sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Disputa pela agenda econômica ou contra os fatos?

Em texto recente para esta tribuna a respeito do sentido econômico do governo Lula, a economista Camila de Caso defendeu que o governo Lula entende “o Estado como indutor do crescimento econômico”. Tal crescimento seria, por sua vez, resultado da distribuição de renda e do aumento do mercado interno. Nisso, considerando a relevância desses dois fatores dinamizadores, seria possível alinhar a atual gestão federal à “tradição desenvolvimentista”. Seriam equivocadas, portanto, as análises que, na sua visão, ao tomar o todo pela parte, denominam a agenda econômica do governo como “neoliberal”. Estariam elas, segundo a especialista, distantes do exame das complexidades e entregues a explicações superficiais.

Salta aos olhos, entretanto, que a análise da agenda econômica de Lula 3 realizada pela economista omite aquele que é, sem espaço para dúvidas, o principal balizador da política econômica do atual governo, isto é, o assim chamado novo arcabouço fiscal.

A economista está correta quando aponta que a agenda neoliberal propõe a redução dos gastos públicos e do protagonismo estatal, por meio de reformas na Constituição. Nessa visão, argumenta, o crescimento econômico se dá pela melhora das condições de oferta da economia e, poderíamos acrescentar, graças à atuação predominante do setor privado. Mas, afinal, o que prevê o novo arcabouço fiscal, a presença ausente em seu artigo?

Como se sabe, o arcabouço é uma regra fiscal organizada em um tripé. Em primeiro lugar, ela estabelece uma banda para o crescimento do gasto público. Assim, prevê um piso e um teto para o crescimento anual real dos gastos do governo. De um ano para o outro, o aumento dos gastos não pode ser menor que 0,6%, nem maior que 2,5% do crescimento dos gastos do ano anterior. Isso respeitando o limite de até 70% das receitas.

Além disso, em segundo lugar, o arcabouço estabelece uma meta de resultado primário (receitas menos despesas do governo, excluídos os gastos com juros da dívida) escalonável. A meta pressupõe que se o governo não cumprir a meta inferior de cada ano (o resultado primário ficar abaixo da banda inferior) aciona-se um gatilho e o limite para o aumento dos gastos cai de 70% para 50% da variação das receitas. Por sua vez, se o governo exceder a banda superior, é permitido a ele usar este excedente em investimentos.

Finalmente, o terceiro pé da regra fiscal diz justamente respeito ao piso para investimentos, de 0,6% do PIB, o que representou cerca de R$ 68 bilhões neste ano. Ainda que estes últimos possam ser contingenciados na medida em que não há obrigação de execução, mas apenas o valor que deve constar na lei orçamentária anual. Isto é, os investimentos, fundamentais para o crescimento sustentado ao longo do tempo, serão uma das principais parcelas de gastos a sofrer contingenciamentos se isso for necessário para o cumprimento das duras metas de resultado primário.

O novo “teto de gastos”, como a ele se referiu o próprio ministro Fernando Haddad, em esclarecedora entrevista recente à jornalista Mônica Bergamo, impõe, portanto, pesados limites para os gastos do Estado. Na prática, visa mesmo a redução da atuação do Estado no interior da economia brasileira. Não por acaso, Michel Temer, arquiteto do antigo teto, exaltou o novo arcabouço fiscal em entrevista à revista Veja, descrevendo-o como uma mera antecipação da revisão prevista para 2026. Ele afirmou: “Tenho muito orgulho de ter inaugurado a tese do teto para os gastos públicos no país, a norma já previa uma revisão do teto, o que o governo resolve fazer agora, com essa adaptação”. Em outra entrevista pedagógica, o ex-ministro José Dirceu, insuspeito de antilulismo, declarou ao jornalista Kennedy Alencar que a regra fiscal proposta pelo governo foi resultado dos compromissos celebrados pela então candidatura de Lula com os detentores do grande capital no país. A esquerda deve se calar diante disso?

