Israelenses
que se voluntariaram para lutar agora se recusam a voltar a Gaza
Todas
as pessoas do seu pelotão conheciam alguém que havia sido morto. Yuval Green,
de 26 anos, conhecia pelo menos três. Ele era um reservista, médico da brigada
paraquedista das Forças de Defesa de Israel (FDI), quando ouviu as primeiras notícias do ataque
do Hamas em 7 de outubro de 2023.
"Israel é um país pequeno. Todos se conhecem", diz ele. Em
vários dias de violência, 1,2 mil pessoas foram mortas, e outras 251 foram
sequestradas e levadas para Gaza. Noventa e sete reféns permanecem em Gaza, e
acredita-se que cerca de metade esteja com vida.
Yuval
respondeu imediatamente à convocação de seu país para o combate. Era uma missão
para defender os israelenses. Ele se lembra do horror de entrar em comunidades
devastadas perto da fronteira de Gaza. "Você vê... corpos nas ruas, carros
perfurados por balas".
Naquela
época, ele não teve dúvida ao se apresentar ao serviço militar. O país estava
sendo atacado. Os reféns tinham que ser levados de volta para casa.
Depois
vieram os combates em Gaza. Cenas fortes que não saem da memória. Como na
noite em que viu gatos comendo restos mortais humanos na estrada.
"Imagina,
é como um apocalipse. Você olha para a sua direita, para a sua esquerda, tudo o
que vê são prédios destruídos, prédios danificados pelo fogo, por mísseis,
tudo. Assim é Gaza agora."
Um
ano depois, o jovem que se apresentou para o serviço militar em 7 de outubro
está se recusando a lutar.
Yuval
é o coorganizador de uma carta pública assinada por mais de 165 reservistas —
na contagem mais recente — das Forças de Defesa de Israel, e um número menor de soldados efetivos, que se recusam a
servir ou ameaçam se recusar, a menos que os reféns sejam devolvidos, o
que exigiria um acordo de cessar-fogo com o Hamas.
Em
um país ainda traumatizado pela pior violência da sua história, aqueles que se
recusam por motivos de consciência são uma minoria dentro de uma força militar
que inclui cerca de 465 mil reservistas.
Há
outro fator em jogo para alguns outros reservistas das FDI: a exaustão.
De
acordo com notícias da imprensa israelense, um número cada vez maior de pessoas
não está se apresentando ao serviço militar. O jornal Times of Israel e vários outros meios de comunicação citaram fontes
militares dizendo que houve uma queda de 15% a 25% no comparecimento das
tropas, principalmente devido ao burnout (esgotamento) em
decorrência dos longos períodos de serviço que são exigidos.
Mesmo
que não haja um apoio generalizado da população àqueles que se recusam a servir
por motivos de consciência, há evidências de que algumas das principais
exigências daqueles que assinaram a carta de recusa são compartilhadas por um
número cada vez maior de israelenses.
Uma
pesquisa de opinião recente realizada pelo Instituto de Democracia de Israel (IDI, na sigla em inglês) indicou que, entre os
israelenses judeus, 45% queriam que a guerra terminasse — com um cessar-fogo
para trazer os reféns de volta —, contra 43% que queriam que as FDI
continuassem a lutar para destruir o Hamas.
Significativamente,
a pesquisa do IDI também sugere que o sentimento de solidariedade que marcou os
primeiros dias da guerra, enquanto o país se recuperava do trauma de 7 de
outubro, foi superado pelo ressurgimento das divisões políticas: apenas 26% dos
israelenses acreditam que agora há um sentimento de união, enquanto 44% dizem
que não existe.
Pelo
menos parte disso tem a ver com um sentimento frequentemente manifestado,
especialmente por aqueles à esquerda no espectro político, de que a guerra está
sendo prolongada a pedido dos partidos de direita radical, cujo apoio o
primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, precisa
para permanecer no poder.
Até
mesmo o ex-ministro da Defesa, Yoav Gallant, que é membro do partido Likud de
Netanyahu, e foi demitido pelo primeiro-ministro no mês passado, citou a não
devolução dos reféns como uma das principais divergências com seu chefe.
"Não
há e não haverá nenhuma expiação pelo abandono dos cativos", ele disse.
"Será uma marca de Caim na testa da sociedade israelense e daqueles que
lideram esse caminho equivocado."
Netanyahu,
que, assim como Gallant, enfrenta um mandado de prisão do Tribunal Penal
Internacional (TPI) por supostos crimes de guerra, negou isso repetidamente — e
enfatizou seu compromisso com a libertação dos reféns.
