quarta-feira, 16 de abril de 2025

O cotidiano de xenofobia contra brasileiros em Portugal

"Só descobri o que é ser uma pessoa racializada aqui", afirma a brasileira Priscila Valadão, que mora há 10 anos em Portugal. "Já fui chamada de macaca, puta, falam que a minha certidão (de naturalização) é de plástico."

Ela relata ainda que, enquanto caminhava na rua, um homem português, ao notar que ela falava com sotaque brasileiro, gritou: "volta para sua terra" e a agrediu com uma bengala. "Vivi, trabalhei e criei meus filhos aqui, mas não me sinto em casa, percebi que nunca vou ter direito a ser como os portugueses."

Um balanço da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial aponta que em 2021, foram registradas 109 queixas de xenofobia contra brasileiros em Portugal, uma alta de 142% na comparação com 2018, quando houve 45 denúncias.

Os casos vão desde situações veladas como dificuldade em alugar um apartamento, conseguir trabalho ou acessar serviços de saúde, por exemplo, a pedidos para falar em inglês ao invés do português brasileiro, até ofensas explícitas e agressões.

•        Alta na imigração alimenta tensões

O fluxo migratório em Portugal disparou a partir de 2015, quando o total de estrangeiros passou de 383,7 mil para mais de 1 milhão em 2023. Assim os imigrantes passaram a compor cerca de 10% da população do país. Desses, 360 mil são brasileiros, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores, e representam a principal comunidade estrangeira no país.

Apesar da alta, a presença de brasileiros é vista como indesejada por uma fatia considerável da população portuguesa. Segundo uma pesquisa da Fundação Francisco Manual dos Santos, 38% dos portugueses consideram que os brasileiros trazem desvantagens ao país e 51% afirmaram que a entrada de desses imigrantes tem que diminuir.

Além disso, o número de brasileiros barrados ao tentar embarcar para Portugal subiu 700% entre 2023 e 2024 –  passando de 179 para 1.470 pessoas, conforme aponta o Relatório Anual de Segurança Interna.

"De uma forma em geral, a sociedade portuguesa está mais intolerante face aos imigrantes em geral e aos imigrantes brasileiros em particular", pondera a pesquisadora do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (Ispa), Mariana Machado. "Eu penso que possa ser uma percepção de ameaça que existe por parte dos portugueses a ver os brasileiros como concorrentes diretos por empregos qualificados e por benefícios sociais."

•        Relação metrópole e colônia

A herança colonial está na raiz da discriminação de que os brasileiros são alvo atualmente em Portugal, argumenta Mariana Machado. "Existe no Brasil e em Portugal um mito 'lusotropicalista' que vê a miscigenação entre portugueses, indígenas e pessoas negras como uma prova de uma identidade naturalmente integradora dos portugueses. Mas é justamente isso que invisibiliza as violações sistemáticas de escravizados e depois das mulheres brasileiras livres." Uma das faces dessa discriminação é o gênero, de modo que as mulheres são associadas erroneamente à prostituição e a uma hipersexualização.

Entre a população negra, as discriminações se acumulam. "Os fenômenos são diferentes, porque uma pessoa branca pode sofrer xenofobia, enquanto uma pessoa negra também é alvo de racismo. Há uma perpetuação da hierarquia racial", afirma a presidente da Casa do Brasil em Lisboa, Ana Paula Costa.

Ao negociar um período de férias no bar em que trabalhava em Lisboa, a pedagoga Larissa dos Santos foi assediada pela supervisora. "Ela me disse que eu deveria me portar igual uma escravinha. Depois, disse que eu era muito petulante, que se pudesse me amarraria em um tronco e me daria chibatadas para aprender a me portar. Percebo que situações como essa, flagrantemente preconceituosas, não são consideradas como racismo. Depois disso, ela fez da minha vida um inferno, e pedi demissão."

Além da origem e da cor da pele, o uso do idioma é mais uma fonte de discriminação. Para tentar passar despercebida, a socióloga Jéssica Ribeiro acabou adotando uma forma híbrida de falar o idioma. "A pronúncia sai automática, não forço para fazer. Acho que é uma defesa inconsciente para evitar ser corrigida no uso das palavras. Já me disseram que falava errado, e mesmo com palavras conhecidas, não querem compreender. Isso aconteceu tantas vezes que me deixou insegura. É como se a nossa língua fosse inferior", relata.