A imposição do limite de gastos é a questão central e o principal problema do novo teto de gastos. Em termos gerais, isso significa o estrangulamento da capacidade do Estado como provedor de serviços públicos essenciais para a população, além da limitação de sua atuação como agente indutor do crescimento e desenvolvimento econômico. Isto é, os dados do Ministério da Fazenda indicam o exato oposto do que o texto de De Caso quer nos fazer acreditar. Relatórios recentes projetam que, se o arcabouço fiscal continuar em seu formato atual, a participação do Estado na economia será drasticamente reduzida ao longo da próxima década. Os números indicam que os gastos primários do governo em relação ao PIB cairão de 19,6% em 2023 para apenas 17,1% em 2033, mesmo com um crescimento econômico moderado de 2,5% ao ano.

Assim, o novo teto de gastos no Brasil impede deliberadamente que o crescimento do PIB seja impulsionado por investimentos públicos e gastos sociais, como ocorreu no segundo governo Lula. Em vez disso, a estratégia atual de crescimento, centrada no setor privado, é uma continuidade do modelo implantado durante o governo Temer, caracterizado por desestatizações promovidas com apoio do governo federal, crédito do BNDES, garantias da União para operações de privatização em estados e municípios, e incentivos fiscais às empresas envolvidas nesse processo de exploração. Trata-se de uma peculiar política de aceleração do crescimento que marginaliza os investimentos públicos, afastando-se completamente do que representava o antigo PAC. Portanto, não se pode dizer que há uma ligação com o legado de Celso Furtado, quando ele, primeiramente falava de desenvolvimento e não de crescimento econômico, e que de nenhum modo isso estava articulado com um esvaziamento da capacidade de indução do Estado nos investimentos em infraestrutura e produção.

E vejamos como é, em um relatório da corretora XP Investimentos, o novo PAC não é visto como preocupante, já que não haverá mudança estrutural por conta do que eles também chamam de teto de gastos: “Em resumo, o programa de investimento não altera substancialmente nosso cenário base. O PAC não aumenta o investimento público, mas reclassifica grande parte desse investimento sobre o programa”. Também é no atual governo federal que o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) foi ampliado, possibilitando, inclusive, a privatização de presídios e unidades do sistema socioeducativo, com incentivos fiscais. Deixamos ao leitor o exercício de classificação dessas políticas: desenvolvimentistas ou neoliberais?

Voltando ao novo teto de gastos, em relação à noção do Estado como provedor dos serviços públicos, o arcabouço de Haddad, ao limitar o crescimento das despesas, acaba por impor uma lógica extremamente perversa de competição por verba entre as diversas esferas de competência de atuação do Estado. Isso porque o limite de gastos, mesmo permitindo um crescimento de 2,5% das despesas, não altera a lógica inaugurada por Temer, como o próprio ex-presidente afirmou. Isto é, considerando o aumento vegetativo de algumas despesas do governo, como o previdenciário, o resultado lógico é de que o espaço para a execução orçamentária dos demais gastos, como saúde, educação ou ciência e tecnologia, por exemplo, tenda a diminuir ao longo do tempo.

É exatamente essa disputa que vemos ser travada no país neste momento, e que deverá ser agravada nos próximos anos. Como há uma imposição para o crescimento total dos gastos, o crescimento de determinada despesa (como um aumento real do valor das aposentadorias, por exemplo) impõe um limite para o crescimento marginal dos demais gastos, ou até mesmo a sua redução. A isso poderíamos dar o nome de desenvolvimentismo?

Basicamente, o objetivo da regra fiscal do atual governo Lula, como aponta o artigo primeiro da lei complementar n. 200, é a estabilização da dívida pública. Diz ele, em seu parágrafo segundo, com grifos nossos: “A política fiscal da União deve ser conduzida de modo a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, prevenindo riscos e promovendo medidas de ajuste fiscal em caso de desvios, garantindo a solvência e a sustentabilidade intertemporal das contas públicas”. Mas para quê a dívida pública deve ser mantida em “níveis sustentáveis”?

A ideia por trás desse imperativo, de acordo com as máximas da mainstream economics que, levada ao paroxismo, desemboca na chamada “contração fiscal expansionista”, é de que a retração dos gastos públicos leva ao aumento da confiança dos agentes do setor privado. Assim, na medida em que eles observam a trajetória declinante dos gastos governamentais e projetam a sustentação dessa redução no futuro, eles aumentam seus gastos e investimentos no presente. Esse gasto hoje, enfim, é o que geraria o crescimento econômico.