·
As sementes da recusa
As
sementes da recusa de Yuval remontam aos dias logo após o início da guerra. Na
época, o vice-presidente do Knesset (Parlamento israelense), Nissim Vaturi,
pediu que a Faixa de Gaza fosse
"apagada da face da Terra". E o proeminente rabino Eliyahu Mali
declarou: "Se você não matá-los, eles vão te matar", referindo-se aos
palestinos em Gaza de uma maneira geral. Ele enfatizou ainda que os soldados
deveriam fazer apenas o que o Exército ordenasse, e que a legislação nacional
não permitia o assassinato da população civil.
Mas a
linguagem — de forma alguma restrita aos dois exemplos acima — preocupou Yuval.
"As
pessoas estavam falando em matar toda a população de Gaza, como se fosse algum
tipo de ideia acadêmica que fizesse sentido... E nesse clima, soldados estavam
entrando em Gaza apenas um mês depois de seus amigos terem sido massacrados,
ouvindo falar de soldados morrendo todos os dias. E os soldados fazem muitas
coisas."
Houve
postagens nas redes sociais de soldados em Gaza abusando de prisioneiros,
destruindo propriedades e zombando dos palestinos — há vários exemplos de
soldados posando com os pertences das pessoas, inclusive com vestidos e roupas
íntimas femininas.
"Na
época, eu estava tentando lutar contra isso o máximo que podia", diz
Yuval.
"Havia
muita desumanização, uma atmosfera de vingança."
A
gota d'água foi quando recebeu uma ordem que ele não podia obedecer.
"Nos
disseram para incendiar uma casa, e eu fui até meu comandante e perguntei: 'Por
que estamos fazendo isso?' E as respostas que ele me deu simplesmente não foram
boas o suficiente. Eu não estava disposto a incendiar uma casa sem motivos que
fizessem sentido, sem saber se isso servia a um determinado propósito militar,
ou a qualquer tipo de propósito. Então eu disse não, e fui embora."
Este
foi o último dia dele em Gaza.
Em
resposta, as FDI me disseram que suas ações foram "baseadas na necessidade
militar, e em conformidade com o direito internacional", afirmando que
o Hamas "incorporou ilegalmente seus
recursos militares em áreas civis".
Três
dos que se recusaram a participar falaram com a BBC. Dois concordaram em dar
seus nomes, enquanto um terceiro pediu anonimato por temer represálias. Todos
enfatizam que amam seu país, mas a experiência da guerra e o fracasso em chegar
a um acordo em relação aos reféns levaram a uma escolha moral decisiva.
·
'As pessoas falavam
calmamente sobre abuso ou assassinato'
Um
soldado, que pediu para permanecer anônimo, estava no aeroporto Ben Gurion, em
Tel Aviv, quando começaram a chegar notícias sobre os ataques do Hamas. Ele se lembra de ter sentido um choque no início. Depois, uma
sensação de zumbido nos ouvidos.
"Me
lembro do trajeto para casa... O rádio do carro estava ligado, e as pessoas
ligavam dizendo: 'Meu pai acabou de ser sequestrado, me ajuda. Ninguém está me
ajudando'. Foi realmente um pesadelo."
Ele
achou que aquele era o momento para o qual as FDI haviam sido criadas. Não era
para fazer invasões de domicílio na Cisjordânia ocupada ou perseguir jovens que
jogavam pedras. "Provavelmente, pela primeira vez, senti que me alistei em
verdadeira legítima defesa."
Mas
sua visão mudou à medida que a guerra avançava. "Acho que não sentia mais
que poderia dizer honestamente que essa campanha estava centrada em garantir a
vida dos israelenses."
Ele
diz que isso era baseado no que viu e ouviu entre os colegas. "Tento ter
empatia e dizer: 'Isso é o que acontece com as pessoas que são dilaceradas pela
guerra...', mas era difícil ignorar a amplitude desse discurso."
Ele
se lembra de soldados se gabando, até mesmo para seus comandantes, de espancar
"palestinos indefesos". E ele ouviu conversas ainda mais
assustadoras. "As pessoas falavam com bastante calma sobre casos de abuso
ou até mesmo de assassinato, como se fosse um detalhe técnico, ou com
verdadeira serenidade. Isso obviamente me chocou."
O
soldado também diz que testemunhou prisioneiros sendo vendados e proibidos de
se mover "basicamente durante toda a estadia... e recebendo quantidades de
comida que eram chocantes".
Quando
sua primeira missão terminou, ele jurou não voltar.
As
FDI me encaminharam uma declaração de maio que dizia que qualquer abuso contra
os detidos era estritamente proibido. O texto também afirmava que eram
fornecidas três refeições por dia, "em quantidade e variedade aprovadas
por um nutricionista qualificado". Acrescentava ainda que as algemas só
eram colocadas "quando o risco à segurança exigia", e que "todos
os dias é realizado um exame... para garantir que as algemas não estejam muito
apertadas".
