frustrada de assassinar a vereadora com participação do
ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa três meses antes, mas Maxwell teria “refugado”.
• Enriquecimento
Lessa até hoje nega a autoria e teria garantido ao
seu ex-comparsa que não recebeu dinheiro para cometer o crime. Mas Élcio diz
que não acredita nessa versão e afirma que Lessa mostrou sinais de
enriquecimento após a execução, como a compra de uma lancha e uma picape
blindada (de valor superior a R$ 350 mil) e planejava construir uma casa de
praia em Angra dos Reis.
Não é apenas ele que teve grande evolução em seu
patrimônio. Dados do Coaf revelam movimentações de R$ 6,4 milhões entre 2019 e
2021 nas contas bancárias de Maxwell. O montante é incompatível com sua
remuneração como bombeiro, de R$ 10 mil mensais.
Freixo destaca a contratação de profissionais do
extermínio, conhecidos e caros. “O Lessa era do Escritório do Crime, um grupo
de matadores. Eles atuam há anos e nunca foram investigados pela Delegacia de
Homicídios do Rio de Janeiro até a morte da Marielle. Estamos falando de uma
política de milícias, de morte, de máfia, e numa das cidades mais importantes
do mundo”, alerta.
Segundo Élcio, Lessa teria sido contratado por
Edmilson Oliveira da Silva, o Macalé, que foi executado em 2021. E pode haver
nova reviravolta em breve. Há a possibilidade de o próprio Ronnie Lessa fazer
uma delação premiada, apostam investigadores.
• Milícias
Para Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador no
Núcleo de Estudos da Violência da USP e autor do livro República das Milícias,
do Esquadrão da Morte à Era Bolsonaro, existem hipóteses já levantadas em
investigações anteriores que voltam a despertar interesse após a delação
premiada.
Em seu último dia de trabalho à frente da
Procuradoria-Geral da República, Raquel Dodge denunciou irregularidades na
apuração do caso Marielle a partir de um inquérito conduzido pela PF em 2018.
Segundo Paes Manso, ela encontrou indícios de que o trabalho, comandado pela
Polícia Civil do Rio, não seguia as linhas mais evidentes.
Uma armação foi feita com uma testemunha falsa,
Rodrigo Ferreira, PM e miliciano, que apontou o vereador Marcelo Siciliano e
Orlando de Oliveira Araújo (Orlando Curicica) como mandantes e executores do
crime.
Dodge acusou na época o conselheiro afastado do
Tribunal de Contas do Rio de Janeiro Domingos Brazão de obstrução e despistes
nas investigações. Ela lançou suspeitas de que ele estaria ligado aos
assassinos Ronnie Lessa e Élcio Queiroz.
“Em uma ligação telefônica interceptada pela
polícia entre Siciliano e outro miliciano do Rio das Pedras, Beto Bomba, eles
teriam responsabilizado Domingos Brazão pelo crime e dado detalhes de como o
ex-conselheiro havia arquitetado a execução”, afirma Paes Manso.
Dodge solicitou a abertura de inquérito para apurar
se Brazão era o mandante do duplo homicídio e pedido a federalização da
investigação.
Mas os assuntos foram levados em banho-maria, nada
avançou. Dodge solicitou a abertura de inquérito para apurar se Brazão era o
mandante do duplo homicídio e pedido a federalização da investigação. Paes
Manso explica que Brazão se defendeu falando que os dois sabiam que eram
gravados e por isso o acusaram.
• Qual
o rumo das investigações
As investigações devem apontar nas próximas semanas
qual é a verdadeira cadeia de comando e interesses por trás do crime.
O nome do vereador Marcelo Siciliano, mencionado
acima, apareceu em uma mensagem trocada pelo ex-militar Ailton Barros com o
ajudante de ordens do ex-presidente Mauro Cid. Ambos presos em maio passado na
Operação Venire.
Segundo a PF, em um dos áudios, Ailton Barros (que
se apresentava como o “01 de Bolsonaro”) solicitou a Cid que intermediasse um
encontro de Siciliano com o cônsul dos EUA no Brasil para resolver um problema
relacionado ao visto de entrada de Siciliano. Barros relatou que Siciliano
estava tendo problemas por causa do seu nome no caso Marielle.
Em uma gravação, Barros diz que conhecia os
mandantes do crime e que Siciliano era inocente. A defesa de Barros disse que
ele mencionou o episódio “como bravata para chamar a atenção de Bolsonaro”. A
PF ouviu o ex-presidente no dia 16 de maio sobre o episódio. Bolsonaro foi
questionado se tomou conhecimento desse áudio do aliado, mas afirmou à PF que
Mauro Cid “nunca comentou” sobre a mensagem.