Seria a nova regra fiscal proposta pelo governo desimportante para a caracterização de sua agenda econômica? É evidente tratar-se de uma regra fiscal que pressupõe uma concepção de economia segundo a qual o Estado deve, gradativamente, diminuir sua participação na economia nacional, para que o setor privado, na medida em que aumenta sua “confiança”, toma as rédeas do processo de crescimento. Esse tipo de regra é o que compõe a chamada austeridade, política que busca, por meio de um ajuste fiscal, preferencialmente por cortes de gastos, moldar a economia. Assim, ao mostrar “responsabilidade” em relação aos gastos públicos, a austeridade teria a suposta capacidade de reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e produzir crescimento econômico.

No mais, embora seja amplamente comprovado que políticas de contração fiscal não promovem crescimento econômico, mas, ao contrário, ampliam a desigualdade e o desemprego, mesmo que a narrativa extremista da “contração fiscal expansionista” fosse válida e de fato desencadeasse um ciclo de crescimento liderado pelo setor privado, ainda assim seria essencial questionar o crescimento econômico como um fim em si mesmo.

Isto é, para além do fato de o novo arcabouço fiscal ser um elemento de política de austeridade fiscal, mais do que nunca é preciso repensar o crescimento econômico como uma medida que por si só é benéfica para toda a sociedade. Basta pensarmos que a ditadura militar e seu “milagre econômico” promoveu crescimento, mas também pior ficaram as cidades, o ar, as águas, o clima, e o poder de compra dos salários diminuiu. Isso deve nos lembrar que crescer, sem pensar quem se beneficia dos ganhos econômicos e de sua distribuição, e se esse crescimento gerará qualidade de vida para população, pode até parecer um resultado promissor, mas não simboliza, necessariamente, bem-estar social.

É certo que, como aponta a economista em seu artigo, Lula vem afirmando em discursos que educação e saúde são investimentos e não gastos, mas as investidas recentes do Ministério da Fazenda para a proposta de um pacote de corte de gastos, a fim de garantir o cumprimento do arcabouço fiscal, deveria nos deixar mais atentos às medidas práticas que vêm sendo realizadas pelo governo.

Em recente discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente da República destacou a necessidade de esforços globais para erradicar a fome e a insegurança alimentar, afirmando que “a fome não é resultado apenas de fatores externos” e que “decorre, sobretudo, de escolhas políticas”. É fundamental reconhecer que uma estrutura orçamentária baseada no novo teto de gastos e no imperativo do déficit zero leva, inevitavelmente, à desvinculação dos benefícios previdenciários e assistenciais do salário mínimo, assim como ao desmantelamento dos pisos constitucionais que asseguram os recursos mínimos para educação e saúde públicas. Essas não são meras exigências técnicas, mas escolhas políticas deliberadas que perpetuam e aprofundam a pobreza estrutural no país. A austeridade fiscal, nesse contexto, representa a administração da miséria. Afinal, a alocação de recursos no orçamento determina o progresso, a estagnação ou o retrocesso de diversas lutas históricas e fundamentais para a classe trabalhadora.

É sabido que o governo Lula é fruto de uma frente ampla, com representação de setores burgueses dentro do próprio governo, e não somente como agentes externos. O alerta que fazemos sobre o novo arcabouço fiscal é que ele é uma camisa de força do próprio governo, que leva a política de cortes de gastos sociais e que a frustração do povo é um terreno fértil para o crescimento da extrema direita, vide a eleição dos Estados Unidos. Dessa forma, é falso estabelecer uma dicotomia entre a crítica da política econômica de austeridade e a luta contra a extrema direita. Inclusive foram articulações e críticas como o Manifesto contra o pacote antipopular que ajudaram a desidratar parte das medidas de ajuste do governo.

Finalmente, cabe uma consideração em relação aos alertas citados pela autora, como a taxação das grandes fortunas e o enfrentamento pelo fim das desonerações, pautas fundamentais para a esquerda brasileira. Mesmo que essas medidas fossem aprovadas, infelizmente, elas não alterariam o sentido do novo teto de gastos que exige, como o próprio ministro Haddad admite, cortes recorrentes e estruturais nos gastos sociais. Além disso, é importante destacar que o governo perdeu uma oportunidade ao liberar sua base de parlamentares para votar conforme desejassem, o que incluiu votos contrários ao destaque do PSOL pela taxação das grandes fortunas. Já em relação ao projeto de lei das desonerações, o governo federal e a maioria da bancada do PSOL orientaram voto favorável, justificando a medida como promotora de justiça tributária e geração de empregos. No entanto, essa decisão implicou não apenas a manutenção de privilégios fiscais para grandes setores econômicos, mas também a adoção de compensações que resultaram em cortes no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e no Seguro Defeso, penalizando os mais pobres.