A
Organização das Nações Unidas (ONU) disse que as denúncias de suposta tortura e
violência sexual por parte dos guardas israelenses eram "grosseiramente
ilegais e revoltantes" e possibilitadas pela "absoluta
impunidade".
·
'Um terreno fértil
para promover a brutalidade'
Michael
Ofer-Ziv, de 29 anos, conhecia duas pessoas de seu vilarejo que foram mortas em
7 de outubro, entre elas Shani Louk, cujo corpo desfilou por Gaza na traseira
de uma caminhonete no que se tornou uma das imagens mais compartilhadas da
guerra. "Aquilo foi um inferno", diz ele.
Michael
já era um esquerdista convicto que defendia soluções políticas, e não
militares, para o conflito entre palestinos e israelenses. Mas, assim como seus
colegas, ele achava que o correto era se apresentar para o serviço militar.
"Eu sabia que a ação militar era inevitável... e que, de certa forma, era
justificada, mas estava muito preocupado com a forma que ela poderia
tomar."
Sua
função era trabalhar como oficial de operações em uma sala de guerra da
brigada, observando e dirigindo as ações transmitidas por câmeras de drones em
Gaza. Às vezes, caía a ficha da realidade física da guerra.
"Fomos
pegar alguns papéis em algum lugar no comando principal da região de
Gaza", ele recorda. "E, em algum momento, abrimos a janela... o fedor
era como o de um açougue... Como no mercado, onde não é muito limpo."
Mais
uma vez, foi um comentário ouvido durante uma discussão entre seus colegas que
o ajudou a tomar uma atitude.
"Acho
que a frase mais horrível que ouvi foi a de alguém que me disse que as crianças
que poupamos na última guerra em Gaza [2014] se tornaram os terroristas de 7 de
outubro, o que eu aposto que é verdade em alguns casos... mas definitivamente
não em todos eles."
Michael
Ofer-Ziv era oficial de operações na sala de guerra da brigada. — Foto: BBC
Essas
opiniões extremas existiam entre uma minoria de soldados, diz ele, mas a
maioria era "simplesmente indiferente em relação ao preço... que é chamado
de 'dano colateral', ou vidas palestinas". Ele também está consternado com
as declarações de que assentamentos judeus deveriam ser construídos em Gaza
após a guerra — um objetivo declarado de ministros de direita radical do
governo, e até mesmo de alguns membros do partido Likud de Netanyahu.
As
estatísticas sugerem que há um número cada vez maior de oficiais e soldados nas
FDI que vêm do chamado movimento religioso nacional: apoiadores de partidos
nacionalistas judeus de direita radical que defendem os assentamentos e a
anexação de terras palestinas, e se opõem fortemente à criação de um Estado
palestino.
De
acordo com a pesquisa do Centro Israelense de Assuntos Públicos, um think
tank não governamental, o número de oficiais com este perfil que se
formaram na academia militar aumentou de 2,5% em 1990 para 40% em 2014.
Há
dez anos, uma das maiores autoridades de Israel sobre o assunto, o professor Mordechai Kremnitzer, do
Instituto de Democracia de Israel, alertou sobre o que ele chamou de tornar o Exército religioso.
"Neste contexto, as mensagens sobre a superioridade judaica e a
demonização do inimigo são um terreno fértil para promover a brutalidade e
libertar os soldados das restrições morais."
O
momento decisivo para Michael Ofer-Ziv aconteceu quando as FDI atiraram em três
reféns israelenses em Gaza, em dezembro de 2023. Os três homens se aproximaram
do Exército despidos até a cintura, e um deles segurava uma haste com um pano
branco.
As
FDI disseram que um soldado se sentiu ameaçado e abriu fogo, matando dois
reféns. O terceiro ficou ferido, mas foi novamente baleado e morto, quando um
soldado ignorou a ordem de cessar-fogo de seu comandante.
"Me
lembro de pensar em que nível de corrupção moral chegamos... para que isso
possa acontecer. E também me lembro de pensar que não é possível que esta seja
a primeira vez [que pessoas inocentes foram baleadas]... É apenas a primeira
vez que estamos ouvindo sobre isso, porque são reféns. Se as vítimas fossem
palestinas, nunca ouviríamos falar disso."
As
FDI afirmaram que a recusa em servir por parte dos reservistas é tratada caso a
caso, e o primeiro-ministro Netanyahu insiste que é "o Exército mais moral
do mundo”.
