Disputa pela agenda econômica ou contra os fatos?
Em texto recente para esta tribuna a respeito do sentido
econômico do governo Lula, a economista Camila
de Caso defendeu que o governo Lula entende “o Estado como indutor do
crescimento econômico”. Tal crescimento seria, por sua vez, resultado da
distribuição de renda e do aumento do mercado interno. Nisso, considerando a
relevância desses dois fatores dinamizadores, seria possível alinhar a atual
gestão federal à “tradição desenvolvimentista”. Seriam equivocadas, portanto,
as análises que, na sua visão, ao tomar o todo pela parte, denominam a agenda
econômica do governo como “neoliberal”. Estariam elas, segundo a especialista,
distantes do exame das complexidades e entregues a explicações superficiais.
Salta
aos olhos, entretanto, que a análise da agenda econômica de Lula 3 realizada
pela economista omite aquele que é, sem espaço para dúvidas, o principal
balizador da política econômica do atual governo, isto é, o assim chamado novo
arcabouço fiscal.
A
economista está correta quando aponta que a agenda neoliberal propõe a redução
dos gastos públicos e do protagonismo estatal, por meio de reformas na
Constituição. Nessa visão, argumenta, o crescimento econômico se dá pela
melhora das condições de oferta da economia e, poderíamos acrescentar, graças à
atuação predominante do setor privado. Mas, afinal, o que prevê o novo
arcabouço fiscal, a presença ausente em seu artigo?
Como
se sabe, o arcabouço é uma regra fiscal organizada em um tripé. Em primeiro
lugar, ela estabelece uma banda para o crescimento do gasto público. Assim,
prevê um piso e um teto para o crescimento anual real dos gastos do governo. De
um ano para o outro, o aumento dos gastos não pode ser menor que 0,6%, nem
maior que 2,5% do crescimento dos gastos do ano anterior. Isso respeitando o
limite de até 70% das receitas.
Além
disso, em segundo lugar, o arcabouço estabelece uma meta de resultado primário
(receitas menos despesas do governo, excluídos os gastos com juros da dívida)
escalonável. A meta pressupõe que se o governo não cumprir a meta inferior de
cada ano (o resultado primário ficar abaixo da banda inferior) aciona-se um
gatilho e o limite para o aumento dos gastos cai de 70% para 50% da variação
das receitas. Por sua vez, se o governo exceder a banda superior, é permitido a
ele usar este excedente em investimentos.
Finalmente,
o terceiro pé da regra fiscal diz justamente respeito ao piso para
investimentos, de 0,6% do PIB, o que representou cerca de R$ 68 bilhões neste
ano. Ainda que estes últimos possam ser contingenciados na medida em que não há
obrigação de execução, mas apenas o valor que deve constar na lei orçamentária
anual. Isto é, os investimentos, fundamentais para o crescimento sustentado ao
longo do tempo, serão uma das principais parcelas de gastos a sofrer
contingenciamentos se isso for necessário para o cumprimento das duras metas de
resultado primário.
O
novo “teto de gastos”, como a ele se referiu o próprio ministro Fernando
Haddad, em esclarecedora entrevista recente à jornalista Mônica Bergamo, impõe, portanto, pesados limites para os gastos do Estado. Na
prática, visa mesmo a redução da atuação do Estado no interior da economia
brasileira. Não por acaso, Michel Temer, arquiteto do antigo teto, exaltou o
novo arcabouço fiscal em entrevista à revista Veja, descrevendo-o como uma mera antecipação da revisão prevista
para 2026. Ele afirmou: “Tenho muito orgulho de ter inaugurado a tese do teto
para os gastos públicos no país, a norma já previa uma revisão do teto, o que o
governo resolve fazer agora, com essa adaptação”. Em outra entrevista
pedagógica, o ex-ministro José Dirceu, insuspeito de antilulismo, declarou
ao jornalista Kennedy Alencar que
a regra fiscal proposta pelo governo foi resultado dos compromissos celebrados
pela então candidatura de Lula com os detentores do grande capital no país. A
esquerda deve se calar diante disso?
A
imposição do limite de gastos é a questão central e o principal problema do
novo teto de gastos. Em termos gerais, isso significa o estrangulamento da
capacidade do Estado como provedor de serviços públicos essenciais para a
população, além da limitação de sua atuação como agente indutor do crescimento
e desenvolvimento econômico. Isto é, os dados do Ministério da Fazenda indicam
o exato oposto do que o texto de De Caso quer nos fazer acreditar. Relatórios
recentes projetam que, se o arcabouço fiscal continuar em seu formato atual, a
participação do Estado na economia será drasticamente reduzida ao longo da
próxima década. Os números indicam que os gastos primários do governo em
relação ao PIB cairão de 19,6% em 2023 para apenas 17,1% em 2033, mesmo com um
crescimento econômico moderado de 2,5% ao ano.
