O cientista que batizou o Big Bang sem querer
e provou que somos feitos de pó de estrelas
"Palavras são como arpões", disse o
astrofísico e cosmólogo Fred Hoyle em uma entrevista em 1995. "Depois que
elas entram, é muito difícil tirá-las."
Ele estava se referindo a duas das centenas
de palavras que havia dito durante uma palestra quase meio século antes.
Na época, ele era um dos cientistas mais
famosos fora dos círculos acadêmicos por sua genialidade em explicar coisas
fascinantes, mas difíceis de entender, para o público em geral.
Por isso, a BBC o convidava com frequência
para fazer exatamente isso — e, em 1949, anunciou que apresentaria um programa
no qual "um astrofísico analisaria as pesquisas recentes sobre o Universo
em expansão".
"O orador, Fred Hoyle, é membro do St.
John's College, da Universidade de Cambridge, e professor de matemática na
universidade", acrescentou.
A ideia de que o Universo estava se
expandindo já havia sido aceita pela maioria dos físicos.
A teoria geral da relatividade de Albert
Einstein previu o fenômeno.
Fascinado pela matemática das fórmulas da
relatividade de Einstein, o padre católico e físico belga Georges Lemaître
descobriu que elas levavam inexoravelmente à conclusão de que o Universo estava
se expandindo.
De forma independente, o matemático russo
Aleksandr Fridman fez o mesmo.
E, em 1929, o astrônomo americano Edwin
Hubble corroborou isso, após observar que a maioria das galáxias estava se
afastando rapidamente da nossa.
As "pesquisas recentes" sobre as
quais Hoyle iria falar não questionariam esse fato.
Mas ilustrariam duas versões da eternidade
que se chocariam ferozmente por décadas.
• A
grande explosão
Depois de concluir a teoria geral da
relatividade, Einstein aplicou sua nova abordagem da gravidade ao Universo.
Em 1917, ele propôs um modelo conhecido como
Universo estático eterno de Einstein e, por mais de uma década, com
pouquíssimas exceções, a origem física do Universo não foi tema de debate.
O próprio Einstein confirmou em 1929 que o
espaço havia existido eternamente quando afirmou que "o continuum
[espaço-tempo] é infinito em sua extensão temporal".
Mas, àquela altura, Lemaître já estava
ruminando uma nova ideia.
Se o Universo estava ficando maior, em algum
momento ele deve ter sido menor, ele deduziu.
Portanto, se você se projetasse no passado
distante, chegaria ao ponto em que toda essa vastidão acabaria reduzida a uma
massa muito compacta e quente.
Essa ideia, que ele chamou de "hypothèse
de l'atome primitif" ou hipótese do átomo primitivo ou primordial, eclodiu
na cena científica em 1931.
Embora tenha aparecido em artigos de revistas
científicas, como a Nature, e em palestras de eventos de prestígio, o conceito
do "padre cientista", conforme era chamado pela imprensa, contrariava
as noções de seus pares.
O principal problema era que ele supunha que
a origem de tudo era aquele átomo e que, antes do momento em que ele começou a
se expandir, nem o tempo nem o espaço existiam.
Um Universo com uma história como esta não
apenas era finito — como também, para muitos cientistas, incluindo Einstein,
tinha ecos da ideia de criação divina.
• Finito
ou eterno
O modelo de Lemaître — com aquele objeto
primordial altamente radioativo e tão denso que compreendia toda a matéria,
espaço e energia de todo o cosmos, e sua explosão, a partir da qual as estrelas
se formaram — foi deixado no ar.
Mas recebeu um impulso decisivo quando, em
1948, o astrofísico soviético-americano George Gamow apresentou sua versão.
Desenvolvida com seu aluno Ralph Alpher e seu
colega Robert Herman, a teoria postulava que a criação do Universo tinha sido
de fato o resultado de um clarão de energia, a partir de um gás primordial
superdenso.
E que, no fogo desta erupção, os elementos
químicos cozinharam juntos a partir de partículas básicas "em menos tempo
do que leva para cozinhar um prato de pato com batatas assadas", de acordo
com Gamow.
Crucialmente, eles chegaram a prever que esse
evento teria deixado uma radiação de fundo no Universo.
No mesmo ano, Hoyle e seus amigos, o
astrofísico Thomas Gold e o matemático Hermann Bondi, apresentaram outra
teoria.
O site da Universidade de Cambridge, onde os
três trabalhavam, conta que dois anos antes Hoyle, Bondi e Gold foram assistir
ao clássico filme de terror Na solidão da noite, no qual um pesadelo se repete.