• Constrangimento
Esse não é o único contratempo para Bolsonaro.
Ronnie Lessa morava no mesmo condomínio de Bolsonaro no Rio de Janeiro, o
“Vivendas da Barra”. Num episódio depois desmentido pelo porteiro, Élcio de
Queiroz teria entrado no local para se dirigir à casa de Bolsonaro no próprio
dia do assassinato da vereadora. Mas Bolsonaro, que era deputado federal,
estava naquele dia na Câmara, segundo registros do Congresso.
Na época, o ex-presidente disse que não conhecia
Marielle e que “também estava interessado em saber quem mandou matá-la”. Os
investigadores na época descartaram qualquer envolvimento de Bolsonaro no caso.
Sobre a sua eventual ligação com Ronnie Lessa, o ex-presidente comentou que seu
filho mais novo, Jair Renan, teria namorado a filha de Lessa.
Esse caso também está mal contado, argumenta Bruno
Paes Manso. Há mais embaraços. Flávio Bolsonaro homenageou na Alerj membros do
Escritório do Crime, inclusive o próprio chefe do grupo de extermínio, Adriano
Nóbrega (morto em um confronto com a PM da Bahia quando estava foragido), e o
major Ronald Paulo Alves Pereira, preso na Operação Intocáveis, em 2019, que já
foi suspeito de participação no assassinato de Marielle.
Para Flávio Dino, o esclarecimento do caso Marielle
é “uma questão de honra do Estado para o Brasil voltar a ter credibilidade”.
De acordo com Freixo, “saber quem foi o mandante é
decisivo e importante para o Rio de Janeiro, para o Brasil, para a Segurança
Pública e para a democracia”.
Paes Manso acredita que a descoberta dos mandantes
levará a um fortalecimento do governo, do Estado, das polícias, da PF, do
Ministério Público do Rio de Janeiro e das instituições. Segundo ele, as
milícias estão muito bem instaladas e para abalar as suas estruturas seria
necessário sufocar suas fontes de recursos:
* com os empreendimentos imobiliários,
* serviços de transportes clandestinos,
* fornecimento de água, luz, gás e gatonet.
Em outras palavras, fragilizar o seu poder e
priorizar a punição dos responsáveis. É fato.
Mais do que isso, é necessário passar a limpo a
forma como o crime organizado começou a se imiscuir no Estado e tentou dobrar a
democracia. É isso que está em jogo no esclarecimento do crime. Fazer essa apuração
é um modo de fortalecer as instituições, mas sobretudo uma forma de homenagear
Marielle e Anderson Gomes. Esse esclarecimento é o mínimo que a sociedade pode
fazer para honrar suas memórias.
• Crimes
políticos que abalaram o país
O caso Marielle é um dos crimes políticos mais
chocantes da história nacional e se iguala a outros episódios que abalaram o
País.
Representante do feminismo e da esquerda, ela se
tornou ícone nacional em um momento em que as milícias expandiam seus
tentáculos na sociedade fluminense, no mundo político e na própria estrutura de
Estado.
Já dois outros casos na redemocratização expuseram
a tensão entre a luta ambiental e a exploração criminosa na Amazônia. Em 12 de
fevereiro de 2005, a missionária católica americana Dorothy Stang foi
assassinada no município de Anapu (PA), a mando de fazendeiros.
Outra vítima foi o maior líder ambientalista do
País, Chico Mendes. Sindicalista e seringueiro, ele combatia o desmatamento
ilegal. Foi assassinado em 22 de dezembro de 1988.
Os assassinatos do jornalista britânico Dom
Phillips e do indigenista Bruno Pereira, em 5 de junho do ano passado, mostram
que a luta ambiental permanece como uma das maiores causas de atentados
políticos na história recente.
Outro bárbaro assassinato político foi o do petista
Celso Daniel, em 18 de janeiro de 2002. Há controvérsias sobre o crime. As
linhas de investigação esbarram em esquemas de propina, extorsão e corrupção em
Santo André (SP), cidade em que era prefeito.
Nenhum crime político, no entanto, supera o
atentado da rua Toneleros, em 1954. A tentativa frustrada de assassinato de
Carlos Lacerda, opositor de Getúlio Vargas, mudou a história do Brasil. As
investigações apontaram que o mandante foi Gregório Fortunato, chefe de
segurança de Getúlio. Acuado, o então presidente diz que havia sido traído. O
caso levou ao colapso do governo, com o suicídio de Getúlio em 27 de agosto de
1954.
Fonte: IstoÉ
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