Assim,
o novo teto de gastos no Brasil impede deliberadamente que o crescimento do PIB
seja impulsionado por investimentos públicos e gastos sociais, como ocorreu no
segundo governo Lula. Em vez disso, a estratégia atual de crescimento, centrada
no setor privado, é uma continuidade do modelo implantado durante o governo
Temer, caracterizado por desestatizações promovidas com apoio do governo
federal, crédito do BNDES, garantias da União para operações de privatização em
estados e municípios, e incentivos fiscais às empresas envolvidas nesse
processo de exploração. Trata-se de uma peculiar política de aceleração do
crescimento que marginaliza os investimentos públicos, afastando-se
completamente do que representava o antigo PAC. Portanto, não se pode dizer que
há uma ligação com o legado de Celso Furtado, quando ele, primeiramente falava
de desenvolvimento e não de crescimento econômico, e que de nenhum modo isso
estava articulado com um esvaziamento da capacidade de indução do Estado nos
investimentos em infraestrutura e produção.
E
vejamos como é, em um relatório da corretora XP Investimentos, o novo PAC não é visto como preocupante, já que não haverá
mudança estrutural por conta do que eles também chamam de teto de gastos: “Em
resumo, o programa de investimento não altera substancialmente nosso cenário
base. O PAC não aumenta o investimento público, mas reclassifica grande parte
desse investimento sobre o programa”. Também é no atual governo federal que o
Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) foi ampliado, possibilitando,
inclusive, a privatização de presídios e unidades do sistema socioeducativo,
com incentivos fiscais. Deixamos ao leitor o exercício de classificação dessas
políticas: desenvolvimentistas ou neoliberais?
Voltando
ao novo teto de gastos, em relação à noção do Estado como provedor dos serviços
públicos, o arcabouço de Haddad, ao limitar o crescimento das despesas, acaba
por impor uma lógica extremamente perversa de competição por verba entre as
diversas esferas de competência de atuação do Estado. Isso porque o limite de
gastos, mesmo permitindo um crescimento de 2,5% das despesas, não altera a
lógica inaugurada por Temer, como o próprio ex-presidente afirmou. Isto é,
considerando o aumento vegetativo de algumas despesas do governo, como o
previdenciário, o resultado lógico é de que o espaço para a execução
orçamentária dos demais gastos, como saúde, educação ou ciência e tecnologia,
por exemplo, tenda a diminuir ao longo do tempo.
É
exatamente essa disputa que vemos ser travada no país neste momento, e que
deverá ser agravada nos próximos anos. Como há uma imposição para o crescimento
total dos gastos, o crescimento de determinada despesa (como um aumento real do
valor das aposentadorias, por exemplo) impõe um limite para o crescimento
marginal dos demais gastos, ou até mesmo a sua redução. A isso poderíamos dar o
nome de desenvolvimentismo?
Basicamente,
o objetivo da regra fiscal do atual governo Lula, como aponta o artigo primeiro
da lei complementar n. 200, é a estabilização da dívida pública. Diz ele, em
seu parágrafo segundo, com grifos nossos: “A política fiscal da União deve ser
conduzida de modo a manter a dívida pública em níveis sustentáveis,
prevenindo riscos e promovendo medidas de ajuste fiscal em
caso de desvios, garantindo a solvência e a sustentabilidade intertemporal das
contas públicas”. Mas para quê a dívida pública deve ser mantida em “níveis
sustentáveis”?
A
ideia por trás desse imperativo, de acordo com as máximas da mainstream
economics que, levada ao paroxismo, desemboca na chamada “contração
fiscal expansionista”, é de que a retração dos gastos públicos leva ao aumento
da confiança dos agentes do setor privado. Assim, na medida em que eles
observam a trajetória declinante dos gastos governamentais e projetam a
sustentação dessa redução no futuro, eles aumentam seus gastos e investimentos
no presente. Esse gasto hoje, enfim, é o que geraria o crescimento econômico.
