Políticos
negros no Brasil: o que sabemos sobre seus antepassados
A
Agência Pública pesquisou a genealogia de todos os atuais senadores,
governadores e ex-presidentes após a ditadura militar para o projeto
Escravizadores. Não tivemos dificuldade em encontrar políticos cujas famílias
detêm o poder há centenas de anos, com patrimônios de antepassados construídos
à custa do trabalho de pessoas escravizadas. Mas não encontramos ninguém no
caminho inverso – ou seja, que descendem de escravizados – na atual
legislatura.
Analisamos
as genealogias dos políticos que se declaram pretos ou pardos. Atualmente, 21
dos 81 senadores e nove dos 27 governadores se classificam nessas categorias.
Nenhum presidente ou ex-presidente se entende como negro – aliás, o único da
história brasileira foi Nilo Peçanha, que assumiu a Presidência em 1909.
Já
mostramos em uma reportagem do projeto como é difícil traçar a genealogia de
pessoas negras no Brasil. Ao serem sequestradas e forçadas a trabalhar como
escravizadas no Brasil, suas identidades e culturas foram apagadas. Parte dos
registros nos cartórios e outras fontes oficiais se refere a elas apenas com o
primeiro nome ou com o sobrenome de seus “donos”, fazendo com que se torne
praticamente impossível entender suas origens.
Ainda
assim, esse é o tipo de informação que poderia ser passado de pai para filho ao
longo de gerações. Em casos em que os registros oficiais ignoram populações
marginalizadas, os relatos orais ganham importância. No entanto, nenhum dos
parlamentares declarados negros ou pardos que responderam à Pública sabem sobre
os seus antepassados mais antigos. Recebemos as respostas de seis dos 30
políticos.
O
senador Paulo Paim (PT-RS) é um dos três senadores que se declara preto. Ele
não sabe a origem de antepassados mais antigos que seus bisavós, que
trabalhariam cuidando de cavalos. “Provavelmente [os antepassados eram
escravizados], mas eu teria que pesquisar e me aprofundar mais. Realmente não
sei”, disse.
Paim
nasceu em 1950 em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, em uma família com nove
irmãos. O pai era metalúrgico, e a mãe, dona de casa e analfabeta. Ele relata
ter passado por vários episódios de racismo.
“Um
dia, eu menino ainda, com 7 ou 8 anos, cheguei em casa e falei para a minha
mãe: ‘Mãe, me chamam de negro para lá, negro para cá’. Ela disse: ‘Não dá bola.
Sabe por que eles dizem isso? Porque eles têm ciúmes de ti. Porque você era um
príncipe na África'”, o senador já contou. Disse também que um professor lhe
informou que não passaria de “um servente, um colocador de paralelepípedos.”
Em
um discurso na Câmara em 1996, Paim contou sobre outro episódio de racismo, mas
dessa vez sofrido por seu pai: “Meu pai, Ignácio Alves Paim, viajava com meu
irmão quando capotou o carro. Foi levado para um hospital, e lá notamos que o
médico não estava dando o atendimento devido a ele. Quando interpelamos o
médico sobre o atendimento prestado ao meu pai, ele nos disse: ‘Se fosse uma
mulher bonita, eu estaria aqui todos os dias. Agora, um negro velho e que está
morrendo, tenho mais o que fazer’. No momento houve uma reação da família
contra aquele médico, que foi simplesmente afastado do paciente. Meu pai
faleceu; esse fato aconteceu há 20 anos, e o triste é ver que isso continua
acontecendo sem que os culpados sejam punidos”.
O
senador foi o autor do projeto de lei que instituiu o Estatuto da Igualdade
Racial, a partir do qual vieram políticas como a lei de cotas em universidades
e para o funcionalismo público. O conjunto de regras previa a obrigatoriedade
do ensino da história negra em escolas, o reconhecimento da capoeira como
esporte e linhas de crédito para quilombolas, entre outros.