•        Avanço da extrema direita

Assim como em outros países europeus, em Portugal, o discurso anti-imigração recrudesceu com o avanço eleitoral de partidos de extrema direita, como o Chega!. Nas eleições legislativas de março do ano passado, a legenda elegeu 48 parlamentares, e se tornou a terceira maior força política do Parlamento, quadruplicando o número de representantes eleitos em relação a 2022.

"Importaram uma retórica política que não existia aqui", diz Mariana Machado. "Usam os migrantes como bodes expiatórios e sobrevalorizam os estereótipos ligados à criminalidade, à hipersexualização." O Chega! tem como principal bandeira propostas que pretendem restringir a imigração.

Em 2020, o dirigente do partido, André Ventura, teve uma fala xenofóbica repudiada por todas as outras siglas da Assembleia da República. Em uma publicação no Facebook, ele sugeriu que a deputada Joacine Katar Moreira, do Livre, fosse deportada para Guiné-Bissau depois que ela defendeu a devolução do patrimônio cultural dos museus portugueses aos países de origem.

•        Denúncias de xenofobia

No entanto, sanções por racismo e xenofobia são raras no país. A lei n.º 93/2017, que trata do combate a esses casos prevê o pagamento de uma indenização quando há condenações. No Brasil, a legislação é mais dura. O crime de racismo, assim como o de injúria racial, é inafiançável, e além da multa, também prevê prisão de 2 a 5 anos.

As denúncias por xenofobia e racismo em Portugal podem ser registradas no e-mail da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (cicdr@acm.gov.pt). Havia um formulário virtual para coletar as queixas, que está fora do ar.

Carolina Vieira, fundadora da Plataforma Geni – que orienta as vítimas de xenofobia sobre onde encontrar apoio –, incentiva os brasileiros a registrarem as denúncias. "Assim geramos dados estatísticos e podemos pressionar as autoridades por sanções."

Carolina reconhece que a impunidade dificulta as denúncias. "Eu mesma já fiz três queixas e até hoje não fui chamada para depor em nenhuma delas." O levantamento da Casa do Brasil de Lisboa aponta que 76% dos brasileiros alvos de discurso de ódio em Portugal não prestaram queixa. "Os principais motivos destacados pelas pessoas migrantes inquiridas para não denunciar foram medo, sensação de impotência, sentimento de impunidade, custo financeiro e falta de acolhimento", descreve o documento.

•        Reação à impunidade

Movimentos sociais de combate ao racismo e a xenofobia em Portugal consideram que a legislação para punir os agressores é frouxa. Por isso, diversos grupos articularam um abaixo-assinado para uma Iniciativa Legislativa Cidadã. O objetivo da proposta é alterar o Código Penal para que, em vez de serem considerados apenas ilícitos administrativos, a discriminação racial e de origem passe a ser crime no país.

"É imprescindível uma reformulação jurídica que enquadre estas condutas como crimes, com as devidas consequências penais, para assim garantir a proteção efetiva dos direitos fundamentais e reforçar o compromisso do Estado com a justiça e a igualdade", diz o documento.

•        Com avanço da AfD, brasileiros sofrem xenofobia na Alemanha

Constrangimentos, xingamentos e recusas de atendimento no serviço público: brasileiros que vivem na Alemanha relatam que convivem com diferentes formas de xenofobia no país. Um dos fatores por trás dos casos, segundo especialistas, é o discurso anti-imigração adotado por políticos, sobretudo pelo partido de ultradireita Alternativa para Alemanha (AfD)..

"Tem situações que fico na dúvida se foi racismo, ou xenofobia, mas essa foi bem evidente", conta Isabel, estudante brasileira em Düsseldorf. Em 2019, quando chegou ao país, ela precisou abrir uma conta em banco. Na ocasião, o atendente perguntou se ela preferia ler o contrato em inglês em vez de alemão, e ela respondeu que sim. "Ele disse que nesse caso aquele banco não era para mim, eu deveria virar as costas e ir embora. São experiências assim, nas entrelinhas."

