Deputado da peruca
usa estudo falso para defender armas
O
deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) apresentou um projeto de lei em
fevereiro para facilitar o acesso a armas em que utiliza um artigo publicado em
um jornal de estudantes de Harvard.
O
texto, no entanto, foi refutado por um diretor da própria instituição
norte-americana. A informação foi noticiada pelo site The Intercept Brasil e
confirmada pelo UOL Confere.
O
projeto foi apresentado pelo deputado à Câmara em 11 de fevereiro deste ano,
pouco mais de um mês após o presidente Lula derrubar os decretos do antecessor,
Jair Bolsonaro, que facilitavam o acesso a armas.
Dois
trechos do suposto estudo são citados na justificativa do projeto de lei pelo
parlamentar —apoiador do ex-presidente.
Na
primeira menção, o deputado apresenta o texto como um “estudo da universidade
de Harvard com o título ‘o controle de armas é contraproducente'”. Em seguida,
destaca um trecho que afirma que “o assassinato por estrangulamento, esfaqueamento
ou espancamento é muito mais frequente.”
Na
segunda menção, cita os autores, Don Kates e Gary Mauser, e define o trabalho
como “estudo minucioso acerca da temática sobre leis de armas e violência nos
Estados Unidos e Europa”.
No
projeto de lei, o deputado omite a informação de que o suposto estudo foi
veiculado em uma publicação organizada por estudantes, o “Harvard Journal of
Law e Public Policy”, em 2007.
O
site do próprio jornal afirma que a publicação é produzida por estudantes e tem
como objetivo “estudos jurídicos conservadores e libertários”.
Nikolas
também não informa que o artigo foi refutado dentro da própria universidade.
Em
2009, o diretor do Centro de Pesquisa de Violência de Harvard, David Hemenway
—no cargo desde 1998—, descredibilizou o artigo. Hemenway é graduado em
Harvard, além de ter um doutorado pela instituição. Ele recebeu dez prêmios de
ensino pela Escola de Saúde Pública de Harvard.
Não
parece ser um jornal revisado por pares, ou um que busca a verdade em vez de
apresentar uma certa visão de mundo.
O
artigo em si não é científico, mas uma polêmica, afirmando que a
disponibilidade de armas não afeta homicídio ou suicídio” - David Hemenway,
diretor do Centro de Pesquisa de Violência de Harvard.
O
verdadeiro título do suposto estudo também não é o citado pelo deputado no
projeto. “O controle de armas é contraproducente” é o título de um texto
publicado em um site que cita os mesmos trechos do artigo que constam no
projeto de lei.
O
site é da ACRU, uma organização norte-americana pró-armas, fundada em 1999, que
se define como protetora dos “direitos concedidos por Deus descritos na
Constituição dos EUA”.
O
título original do texto citado no projeto de lei é, na verdade: “Proibir armas
de fogo reduziria assassinatos e suicídios? Uma revisão de evidências
internacionais e algumas domésticas”.
Em
consulta no dia 30 de junho ao artigo original, o UOL Confere identificou que
ele estava fora do ar.
Nem
a página da ACRU, nem o PL do deputado citam a fonte dos dados mencionados no artigo
ou fornecem o link para o texto original.
Don
B. Kates Jr (1941-2016) e Gary Mauser, autores do artigo citado por Nikolas
Ferreira, não estudaram ou lecionaram em Harvard. A única relação dos dois com
a instituição é a publicação de artigos no jornal organizado por estudantes,
como mostram suas biografias publicadas em sites de institutos que atuaram como
colaboradores.
Procurada,
a assessoria do deputado Nikolas Ferreira não se manifestou. Caso haja
resposta, o texto será atualizado.
LEIA
A REPORTAGEM DE PAULO MOTORYN NO THE INTERCEPT
• PROJETO DE LEI DE NIKOLAS FERREIRA É
BASEADO EM 'ESTUDO DE HARVARD' QUE HARVARD REFUTOU EM 2009
No
dia 5 de janeiro, o jovem bolsonarista Nikolas Ferreira, do PL, ainda não havia
tomado posse como deputado federal. Mais votado de Minas Gerais nas eleições do
ano passado, naquele dia, ele disse a uma rádio mineira qual seria sua primeira
medida no Congresso: desburocratizar e facilitar o acesso de armas a civis.
