GUERRA SANTA: Padre de Monte Santo abre estrada em área proibida e
semeia discórdia entre fiéis
No final do Seculo XVIII, ao avistar a serra do
Piquaraçá, no atual município de Monte Santo, no sertão da Bahia, o apóstolo
italiano Apolônio de Todi, num transporte místico, teve uma visão celestial. Parou,
com aquela tranquilidade beatífica dos santos, pensou e planejou criar uma
capela para exaltar a Jesus Cristo. Os sertanejos da região o ajudaram no
empreendimento de fé. Nascia ali a Serra da Santa Cruz, mais conhecida como
Monte Santo. O nome original da serra ficara para trás. Segundo Euclides da
Cunha, no clássico Os Sertões, a serra "era um prodígio de engenharia rude
e audaciosa".
Mais de duzentos anos depois, ao olhar para o mesmo
cenário de romarias (e de uma procissão que atrai milhares de pessoas na
Sexta-Feira da Paixão), o padre Nelso Nicolao, administrador da Paróquia do
Sagrado Coração de Jesus, que cuida do santuário do Monte Santo, também teve
uma visão. Não mística, como a do frei Apolônio de Todi, mas bastante terrena.
Ele decidiu abrir uma estrada na serra alegando que era para facilitar o
acesso, ao Monte Santo, de fiéis e romeiros com dificuldade de locomoção.
Doentes, idosos e cadeirantes seriam os principais beneficiados. A estrada foi
aberta. Primeiro no trabalho manual. Depois - como nos pontos mais altos a
rocha era mais dura - com o auxilio de uma retroescavadeira.
Com 1.800m de cumprimento por 2,5 de largura - o
suficiente para passar uma caminhonete - a estrada custou R$ 19,5 mil reais e
teria saído por R$ 200 mil, se fosse aberta toda a picaretas, segundo o padre
Nicolau, responsável pela obra. Até aí tudo bem, um caminho mais curto. Seria
apenas isso, se a senda alternativa da fé não tivesse sido construída num lugar
tombado pelo Patrimônio Histórico. Em 1983, a antiga Secretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), hoje Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN), decretou o tombamento da Serra da Santa Cruz, com
base no Decreto Lei de 1937, que regulamenta a preservação dos sítios históricos,
arquitetônicos, culturais e artísticos do Brasil. Com isso, nada poderia ser
feito na serra sem o conhecimento, a discussão e a autorização do IPHAN. Estava
armada a celeuma.
Erigida, no imaginário montessantense, o Monte da
Discórdia. Pois a obra granjeou ferrenha oposição dos defensores locais do
patrimônio histórico e da tradição religiosa de subir o morro pelo caminho
secular dos peregrinos. E a pé. Um dos mais aguerridos opositores da
"estrada do padre", como muitos a chamam de maneira irônica, é o
arquiteto Timóteo Ferreira, especialista em sítios históricos que, desde 2010,
estuda a Serra da Santa Cruz. Nativo e líder da Associação dos Pequenos
Produtores da Fazenda Acará - de pequenas unidades quilombolas na zona rural de
Monte Santo -, Ferreira acusa a igreja católica de querer "mercantilizar o
turismo religioso de forma absurda", com a abertura da polêmica estrada, e
posterior cobrança de pedágio para o acesso de carros e caminhonetes 4x4.
"Ora, é como diz em Salvador, na Festa do Bonfim: quem tem fé vai a
pé", provoca.
Conforme o arquiteto, a Serra da Santa Cruz está
tombada em três escalas: paisagística, cultural e arquitetônica e nada pode ser
mexido, sem a autorização do IPHAN, até no entorno do morro num raio de 15km,
incluindo o sopé. No Instagram, Ferreira postou uma série de vídeos em que
denuncia a ação da igreja católica da paróquia de Monte Santo, vinculada à
Diocese de Senhor do Bonfim, como "um crime no sentido da intervenção em
um sítio de relevância internacional, colocando em risco a fauna e flora".