A
senadora Eliziane Gama (PSD-MA), autodeclarada parda, diz que até os seus
bisavós não há registro de pessoas escravizadas em sua família e que antes
disso ela não sabe sobre os outros antepassados. O governador Paulo Dantas
(MDB-AL) afirmou, por meio de sua assessoria, que “não tem registros completos
de sua genealogia e, portanto, não pode precisar sua ancestralidade”. Elmano de
Freitas (PT-CE), governador do Ceará, também respondeu que “infelizmente” não
tem conhecimento sobre a sua genealogia. Os dois se declaram pardos.
Assessores
dos senadores Magno Malta (PL-ES) e Eduardo Gomes (PL-SE) informaram que eles
não tinham tempo para responder sobre as suas genealogias. Os demais senadores
autodeclarados pretos e governadores autodeclarados pretos e pardos também
foram procurados, mas não responderam até a publicação desta reportagem.
Os
senadores Jader Barbalho (MDB-PA) e Jayme Campos (União Brasil-MT) já
apareceram em uma outra reportagem da série que tratou de descendentes de
supostos escravizadores que foram, recentemente, investigados por trabalho
análogo à escravidão em suas fazendas. Ambos se autodeclaram pardos.
Procurados, não deram retorno.
A
governadora Fátima Bezerra (PT-RN) é a única da lista de governadores
autodeclarados negros a ter registro de supostos escravizadores entre os seus
antepassados. Há indícios de que um de seus tataravós, José de Góes de
Mendonça, teria escravizados que foram declarados como bens no inventário de
sua esposa, Inácia Joaquina, conforme o documento original registrado pelo
Laboratório de Documentação Histórica da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Ela não respondeu à Pública.
• O primeiro deputado
federal negro
O
primeiro político preto e com discurso racial afirmativo no Brasil foi Manoel
da Motta Monteiro Lopes, eleito deputado federal em 1909, duas décadas depois
da abolição da escravidão. Ele nasceu livre em 1867, de pais africanos – a mãe
trabalhava como comerciante e o pai era alfaiate.
Um
dos poucos “negros letrados” de Recife em sua época, Monteiro Lopes se formou
em direito e se candidatou a deputado pelo Rio de Janeiro, então capital do
país. Ele sofreu diversos protestos da sociedade branca para impedir que fosse
diplomado e foi ridicularizado por sua cor. Um jornal da época disse que a sua
candidatura era uma “mancha negra no horizonte”. Outro dizia que tudo iria
“ficar preto” no dia da eleição.
Um
jornal apontava que uma associação de classe de ex-senhores de escravizados
liderava o movimento para impedir a sua diplomação. Apesar disso, Monteiro
Lopes foi o terceiro mais votado e recebeu protestos populares em seu favor
para que assumisse o cargo. No dia da posse, seu partido soltou uma pomba
branca e outra preta como símbolo dos novos tempos, como registrado na
imprensa. Ele morreu um ano depois, de complicações decorrentes da diabetes.
O
Brasil teve outros políticos negros depois dele, mas poucos falaram ativamente
sobre o passado ligado à escravidão. Um deles foi Abdias do Nascimento,
ex-senador falecido em 2011 e cujas duas avós foram escravizadas no período do
Império. Eleito em 1991, Nascimento foi saudado como primeiro senador negro do
país. Mas ele mesmo contestou a informação.
No
discurso de posse, ele disse que havia feito uma pesquisa histórica e teria
encontrado 22 senadores com origem negra antes dele, mas que passaram à
história como brancos. A Agência Senado registrou o seu levantamento. “Tive de
usar de uma sagacidade de pesquisador à beira da astúcia, indo a dezenas de
fontes, cruzando vários dados, cotejando muitas informações, para chegar a esse
número. Isso porque aqueles 22 senadores não assumiram etnicamente a sua
condição de afro-brasileiros, muito menos as causas da negritude”, disse ele na
época.