“No primeiro dia, eu já quero protocolar um
projeto de lei a respeito do armamento civil. A gente teve aí a derrubada dos
decretos anteriores do Bolsonaro pelo Lula”. Dito e feito. No dia 11 de
fevereiro, o recém-empossado deputado protocolou o tal projeto de lei na Câmara
dos Deputados.
O
que chama a atenção é que a principal fonte de informação utilizada pelo
parlamentar no Projeto de Lei nº 456/2023 é um suposto “estudo de Harvard”. No
rodapé da justificativa do projeto, apontado como referência bibliográfica em
duas passagens do texto, um link direciona para um site de uma organização dos
Estados Unidos que não tem qualquer relação com a renomada Universidade de
Harvard. Na página, porém, é mencionado o título do suposto estudo, intitulado
“Would Banning Firearms Reduce Murder and Suicide? A Review of International and Some Domestic Evidence”, que teria sido
publicado no “Harvard Journal of Law and Policy”, em 2007.
O
problema é que essa publicação, de autoria de dois ativistas pró-armas, o
norte-americano Don B. Kates e o canadense Gary Mauser, foi refutada há mais de
14 anos, em junho de 2009, pelo atual diretor do Centro de Pesquisa de Controle
de Lesões de Harvard e Centro de Prevenção de Violência Juvenil de Harvard. Na
época, David Hemenway publicou um texto no próprio site da universidade – esse,
sim, no ar até hoje –, desmentindo e classificando o suposto estudo como
“desinformação”.
Depois
de refutar o estudo citado por Nikolas em oito aspectos diferentes, utilizando
como referência 16 artigos acadêmicos, Hemenway conclui: “é simplesmente uma
polêmica parcial, geralmente enganosa, e não merece muita atenção”, disse o
acadêmico em 2009.
Nada
disso impediu Nikolas de basear seu projeto no artigo. Como se não bastasse a
desinformação promovida pelo próprio estudo, o deputado brasileiro foi além:
segundo ele, o artigo de Kates e Mauser tem o título “Contraproducência do
controle de armas”. O título mencionado pelo deputado, nunca foi adotado, nem
mesmo de forma abreviada – e seria “um estudo minucioso acerca da temática
sobre leis de armas e violência nos Estados Unidos e Europa”, conforme define.
• Nem ‘estudo’, nem ‘de Harvard’
Mesmo
refutado há mais de uma década, o suposto “estudo de Harvard” também é usado de
forma fraudulenta por defensores do movimento armamentista nos Estados Unidos.
Em 2018, o projeto de jornalismo investigativo The Trace, que apura as
consequências da violência por arma de fogo em território norte-americano,
publicou uma detalhada checagem do material mencionado no PL de Nikolas
Ferreira.
O
título da reportagem diz o seguinte: “Estudo de Harvard abraçado pelos
defensores do direito às armas não é nem um ‘estudo’, nem de ‘Harvard'”. O
subtítulo, por sua vez, afirma: “Ao contrário das afirmações de seus autores,
ele não prova que mais armas resultam em menos crimes”.
A
checagem do The Trace aponta que o estudo não foi conduzido por pesquisadores
vinculados à Universidade de Harvard, como Nikolas Ferreira sugere. Na verdade,
Don B. Kates, que morreu em 2018, foi um advogado e ativista pró-armas apoiado
pela NRA (National Rifle Association). Gary Mauser, por sua vez, é um defensor
conhecido de armas de fogo no Canadá, que nunca estudou ou deu aulas em
Harvard. A única relação do suposto estudo com a universidade norte-americana é
que ele foi, de fato, veiculado na revista Harvard Journal of Law & Public
Policy – mas a publicação não segue os padrões acadêmicos convencionais e não
possui revisão por pares, tampouco ficou
hospedada no site da universidade.
Além
disso, o The Trace destaca que o trabalho de Kates e Mauser não atende aos
critérios mínimos de um estudo acadêmico, pois não apresenta uma análise
estatística adequada. Em vez disso, os autores realizam comparações subjetivas
e duvidosas de dados suspeitos, sem construir um único modelo estatístico. A
checagem também expõe outras várias falhas graves no estudo. Por exemplo, os
autores comparam países com condições socioeconômicas e culturais muito
diferentes, o que compromete qualquer conclusão significativa sobre a eficácia
do controle de armas. Além disso, eles baseiam parte de sua análise em dados
incorretos de um país pequeno, Luxemburgo, e ignoram evidências que mostram que
reduzir o acesso a armas de fogo salva vidas, especialmente em relação ao
suicídio.