Em um dos vídeos, ele afirma que "não se pode perder esse rico patrimônio
histórico, cultural e ambiental para a ignorância’".
• Guerra
Santa na terra de Deus e o Diabo
Nessa Guerra Santa no morro em que, em 1964, o
cineasta Glauber Rocha filmou a cena do massacre dos fiéis cometido por Antonio
das Mortes - personagem de Deus e o Diabo na terra do Sol, interpretado por
Maurício do Valle - quem primeiro se insurgiu contra a abertura da estrada foi
o produtor rural e artista plástico Ivan Santana. "Essa obra me incomodou
bastante porque Monte Santo é a minha cidade, pela qual eu tenho uma relação de
afeto e pertencimento", reflete. Santana classifica a nova estrada como o
passo inicial para o turismo excludente. "A igreja acha que é soberana e
que pode tudo. Ela quer transformar a Serra da Santa Cruz num Cristo Redentor
para turistas. Que pense em outra forma de acessibilidade. No morro se sobe
pela fé", ressalta o artista plástico.
Em um artigo publicado no Instagram e intitulado
"Mercenários da Fé", Ivan Santana pergunta de chofre: "A quem
interessa uma intervenção descabida, criminosa em um Santuário construído em
1785 e tombado? O crime, além de ser contra um patrimônio histórico, se
caracteriza como um delito ambiental e ecológico contra uma área protegida por
lei federal". No mesmo artigo, o artista plástico acusa a igreja católica
de Monte Santo de "desmatar, deslocar pedras e descaracterizar para
construir uma estrada para carros e motocicletas que dá acesso para um lugar mitificado
pelo povo como um espaço sagrado de devoção e fé". Ele ainda sublinha que
"não serão os devotos que irão subir por esta estrada horrorosa e de
péssimo gosto, porque o devoto e o romeiro fazem o caminho tradicional, o
caminho da fé, o que faz sentido no cumprimento de sua promessa".
Ivan Santana confessa que escreveu o texto
"doente e indignado" e diz esperar que "o IPHAN tenha a decência
de intervir para reverter essa situação que nos deixa em choque". Sobre o
artigo, o padre Nelso Nicolao enviou como resposta, ao artista plástico, um
vídeo em que confirma o projeto de se fazer a estrada para romeiros com
dificuldade de locomoção. Garante, ainda, que a obra não causou danos
ambientais, porque foi feita onde existia pouca vegetação e onde não tinha
quase pedras para tirar. Assegura, por fim, que não se fez uma estrada para
carros e motos da burguesia, mas pra contemplar um público que historicamente
ficou de fora das romarias e das procissões.
Natural de Monte Santo, e atualmente trabalhando na
Câmara dos Deputados em Brasília, o jornalista Wallas Henrique está elaborando
um dossiê, inclusive com laudos técnicos, sobre a construção da estrada na
Serra da Santa Cruz. Ele quer aproveitar a proximidade do poder para tentar
embargar a obra. Wallas afirma que a estrada é um "crime ambiental" e
que foi construída sem um plano de contingência. "O mais revoltante é
desmanchar a nossa história", aponta o jornalista.
Em um artigo com o título Conversa sobre Patrimônio
e o Descaminho na Serra da Santa Cruz de Monte Santo da Bahia", Wallas
Henrique informa que o santuário da serra está localizado a 490 metros do nível
do mar e que a via sacra é composta por um caminho de pedras com 2 km de
extensão, ao longo do qual se distribuem 25 capelas votivas, lugar que
constitui um dos mais importantes marcos dos movimentos de peregrinação
religiosa do Brasil. Lembra, ainda, que, em 1983, o lugar foi reconhecido pela
SPHAN como patrimônio nacional por seu valor paisagístico, arquitetônico e
histórico, numa ação de preservação pioneira no Brasil.