Na visão de De Caso, estaríamos diante de um governo em disputa. Para ela, “caso o governo adote uma política monetária e fiscal contracionistas”, os resultados na vida das pessoas “podem ser danosos”. O emprego do condicional, também aqui, surpreende. Afinal, não se trata justamente disso que está sendo executado? Ou o novo arcabouço proposto pelo governo e aprovado pelo Congresso, amplamente celebrado e defendido pelos agentes e economistas de mercado, representa uma política fiscal expansionista? Isso para não falarmos da política monetária, hoje conduzida pelo presidente bolsonarista do Banco Central Campos Neto, é verdade, mas sobre a qual as recentes declarações e votos no Copom do indicado por Lula, Gabriel Galípolo, dão pouco espaço à esperança.

Já foi argumentado, em texto célebre da disciplina, que a economia, em muitos de seus aspectos, se assemelha ao exercício retórico. De Caso diz perseguir o objetivo de avaliar o governo para além do maniqueísmo, que seria o caso daqueles que o veem como neoliberal. Afirma que, para isso, tais análises avaliam com “microscópio” cada política do governo, sem considerar a luta de classes e os interesses envolvidos na sua definição. Concordando com a autora nas profundas limitações de análises de políticas estritamente parciais, que não consideram os contextos sociais nos quais estão inseridas, não nos parece que simplesmente desconsiderar a principal política econômica do governo, em análises como essas, seja muito produtivo.

Afinal de contas, se é certo que ele visa satisfazer os interesses dos grandes detentores de riqueza e rentistas do país, quem, afinal, propôs ao Congresso o novo arcabouço fiscal? É possível questioná-lo e problematizá-lo ou, como bradava outra liderança política amiga íntima da austeridade, there is no alternative?

 

·        Lula manda recado ao mercado: "torce contra"

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou, nesta quarta-feira (4), um recado direto ao mercado financeiro, rebatendo as projeções pessimistas para o PIB diante dos recentes dados que confirmam o crescimento robusto da economia brasileira. Lula afirmou que o mercado torce contra o retorno à normalidade econômica e a melhora na qualidade de vida da população, reforçando seu compromisso com o avanço social e econômico do país.

"O PIB de 2024 não vai ser 1,5% como o mercado previu, vai ser maior que 3%. E aos poucos vamos retomando a normalidade e melhorando a vida dos brasileiros, apesar de quem torce contra", escreveu Lula na plataforma X. 

Mais cedo, dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostraram que a economia brasileira cressceu 0,9% no terceiro trimestre na comparação com os três meses anteriores. Na comparação com o segundo trimestre de 2023, o PIB teve alta de 4,0%. No acumulado do ano até setembro, o Brasil acumula crescimento de 3,3% em relação ao mesmo período de 2023.

¨      Tebet afirma que o mercado financeiro "joga contra o Brasil"

A elevada rejeição do mercado financeiro ao governo do presidente Luiz Inácio Lula “não é imparcialidade, mas jogar contra o Brasil”, disse a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, nesta quinta-feira (5), durante cerimônia de inauguração do Projeto Cerrado, nova fábrica da Suzano em Ribas do Rio Pardo (MS), de acordo com o Valor Econômico

Uma pesquisa da Genial/Quaest, divulgada nesta quarta-feira (4), revelou um aumento na reprovação ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no mercado financeiro. O índice de rejeição, que era de 64% em março, saltou para 90% entre gestores, economistas, analistas e operadores de fundos de investimento. 

O índice vem apesar do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostraram que a economia brasileira cresceu 0,9% no terceiro trimestre na comparação com os três meses anteriores. Na comparação com o segundo trimestre de 2023, o PIB teve alta de 4,0%. No acumulado do ano até setembro, o Brasil acumula crescimento de 3,3% em relação ao mesmo período de 2023.

 

Fonte: Por Pedro Micussi, no Le Monde/Brasil 247 

 

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