No
mesmo discurso, ele disse que, além de Nilo Peçanha, outros ex-presidentes
também seriam negros: Rodrigues Alves e Tancredo Neves. Mencionou outros
políticos de origem supostamente negra mesmo na época da escravidão. No caso de
Tancredo, ele explicou que se baseou na fisionomia com traços negros de dom
Lucas Moreira Neves, ex-arcebispo da Bahia e primo do ex-presidente que morreu
antes de tomar posse.
“Biógrafos
e historiadores tentaram mascarar identidades, driblar genealogias, omitir
ascendências, dissimular traços e características étnicas. Retratistas,
pintores e fotógrafos, por ordem dos senadores ou de seus familiares ou mesmo
por moto próprio, falsificaram, europeizaram fisionomias, criaram cabelereiras,
procurando esconder o ‘estigma africano dos retratados’, disse. “Talvez eu seja
o primeiro, sim, a assumir orgulhosamente sua etnia, sua cultura e religião,
suas origens africanas e, sobretudo, a luta coletiva do povo africano em nosso
país.”
Sub-representação
histórica
A
sub-representação de negros na política brasileira é histórica. Houve apenas
duas eleições na história brasileira com mais candidatos autodeclarados negros
do que brancos: em 2022 (50,2%) e 2024 (52,7%), de acordo com dados do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE). Mas isso não se traduziu em vitória. Apenas 32% dos
candidatos negros de 2022 foram eleitos. Em 2024, um terço dos prefeitos e 45%
dos vereadores negros obtiveram vitória.
“É
um contrassenso tendo em vista que a população brasileira tem 56% de pessoas
que se declaram negras”, afirma Alexandre Braga, mestrando em direito na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-presidente da União de Negros
e Negras pela Igualdade em Minas.
Para
ele, mecanismos da Justiça Eleitoral impedem o acesso mais amplo de pessoas
negras à política. Um dos fatores é a autodeclaração racial, que, instituída em
2014, não depende de uma banca avaliadora para ser confirmada. Em outras
palavras, basta que o candidato se autodeclare negro ou pardo para que seja
considerado como tal.
Cinco
dos nove governadores negros eleitos em 2022 haviam se autodeclarado brancos em
eleições anteriores e depois migraram para pardos. “Temos que respeitar a
autodeclaração racial, mas algumas candidaturas certamente seriam contestadas
caso houvesse uma banca como nas universidades”, diz Braga, que já fez parte da
banca de Ações Afirmativas da UFMG. Uma análise do UOL mostrou que pelo menos
metade dos parlamentares eleitos em 2022 não passaria numa banca de
heteroidentificação racial.
As
eleições de 2022 foram as primeiras em que partidos foram obrigados a destinar
uma parte proporcional de seu fundo eleitoral para candidaturas negras, que
naquele ano chegou a quase R$ 5 bilhões. Isso causou um boom de candidatos
autodeclarados negros. Em alguns casos, houve polêmica. Antônio Carlos
Magalhães Neto, o ACM Neto, sofreu desgaste após ter passado de branco a pardo,
e acabou perdendo.
Além
disso, não é claro quanto a mais de dinheiro os candidatos autodeclarados
negros recebem do fundo eleitoral. Cada partido pode criar as suas regras, e em
alguns casos os critérios são pouco transparentes. Braga acredita que o TSE
deveria criar regras para isso e publicar quanto cada candidato recebeu por
cota racial.
“Sem
uma política efetiva de financiamento de candidaturas negras, com programa de
incentivo, você abre espaço para pessoas mal- intencionadas, que podem se
aproveitar do sistema para engordar o caixa da campanha e para a perpetuação de
famílias que dominam o poder há séculos”, afirma Braga. “A gente vê na TV sobre
o apartheid na África do Sul e fica escandalizado. De negros não terem os
mesmos direitos que brancos. Mas isso acontece no Brasil na questão do poder
desde sempre.”
Fonte:
Por Amanda Audi, da Agência Pública
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