Para
a maioria dos israelenses, as FDI são a garantia da sua segurança; elas
ajudaram a fundar Israel em 1948, e são uma expressão da nação
— todo cidadão israelense com mais de 18 anos que seja judeu (e também das
minorias drusa e circassiana) deve servir.
As
recusas atraíram certa hostilidade. Alguns políticos proeminentes, como Miri
Regev, membro do governo e ex-porta-voz das FDI, pediram providências. "Os
que se recusam devem ser presos e processados", ela disse.
Mas
até agora o governo evitou tomar medidas duras porque, de acordo com Yuval
Green, "os militares perceberam que isso só chama a atenção para nossas
ações, então eles tentam nos deixar ir sem alarde".
Para
aqueles que estão começando o serviço militar e se recusam, as sanções são mais
severas. Oito que se recusaram por motivo de consciência — que não fazem parte
do grupo de reservistas — e estavam prestes a começar o serviço militar aos 18
anos, cumpriram pena em prisão militar.
·
O futuro caráter do
Estado judeu
Os
soldados com quem conversei descreveram uma mistura de raiva, decepção, dor ou
silêncio por parte dos seus antigos colegas.
"Me
oponho veementemente a eles [que se recusam]", diz Sam Lipsky, de 31 anos,
um reservista que lutou em Gaza durante a guerra atual, mas que agora está
baseado fora da Faixa
de Gaza. Ele acusa o grupo de ser "altamente
político" e focado na oposição ao atual governo.
"Não
preciso ser um fã de Netanyahu para não gostar do fato de as pessoas usarem as
Forças Armadas, uma instituição que todos nós devemos apoiar, como alavanca
política."
Lipsky
apoia o que ele considera a corrente dominante da direita israelense — não a
direita radical representada por figuras do governo como Itamar Ben-Gvir, o
ministro da Segurança Nacional que foi condenado por incitar o racismo e apoiar
o terrorismo; e Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, que recentemente pediu
que a população de Gaza fosse reduzida pela metade, incentivando a
"migração voluntária".
Lipsky
reconhece o sofrimento dos civis em Gaza — e não nega as cenas de mulheres e
crianças mortas e mutiladas.
Sam
Lipsky, que lutou em Gaza durante o conflito em andamento, está agora baseado
fora da Faixa de Gaza. — Foto: BBC
Enquanto
conversamos em sua casa no sul de Israel, seus dois filhos pequenos estão dormindo no quarto ao lado.
"Não
há como travar uma guerra e realizar uma campanha militar sem que estas cenas
aconteçam", diz ele.
Na
sequência, ele recorre a uma expressão usada no passado pelos líderes
israelenses: "Você não pode cortar a grama sem que a grama
voe. Não é possível".
Segundo
ele, a culpa é do Hamas que "massacrou aleatoriamente o
maior número possível de judeus, mulheres, crianças e soldados".
O
imperativo de lutar a guerra adiou um embate cada vez mais profundo sobre o
futuro caráter do Estado judeu.
Este
é, em grande parte, um conflito entre os ideais secularistas defendidos por
pessoas como Michael Ofer-Zif e Yuval Green, e a direita religiosa cada vez
mais poderosa representada pelo movimento dos assentamentos, e seus defensores
no governo de Netanyahu, incluindo figuras como Itamar Ben-Gvir e Bezalel
Smotrich.
Soma-se
a isso a raiva persistente e generalizada em relação às tentativas do governo
de diluir o poder do Judiciário no país em 2023 — o que levou a manifestações
em massa nos meses que antecederam os ataques de 7 de outubro —, e o cenário
está montado para uma crise política mesmo depois do fim da guerra.
Em
ambos os lados, não é incomum ouvir as pessoas falarem de uma luta pela alma
de Israel.
Lipsky
estava fazendo as malas para voltar ao serviço militar na noite em que nos
encontramos, certo de seu dever e responsabilidade. "Não haverá paz até
que o Hamas seja derrotado."
Entre
aqueles com quem conversei que se recusam a voltar a Gaza, havia uma
determinação em defender seus princípios. Michael Ofer-Ziv pode deixar Israel, diante da incerteza se vai conseguir ser feliz no país.
"Parece
cada vez menos provável que eu consiga manter os valores que defendo, desejando
o futuro que desejo para os meus filhos, vivendo aqui, e isso é muito
assustador", diz ele.
Yuval
Green está se formando em medicina, e espera que seja possível chegar a um
acordo entre o povo israelense e palestino por meio de uma negociação de paz.
"Acho
que neste conflito existem apenas dois lados, não o lado israelense e o lado
palestino. Existe o lado que apoia a violência e o lado que apoia encontrar
soluções melhores."
Há
muitos israelenses que discordariam dessa análise, mas isso não vai impedir sua
missão.
Fonte:
BBC News Mundo
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