Para o jornalista, a construção da estrada - e a
adulteração crescente - expõe a riscos, diretos e indiretos, a manutenção da
ambiência histórica, natural e cultural da cidade. O jornalista prossegue
afirmando que "neste caso, a poligonal de tombamento (portanto limite) é
definida a partir da cota 500 e determina a proteção do monumento e sua área de
entorno". Termina dizendo que "conservar o santuário é, não apenas um
dever de preservação da cultura, mas, principalmente, um ato de valorização do homem
da terra, o vaqueiro, o pequeno criador, o dono ou empregado de uma
rocinha".
• A voz
do padre
Em resposta à solicitação de entrevista ao Correio,
o padre Nelso Nicolao encaminhou uma nota de esclarecimento na qual informa que
o plano de construir uma estrada alternativa na Serra da Santa Cruz, na trilha
em que o Padre Berenguer (Monsenhor Francisco de Paula Berenguer Cesar,
histórico religioso da região) subia montado a cavalo, já vinha sendo pensado
há dois anos, por um grupo da Comunidade Católica de Monte Santo.
Padre Nicolao salmodia que a obra foi feita
"pensando em dar a alegria aos irmãos e às irmãs romeiros com deficiência
física, de chegar ao Santuário para cumprir suas promessas de agradecimento, a
Deus louvar e entregar-se ao Cristo Crucificado para encontrar graças diante de
seus sofrimentos, sendo, portanto, um caminho da fé para este grupo de
pessoas". O religioso observa que o Santuário é um bem para todos e que,
por isso, a igreja tem a obrigação de facilitar para que seja um direito de
todos.
O padre admite que "em vista deste bem maior,
foi necessário sacrificar um pouco a natureza, mesmo que um tanto contrariados
por ter que mexer num patrimônio histórico". Padre Nicolao assegura que a
área desmatada será em breve reflorestada, com plantas adaptadas ao patrimônio
histórico como macambira, mandacaru, umburana de cambu, araçás e outras
vegetações rasteiras. A nota indica que a obra vai prosseguir com a construção
de um portão no pé da serra. O acesso será apenas para três carros credenciados.
O portão terá um telefone. O dinheiro para a obra foi emprestado generosamente
por uma pessoa de fé e será pago em 15 parcelas mensais. Por fim, o padre
Nicolao diz que "esse caminho não foi feito para ser instrumentalizado por
politicagem e outros abusos" e que era necessário ser construído há muito
tempo.
Integrante do Ministério Público, o promotor
substituto da Comarca de Monte Santo, Marcelo Cerqueira César, recebeu uma
representação para embargar a obra, mas como se tratava de uma área tombada declinou
da atribuição, em 15 de junho passado, em favor do Ministério Publico Federal
(MPF), em Campo Formoso. O MP em Salvador também foi acionado para falar sobre
o assunto, mas não deu resposta até o fechamento desta edição. O mesmo ocorreu
com o IPHAN, contatado na quinta-feira, cuja assessoria de imprensa pediu
solicitação por e-mail, o que prontamente foi feito.
A Serra do Monte Santo, por onde andou o líder
religioso de Canudos, Antonio Conselheiro, é descrita por Euclides da Cunha, em
Os Sertões, como "uma paragem impressionadora". O segundo capítulo da
primeira parte da epopéia sertaneja, A Terra, chama-se Do alto do Monte Santo,
de onde o panorama se estende por 15 léguas (90 km). Para Euclides, Monte Santo
é um lugar lendário e é, justamente, nessa lenda que se mexeu, gerando
apoiadores e descontentes fervorosos. Se no Antigo Testamento, Moisés abriu o
Mar Vermelho para fugir com seu povo do cativeiro do Egito em busca da Terra
Prometida, em Monte Santo, um padre abriu um morro. Não esperou que a montanha
fosse a até ele como no popular ditado sobre Maomé. Ele mesmo foi até a
montanha que agora pode ser chamada de Monte da Discórdia.
Fonte: Correio
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