Seria
a nova regra fiscal proposta pelo governo desimportante para a caracterização
de sua agenda econômica? É evidente tratar-se de uma regra fiscal que pressupõe
uma concepção de economia segundo a qual o Estado deve, gradativamente,
diminuir sua participação na economia nacional, para que o setor privado, na
medida em que aumenta sua “confiança”, toma as rédeas do processo de
crescimento. Esse tipo de regra é o que compõe a chamada austeridade, política
que busca, por meio de um ajuste fiscal, preferencialmente por cortes de gastos,
moldar a economia. Assim, ao mostrar “responsabilidade” em relação aos gastos
públicos, a austeridade teria a suposta capacidade de reequilibrar a economia,
reduzir a dívida pública e produzir crescimento econômico.
No
mais, embora seja amplamente comprovado que políticas de contração fiscal não
promovem crescimento econômico, mas, ao contrário, ampliam a desigualdade e o
desemprego, mesmo que a narrativa extremista da “contração fiscal
expansionista” fosse válida e de fato desencadeasse um ciclo de crescimento
liderado pelo setor privado, ainda assim seria essencial questionar o
crescimento econômico como um fim em si mesmo.
Isto
é, para além do fato de o novo arcabouço fiscal ser um elemento de política de
austeridade fiscal, mais do que nunca é preciso repensar o crescimento
econômico como uma medida que por si só é benéfica para toda a sociedade. Basta
pensarmos que a ditadura militar e seu “milagre econômico” promoveu
crescimento, mas também pior ficaram as cidades, o ar, as águas, o clima, e o
poder de compra dos salários diminuiu. Isso deve nos lembrar que crescer, sem
pensar quem se beneficia dos ganhos econômicos e de sua distribuição, e se esse
crescimento gerará qualidade de vida para população, pode até parecer um
resultado promissor, mas não simboliza, necessariamente, bem-estar social.
É
certo que, como aponta a economista em seu artigo, Lula vem afirmando em
discursos que educação e saúde são investimentos e não gastos, mas as
investidas recentes do Ministério da Fazenda para a proposta de um pacote de
corte de gastos, a fim de garantir o cumprimento do arcabouço fiscal, deveria
nos deixar mais atentos às medidas práticas que vêm sendo realizadas pelo
governo.
Em recente discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente da República destacou a necessidade de esforços
globais para erradicar a fome e a insegurança alimentar, afirmando que “a fome
não é resultado apenas de fatores externos” e que “decorre, sobretudo, de
escolhas políticas”. É fundamental reconhecer que uma estrutura orçamentária
baseada no novo teto de gastos e no imperativo do déficit zero leva,
inevitavelmente, à desvinculação dos benefícios previdenciários e assistenciais
do salário mínimo, assim como ao desmantelamento dos pisos constitucionais que
asseguram os recursos mínimos para educação e saúde públicas. Essas não são
meras exigências técnicas, mas escolhas políticas deliberadas que perpetuam e
aprofundam a pobreza estrutural no país. A austeridade fiscal, nesse contexto,
representa a administração da miséria. Afinal, a alocação de recursos no
orçamento determina o progresso, a estagnação ou o retrocesso de diversas lutas
históricas e fundamentais para a classe trabalhadora.
É
sabido que o governo Lula é fruto de uma frente ampla, com representação de
setores burgueses dentro do próprio governo, e não somente como agentes
externos. O alerta que fazemos sobre o novo arcabouço fiscal é que ele é uma
camisa de força do próprio governo, que leva a política de cortes de gastos
sociais e que a frustração do povo é um terreno fértil para o crescimento da
extrema direita, vide a eleição dos Estados Unidos. Dessa forma, é falso
estabelecer uma dicotomia entre a crítica da política econômica de austeridade
e a luta contra a extrema direita. Inclusive foram articulações e críticas como
o Manifesto contra o pacote antipopular que ajudaram a desidratar parte das medidas de ajuste do
governo.
Finalmente,
cabe uma consideração em relação aos alertas citados pela autora, como a
taxação das grandes fortunas e o enfrentamento pelo fim das desonerações,
pautas fundamentais para a esquerda brasileira. Mesmo que essas medidas fossem
aprovadas, infelizmente, elas não alterariam o sentido do novo teto de gastos
que exige, como o próprio ministro Haddad admite, cortes recorrentes e
estruturais nos gastos sociais. Além disso, é importante destacar que o governo
perdeu uma oportunidade ao liberar sua base de parlamentares para votar
conforme desejassem, o que incluiu votos contrários ao destaque do PSOL pela
taxação das grandes fortunas. Já em relação ao projeto de lei das desonerações,
o governo federal e a maioria da bancada do PSOL orientaram voto favorável,
justificando a medida como promotora de justiça tributária e geração de
empregos. No entanto, essa decisão implicou não apenas a manutenção de
privilégios fiscais para grandes setores econômicos, mas também a adoção de
compensações que resultaram em cortes no Benefício de Prestação Continuada
(BPC) e no Seguro Defeso, penalizando os mais pobres.