Em uma conversa posterior, Gold imaginou um
filme cíclico que poderia começar a ser assistido a qualquer momento.
Ele então especulou que talvez o Universo
fosse assim, sem começo nem fim — e, talvez, à medida que se expandia, fosse
"reabastecido" com matéria nova.
O comentário ganhou força, e os cálculos
matemáticos de Hoyle indicaram que a matéria poderia ser criada continuamente
no espaço e no tempo.
E se matéria nova estivesse sendo gerada em
todos os lugares o tempo todo, o Universo teria que se expandir para
acomodá-la.
A teoria do Estado Estacionário falava então
de um Universo infinito e eternamente criativo.
• O
grande estrondo
No ano seguinte, Hoyle foi convidado a dar a
palestra em que proferiu aquelas palavras que ele comparou a arpões.
Depois de explicar sua teoria cosmológica,
ele descreveu a oposta.
"Essas teorias se baseiam na hipótese de
que toda a matéria do Universo foi criada em um grande estrondo em um momento
específico do passado remoto".
Este "grande estrondo" em inglês é
um big bang.
É claro que o físico não tinha a intenção de
cunhar um termo para nomear uma ideia na qual ele não acreditava, e nunca
acreditou.
Mas ele tampouco escolheu este termo para
ridicularizá-la, como muitos afirmaram desde então — nem sequer Lemaître, que
era seu amigo, nem Gamow ficaram ofendidos.
Era um termo descritivo, não depreciativo.
Além disso, o termo big bang não causou muito
impacto.
Ele apareceu impresso pela primeira vez pouco
tempo depois na revista The Listener, da BBC, que publicou o texto daquela
palestra, e no ano seguinte na transcrição de outra série de palestras muito
populares de Hoyle, mas ele não o mencionou novamente até 1965.
Nas duas décadas seguintes, o termo, embora
adotado pela imprensa, foi amplamente ignorado por físicos e astrônomos, como
observou o historiador da ciência dinamarquês Helge Kragh.
Lemaître nunca o utilizou, e Gamow usou
apenas uma vez em suas inúmeras publicações sobre cosmologia.
"Não gosto da palavra big bang; nunca
chamo de big bang porque é meio clichê", Gamow diria ao historiador da
ciência Charles Weiner em 1968, referindo-se à sua teoria.
"Eu a chamo de regime de radiação e
metarregime", disse ele nesta entrevista, que foi preservada pelo
Instituto Americano de Física.
A verdade é que o nome das hipóteses rivais
era o de menos.
O conflito entre ambas as convicções era
absoluto — e despertou por anos fortes sentimentos que levaram a uma das
divisões científicas mais amargas do século.
Embora muitos cientistas tenham tomado
partido, Gamow e Hoyle se tornaram seus rostos públicos.
Foi a mais significativa das controvérsias em
que Hoyle se envolveu, mas não a única: o cientista tinha o hábito de ser
franco.
Tanto que alguns se perguntam se, apesar de
suas contribuições monumentais para a astrofísica e a cosmologia, essa
franqueza custou a ele o Prêmio Nobel.
• Um
lampejo de brilhantismo
Uma destas contribuições monumentais foi
resolver um grande mistério: até então, ninguém entendia como o Universo criava
e construía os elementos químicos.
Lembra que Gamow havia dito que todos eles
cozinharam logo após o estrondo, "em menos tempo do que leva para cozinhar
um prato de pato com batatas assadas"?
Então, não exatamente.
O hidrogênio, o elemento mais leve,
provavelmente sim.
Mas as conjecturas de Gamow não explicavam a
formação de elementos mais pesados.
Hoyle demonstrou que todos os elementos que
compõem nosso mundo estão sendo cozinhados dentro das estrelas desde sempre.
Ele desenvolveu a ideia de nucleossíntese.
E argumentou que, no interior das estrelas,
sob pressões e temperaturas colossais, núcleos de hidrogênio se fundiram para
formar núcleos de hélio.
Eles então se combinaram para formar berílio
e assim por diante, até que carbono, oxigênio, ferro, silício e outros
elementos pesados foram criados.
Era uma ideia brilhante, mas só funcionaria
se, no interior das estrelas, o carbono existisse em um estado muito especial,
que nunca havia sido observado antes.
No entanto, ele deduziu que ele tinha que
existir, porque, do contrário, não haveria carbono no Universo e, sem ele, não
haveria vida.
Acabou que ele estava certo: com a ajuda do
físico americano William Fowler, Hoyle o encontrou.