Os problemas não param por aí. Outros brasileiros têm dificuldade de acessar o serviço de saúde por conta do preconceito. Ao procurar um endocrinologista para tratar um nódulo na tireoide, Alessandra obteve como resposta que não seria atendida, por não falar alemão. "Me mandou voltar na semana seguinte com uma tradutora. Depois desse dia, tenho a sensação que preciso colocar uma armadura diária porque não sei quem vai vir com pedras na mão para me atacar pelo fato de eu ser uma imigrante."

Na avaliação da presidente da ONG Janaínas, que presta consultoria a brasileiras em casos de xenofobia, Evelyne Leandro, a vida dos imigrantes brasileiros pode ficar mais difícil no país com o aumento da participação política da AfD no Bundestag (câmara baixa do Parlamento alemão). "O receio vai fazer parte das nossas vidas, as microagressões vão aumentar, talvez haja uma ausência de políticas públicas que nos protejam", afirma.

<><> Xenofobia em alta

Não há dados oficiais que indiquem o número de casos de xenofobia contra brasileiros na Alemanha. A Embaixada do Brasil em Berlim foi procurada, mas não informou se recebeu denúncias de situações desse tipo.

No entanto, um levantamento do Ministério do Interior alemão acompanha os registros de crimes de ódio no país. Entre eles, os de racismo e xenofobia. Os dados apontam para um crescimento de 813% dessas queixas entre 2019 e 2023. Elas passaram de 1,6 mil para 15 mil denúncias.

"Quando os políticos dão um sinal para população, a população se sente autorizada a tratar mal estrangeiros. Isso não é um fenômeno da Alemanha, isso acontece em qualquer outro país europeu onde a direita ganhou uma expressão", explica o sociólogo da Universidade Livre de Berlim Sergio Costa.

Ele lembrou a tentativa do candidato a chanceler federal alemão Friedrich Merz, da União Democrata Cristã (CDU), de aprovar um projeto que pedia restrições à reunificação familiar e a rejeição de imigrantes nas fronteiras. Para aprovar a moção, ele contou com apoio da AfD. "Mesmo entre eleitores mais moderados, como aqueles que votam na democracia cristã, esse discurso xenófobo é alimentado por lideranças do partido, que apostam nesse discurso como uma maneira de não perder votos para a AfD."

Dados compilados pela Statista revelam que, em 2024, 13,3% da população acreditava que o país estava em risco por causa dos estrangeiros. Ao todo, 15,6 milhões de imigrantes vivem na Alemanha e representam 19% da população. Ainda de acordo com a pesquisa, 15,3% dos alemães consideram que os estrangeiros só estão no país para se aproveitar de benefícios sociais, e 11% alegam que, em caso de desemprego, os estrangeiros devem ser deportados.

"Esse é o mal causado pela AfD. Ela conseguiu traduzir frustrações diversas e oferecer um discurso que explica as insatisfações e ressentimentos através da presença de estrangeiros", pondera Costa. "São discursos muito vagos que acabam se valendo da desinformação para dar corpo a insatisfações que têm outras razões."

<<> No trabalho, na escola e em casa

Brasileiros que vivem em diversas cidades da Alemanha relatam casos de xenofobia que ocorrem nos habitantes mais variados. Cleuza foi alvo de preconceito por parte dos colegas na empresa em trabalhava. A tradutora mora na Saxônia, um dos estados de maior capilaridade da AfD, onde o partido conquistou 30,6% dos votos na última eleição estadual.

"Faziam de conta que não me entendiam, diziam que eu não falava alemão direito. Eu só queria ganhar meu pão e ir para casa. Foi bem difícil e no fim das contas, não quis mais trabalhar lá e pedi para sair, porque o ambiente era pesadíssimo. Sei que não foi pessoal porque outros também foram vítimas", relata.