Na
visão de De Caso, estaríamos diante de um governo em disputa. Para ela, “caso o
governo adote uma política monetária e fiscal contracionistas”, os resultados
na vida das pessoas “podem ser danosos”. O emprego do condicional, também aqui,
surpreende. Afinal, não se trata justamente disso que está sendo executado? Ou
o novo arcabouço proposto pelo governo e aprovado pelo Congresso, amplamente
celebrado e defendido pelos agentes e economistas de mercado, representa uma
política fiscal expansionista? Isso para não falarmos da política monetária,
hoje conduzida pelo presidente bolsonarista do Banco Central Campos Neto, é
verdade, mas sobre a qual as recentes declarações e votos no Copom do indicado
por Lula, Gabriel Galípolo, dão pouco espaço à esperança.
Já
foi argumentado, em texto célebre da disciplina, que a economia, em muitos de
seus aspectos, se assemelha ao exercício retórico. De Caso diz perseguir o
objetivo de avaliar o governo para além do maniqueísmo, que seria o caso
daqueles que o veem como neoliberal. Afirma que, para isso, tais análises
avaliam com “microscópio” cada política do governo, sem considerar a luta de
classes e os interesses envolvidos na sua definição. Concordando com a autora
nas profundas limitações de análises de políticas estritamente parciais, que
não consideram os contextos sociais nos quais estão inseridas, não nos parece
que simplesmente desconsiderar a principal política econômica
do governo, em análises como essas, seja muito produtivo.
Afinal
de contas, se é certo que ele visa satisfazer os interesses dos grandes detentores
de riqueza e rentistas do país, quem, afinal, propôs ao Congresso o novo
arcabouço fiscal? É possível questioná-lo e problematizá-lo ou, como bradava
outra liderança política amiga íntima da austeridade, there is no
alternative?
·
Lula manda recado ao
mercado: "torce contra"
O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou, nesta quarta-feira (4), um recado
direto ao mercado financeiro, rebatendo as projeções pessimistas para o PIB
diante dos recentes dados que confirmam o crescimento robusto da economia
brasileira. Lula afirmou que o mercado torce contra o retorno à normalidade
econômica e a melhora na qualidade de vida da população, reforçando seu
compromisso com o avanço social e econômico do país.
"O
PIB de 2024 não vai ser 1,5% como o mercado previu, vai ser maior que 3%. E aos
poucos vamos retomando a normalidade e melhorando a vida dos brasileiros,
apesar de quem torce contra", escreveu Lula na plataforma X.
Mais
cedo, dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) mostraram que a economia brasileira cressceu 0,9% no terceiro trimestre
na comparação com os três meses anteriores. Na comparação com o segundo
trimestre de 2023, o PIB teve alta de 4,0%. No acumulado do ano até setembro, o
Brasil acumula crescimento de 3,3% em relação ao mesmo período de 2023.
¨
Tebet afirma que o
mercado financeiro "joga contra o Brasil"
A
elevada rejeição do mercado financeiro ao governo do presidente Luiz Inácio
Lula “não é imparcialidade, mas jogar contra o Brasil”, disse a ministra do
Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, nesta quinta-feira (5), durante
cerimônia de inauguração do Projeto Cerrado, nova fábrica da Suzano em Ribas do
Rio Pardo (MS), de acordo com o Valor Econômico.
Uma
pesquisa da Genial/Quaest, divulgada nesta quarta-feira (4), revelou um aumento
na reprovação ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no mercado
financeiro. O índice de rejeição, que era de 64% em março, saltou para 90%
entre gestores, economistas, analistas e operadores de fundos de
investimento.
O
índice vem apesar do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Dados
divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
mostraram que a economia brasileira cresceu 0,9% no terceiro trimestre na
comparação com os três meses anteriores. Na comparação com o segundo trimestre
de 2023, o PIB teve alta de 4,0%. No acumulado do ano até setembro, o Brasil
acumula crescimento de 3,3% em relação ao mesmo período de 2023.
Fonte:
Por Pedro Micussi, no Le Monde/Brasil 247
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