Superado esse obstáculo, ele continuou com
elementos cada vez mais pesados, forjados no interior das estrelas, até chegar
ao ferro.
Mas para os ainda mais pesados, algo mais era
necessário: grandes explosões estelares chamadas supernovas.
Com elas, todo esse material enriquecido foi
lançado ao espaço, onde mais tarde se solidificou para formar asteroides,
planetas, ar, água... e seres humanos.
Portanto, efetiva e literalmente, somos
poeira estelar.
"É 100% verdade: quase todos os
elementos do corpo humano foram criados em uma estrela, e muitos deles vieram
de várias supernovas", confirma o cientista planetário Ashley Kin,
especialista em poeira estelar.
• E
o Big Bang?
A nucleossíntese foi um componente essencial
da teoria do Estado Estacionário: não tinha havido apenas um grande estrondo,
mas inúmeros desde então e para sempre.
Mas com o tempo, a comunidade científica,
incluindo Einstein, passou a reconhecer a validade da hipótese de Lemaître, a
quem concedeu várias honrarias.
E, em 1964, uma descoberta importante pôs fim
às teorias conflitantes.
Os astrônomos Arno Penzias e Robert Wilson
detectaram o brilho de radiofrequência do céu, que ficaria conhecido como
radiação cósmica de micro-ondas.
Isso significava, como o jornal americano The
New York Times anunciou em sua primeira página em 21 de maio de 1965:
"Sinais sugerem 'Big Bang' do Universo".
A batalha havia terminado, mas levou tempo
para que os cientistas se sentissem confortáveis com esse nome para a teoria
vencedora.
Era "um rótulo muito pouco digno para o
maior e mais misterioso evento da história do Universo, o início definitivo de
tudo", observa Kragh.
Embora o termo inapropriado tenha se tornado
arraigado na literatura e na linguagem popular em vários idiomas, em 1993 a
revista de astronomia Sky and Telescope realizou um concurso para mudá-lo.
O painel de jurados, que incluía o astrônomo
Carl Sagan, analisou 13.099 sugestões de 41 países... e decidiu que nenhuma era
digna de suplantar o Big Bang.
E essa não foi a única impressão de Hoyle
sobre a teoria à qual ele se opunha.
Ironicamente, sua descoberta da
nucleossíntese foi posteriormente incorporada à teoria do Big Bang,
fortalecendo-a.
• Criativo
e controverso
Em 1983, Fowler recebeu o Prêmio Nobel de
Física por sua pesquisa que ajudou a revelar a origem estelar dos elementos que
compõem o Universo.
Ele dividiu o prêmio com outro cientista
eminente... que não era Hoyle.
A decisão surpreendeu Fowler e muitos outros.
Será porque Hoyle tendia a expressar suas
opiniões sem reserva, ofendendo vários de seus colegas e até mesmo, em algumas
ocasiões, a própria Academia Sueca de Ciências?
Quando o astrônomo Antony Hewish recebeu o
Prêmio Nobel pela descoberta do primeiro pulsar em 1974, por exemplo, Hoyle
questionou por que Jocelyn Bell, que o detectou, não compartilhou a honraria.
Ou será porque os Prêmios Nobel não são
concedidos por um trabalho específico, mas sim como reconhecimento à reputação
geral de um cientista?
Hoyle não apenas nunca se retratou a respeito
de suas opiniões sobre a teoria do Big Bang, como começou a levantar a hipótese
de que a vida deveria ser uma ocorrência frequente no Universo.
E que as moléculas primordiais a partir das
quais a vida evoluiu na Terra haviam sido transportadas de outras partes do
cosmos.
A ideia não era necessariamente absurda para
a comunidade científica — na verdade, ele é considerado um pioneiro da
astrobiologia.
Mas Hoyle foi mais além, argumentando que
várias epidemias estavam associadas à passagem de meteoritos, cujas partículas
transportavam vírus para a Terra.
Essa ideia foi descartada como fictícia, mais
alinhada com o trabalho de Hoyle como escritor de 19 romances de ficção
científica (assim como peças de teatro, roteiros para TV e até mesmo uma
ópera).
Quando ele morreu em 2001, os obituários o
descreveram como "o homem mais imaginativo de todos", um dos
cientistas "mais ilustres e controversos", "mais criativos e
provocadores", "mais originais e prolíficos"...
Mas hoje ele é mais lembrado como o homem que
deu o nome a uma teoria que ele nunca aceitou: o Big Bang, um dos neologismos
científicos mais bem-sucedidos de todos os tempos.
Fonte:BBC News Mundo
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