O
estudo citado por Nikolas também faz referência ao trabalho de John Lott, que
defende a teoria de que mais armas levam a menos crimes. No entanto, o The
Trace aponta que cinco importantes críticas ao trabalho de Lott foram ignoradas
ou minimizadas por Kates e Mauser.
A
checagem conclui que o artigo de Kates e Mauser não pode ser considerado um
estudo acadêmico válido e que suas conclusões são inconsistentes com a
evidência existente – ou seja, falsos – e pretendem promover a violência.
Como
aponta o The Trace, apesar de fraudulento, o artigo de Kates e Mauser
inevitavelmente será recirculado repetidamente – além de aparecer no PL de
Nikolas. De forma paradoxal, isso acontece porque bolsonaristas e trumpistas,
lá e aqui, acreditam que ele é um “estudo de Harvard”. O curioso é que ciência,
universidade e academia são, invariavelmente, o foco dos ataques da extrema
direita. Como diziam os eleitores de Bolsonaro após a vitória do Trump, em
2016, “acontece nos Estados Unidos, acontece no Brasil”.
STF anula trechos do decreto pró-armas de
Bolsonaro
O
Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou, por unanimidade, a eficácia de
trechos de quatro decretos editados por Jair Bolsonaro (PL) que flexibilizam as
regras para aquisição e porte de armas de fogo. O julgamento, feito em plenário
virtual, terminou nesta sexta-feira (30).
Entre
os dispositivos estão o que afasta o controle do Comando do Exército sobre a
aquisição e registro de alguns armamentos e equipamentos e o que permite o
porte simultâneo de até duas armas de fogo por cidadãos.
As
regras já tinham sido suspensas pela ministra Rosa Weber em 2021, e os decretos
foram revogados. O tema, porém, ainda precisava ser analisado pelos demais
ministros para servir como base para análise de possíveis futuros casos.
Na
ocasião, Rosa afirmou que havia necessidade da análise imediata dos pedidos
cautelares em razão da iminência da entrada em vigor dos decretos (60 dias após
sua publicação).
As
normas também diminuíam a fiscalização do Exército sobre a circulação de armas.
Elas chegaram a ser criticadas no Congresso sob o argumento de que as
alterações deveriam ser feitas por lei, e não por decisão individual do chefe
do Executivo.
Rosa
considerou que as regras são incompatíveis com o sistema de controle e fiscalização
de armas instituído pelo Estatuto do Desarmamento e ultrapassam os limites do
poder regulamentar atribuído ao presidente da República pela Constituição.
“Tenho
por suficientemente evidenciado, pelo menos em juízo preliminar, fundado em
cognição sumária inerente aos pronunciamentos judiciais cautelares, que os
decretos, ao reformularem a Política Nacional de Armas, excederam aos limites
constitucionais inerentes à atividade regulamentar do chefe do Poder
Executivo”, disse.
Além
disso, afirmou que os regulamentos executivos servem para dar aplicabilidade às
leis, devendo-lhes observância ao seu espaço restrito de delegação.
“Em
uma ordem jurídica, fundada nos pilares da democracia constitucional e do
Estado de Direito, o respeito ao espaço legislativo é requisito de validade
constitucional.”
A
relatora apontou, ainda, vulneração a políticas públicas de proteção a direitos
fundamentais e que é dever do Estado promover a segurança pública como
corolário do direito à vida.
A
ministra também revogou diversos trechos que facilitavam a compra de armas e
munições dos CACs, abreviação dada aos caçadores, atiradores e colecionadores.
Rosa
Weber suspendeu, por exemplo, a autorização para prática de tiro recreativo em
clubes voltados para isso sem que haja registro prévio dos praticantes.
A
ministra suspendeu a redução da idade mínima para praticar tiro de 18 para 14
anos e invalidou a autorização para escolas de tiros comprarem munição em
quantidade ilimitada.
Em
outro ponto, ela manteve a necessidade de credenciamento na Polícia Federal do
psicólogo que comprova aptidão psicológica dos CACs para compra de armas, o que
não era mais exigido pelo decreto de Bolsonaro.
Fonte:
UOL/Valor Econômico/Fórum
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