Já Solange conta que recorreu ao atendimento de psicologia escolar após o filho de 6 anos ser discriminado pela professora. "Ela começou a detoná-lo, dizer que ele não conseguia acompanhar a turma e que nunca iria para o ginásio. Conversando com outros pais, descobri que ela tinha a mesma atitude com outras duas famílias estrangeiras. Então foi sim racismo", relata. "Tirei ele da escola e procurei ajuda do estado. Fiquei muito mal, porque temos o direito de ficar aqui e temos que passar por isso."

Em Dresden, outro reduto da AfD, Daniela recebeu pelo correio o panfleto da sigla que imitava uma passagem de avião para deportação de imigrantes. "Foi violento porque sou estrangeira, meu marido viu que foi um homem idoso, de cabelo branco, que colocou na caixa de correio, que tem nosso sobrenome. Foi um choque de realidade ver esse comportamento. Já teve outras situações de gente cuspindo do meu lado ou de não me cumprimentarem de volta", diz. "O fato de ser lida como branca no Brasil não me protegeu na Alemanha."

<><> AfD e o avanço da xenofobia

Os casos de xenofobia na Alemanha não começaram com o surgimento da AfD, fundada em 2013. Segundo Sergio Costa, a discriminação aumentou no país após a reunificação da Alemanha em 1990. Ele explica que com a integração, os estados da antiga Alemanha Oriental e as cidades industriais perderam relevância econômica no país.

Além disso, naquele período, agendas de diversidade social ganharam força no país. "Essa transformação não é aceita por todos os grupos. As pessoas veem na possibilidade de hostilizar estrangeiros uma forma ilusória de se rebelar contra uma influência perdida, a exemplo de homens que perderam parte da influência com o crescimento da igualdade de gênero", afirma o pesquisador.

Por fim, nesse processo, estrangeiros, seus descendentes e alemães naturalizados passaram a ocupar espaços na sociedade alemã. "O discurso xenófobo é uma maneira fácil de traduzir essas insatisfações que tem outros motivos, como a globalização e a perda de importância econômica."

Um dos que tentaram arregimentar esse discurso durante a reunificação foi o Partido Nacional-Democrático da Alemanha (NPD), que nunca obteve votos para chegar ao Bundestag. No caso da AfD, o partido não nasceu ultradireitista. No entanto, essa ala ganhou espaço na legenda, expulsou os fundadores moderados e eurocéticos e se promoveu sob uma plataforma de discriminação com estrangeiros.

<><> Preconceito multifacetado

Evelyne Leandro ressalta que os 160 mil brasileiros na Alemanha são um grupo heterogêneo, por isso, a xenofobia tem várias camadas. "Quando você soma a raça à questão econômica, há mais microagressões", afirma.

Rosa, moradora da Turíngia, onde o brasileiro Torben Braga se reelegeu deputado estadual pela AfD em 2024 e estado da maior proporção de votos para a sigla (32,8%), também já foi vítima de xenofobia. "Eu estava andando na rua com algumas amigas e alemães passaram de carro, gritando: 'Fora! Alemanha para alemães", conta.

Outra situação ocorreu em uma confraternização com amigos do marido, que é alemão. "Um homem perguntou para meu marido se meus pelos pubianos eram iguais ao meu cabelo. Por que ele se achou confortável para dizer isso? Levantei e fui embora." Para ela, pesou o fato de ser uma mulher negra. "Se talvez eu fosse uma estrangeira de pele clara ele não faria esse tipo de pergunta. Naquele momento de impotência, foi traumático."

Já Mayara, ao tentar entrar numa festa, foi barrada pelo segurança, que liberou a entrada das duas amigas que a acompanhavam, uma alemã e outra polonesa. "Pediu meus documentos, coisa que não fez com as outras duas. Perguntou minha idade, eu já tinha 30 anos, e depois de onde eu vinha e disse que eu não iria entrar. O caso foi parar na Justiça."

Na Alemanha, vítimas de xenofobia podem procurar a Agência Alemã de Antidiscriminação. O órgão oferece aconselhamento aos imigrantes em casos de discriminação e indica quais as medidas judiciais podem ser tomadas. Ela foi criada em 2006, junto com uma lei antidiscriminação, que prevê o pagamento de indenização quando o autor é responsabilizado.

 

Fonte: DW Brasil

 

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