O cotidiano de xenofobia contra brasileiros
em Portugal
"Só descobri o que é ser uma pessoa
racializada aqui", afirma a brasileira Priscila Valadão, que mora há 10
anos em Portugal. "Já fui chamada de macaca, puta, falam que a minha
certidão (de naturalização) é de plástico."
Ela relata ainda que, enquanto caminhava na
rua, um homem português, ao notar que ela falava com sotaque brasileiro,
gritou: "volta para sua terra" e a agrediu com uma bengala.
"Vivi, trabalhei e criei meus filhos aqui, mas não me sinto em casa,
percebi que nunca vou ter direito a ser como os portugueses."
Um balanço da Comissão para a Igualdade e
Contra a Discriminação Racial aponta que em 2021, foram registradas 109 queixas
de xenofobia contra brasileiros em Portugal, uma alta de 142% na comparação com
2018, quando houve 45 denúncias.
Os casos vão desde situações veladas como
dificuldade em alugar um apartamento, conseguir trabalho ou acessar serviços de
saúde, por exemplo, a pedidos para falar em inglês ao invés do português
brasileiro, até ofensas explícitas e agressões.
• Alta
na imigração alimenta tensões
O fluxo migratório em Portugal disparou a
partir de 2015, quando o total de estrangeiros passou de 383,7 mil para mais de
1 milhão em 2023. Assim os imigrantes passaram a compor cerca de 10% da
população do país. Desses, 360 mil são brasileiros, de acordo com o Ministério
das Relações Exteriores, e representam a principal comunidade estrangeira no
país.
Apesar da alta, a presença de brasileiros é
vista como indesejada por uma fatia considerável da população portuguesa.
Segundo uma pesquisa da Fundação Francisco Manual dos Santos, 38% dos
portugueses consideram que os brasileiros trazem desvantagens ao país e 51%
afirmaram que a entrada de desses imigrantes tem que diminuir.
Além disso, o número de brasileiros barrados
ao tentar embarcar para Portugal subiu 700% entre 2023 e 2024 – passando de 179 para 1.470 pessoas, conforme
aponta o Relatório Anual de Segurança Interna.
"De uma forma em geral, a sociedade
portuguesa está mais intolerante face aos imigrantes em geral e aos imigrantes
brasileiros em particular", pondera a pesquisadora do Instituto
Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (Ispa), Mariana
Machado. "Eu penso que possa ser uma percepção de ameaça que existe por
parte dos portugueses a ver os brasileiros como concorrentes diretos por
empregos qualificados e por benefícios sociais."
• Relação
metrópole e colônia
A herança colonial está na raiz da
discriminação de que os brasileiros são alvo atualmente em Portugal, argumenta
Mariana Machado. "Existe no Brasil e em Portugal um mito 'lusotropicalista'
que vê a miscigenação entre portugueses, indígenas e pessoas negras como uma
prova de uma identidade naturalmente integradora dos portugueses. Mas é
justamente isso que invisibiliza as violações sistemáticas de escravizados e
depois das mulheres brasileiras livres." Uma das faces dessa discriminação
é o gênero, de modo que as mulheres são associadas erroneamente à prostituição
e a uma hipersexualização.
Entre a população negra, as discriminações se
acumulam. "Os fenômenos são diferentes, porque uma pessoa branca pode
sofrer xenofobia, enquanto uma pessoa negra também é alvo de racismo. Há uma
perpetuação da hierarquia racial", afirma a presidente da Casa do Brasil
em Lisboa, Ana Paula Costa.
Ao negociar um período de férias no bar em
que trabalhava em Lisboa, a pedagoga Larissa dos Santos foi assediada pela
supervisora. "Ela me disse que eu deveria me portar igual uma escravinha.
Depois, disse que eu era muito petulante, que se pudesse me amarraria em um
tronco e me daria chibatadas para aprender a me portar. Percebo que situações
como essa, flagrantemente preconceituosas, não são consideradas como racismo.
Depois disso, ela fez da minha vida um inferno, e pedi demissão."
Além da origem e da cor da pele, o uso do
idioma é mais uma fonte de discriminação. Para tentar passar despercebida, a
socióloga Jéssica Ribeiro acabou adotando uma forma híbrida de falar o idioma.
"A pronúncia sai automática, não forço para fazer. Acho que é uma defesa
inconsciente para evitar ser corrigida no uso das palavras. Já me disseram que
falava errado, e mesmo com palavras conhecidas, não querem compreender. Isso
aconteceu tantas vezes que me deixou insegura. É como se a nossa língua fosse
inferior", relata.
• Avanço
da extrema direita
Assim como em outros países europeus, em
Portugal, o discurso anti-imigração recrudesceu com o avanço eleitoral de
partidos de extrema direita, como o Chega!. Nas eleições legislativas de março
do ano passado, a legenda elegeu 48 parlamentares, e se tornou a terceira maior
força política do Parlamento, quadruplicando o número de representantes eleitos
em relação a 2022.
"Importaram uma retórica política que
não existia aqui", diz Mariana Machado. "Usam os migrantes como bodes
expiatórios e sobrevalorizam os estereótipos ligados à criminalidade, à
hipersexualização." O Chega! tem como principal bandeira propostas que
pretendem restringir a imigração.
Em 2020, o dirigente do partido, André
Ventura, teve uma fala xenofóbica repudiada por todas as outras siglas da
Assembleia da República. Em uma publicação no Facebook, ele sugeriu que a
deputada Joacine Katar Moreira, do Livre, fosse deportada para Guiné-Bissau
depois que ela defendeu a devolução do patrimônio cultural dos museus
portugueses aos países de origem.
• Denúncias
de xenofobia
No entanto, sanções por racismo e xenofobia
são raras no país. A lei n.º 93/2017, que trata do combate a esses casos prevê
o pagamento de uma indenização quando há condenações. No Brasil, a legislação é
mais dura. O crime de racismo, assim como o de injúria racial, é inafiançável,
e além da multa, também prevê prisão de 2 a 5 anos.
As denúncias por xenofobia e racismo em
Portugal podem ser registradas no e-mail da Comissão para a Igualdade e Contra
a Discriminação Racial (cicdr@acm.gov.pt). Havia um formulário virtual para
coletar as queixas, que está fora do ar.
Carolina Vieira, fundadora da Plataforma Geni
– que orienta as vítimas de xenofobia sobre onde encontrar apoio –, incentiva
os brasileiros a registrarem as denúncias. "Assim geramos dados
estatísticos e podemos pressionar as autoridades por sanções."
Carolina reconhece que a impunidade dificulta
as denúncias. "Eu mesma já fiz três queixas e até hoje não fui chamada
para depor em nenhuma delas." O levantamento da Casa do Brasil de Lisboa
aponta que 76% dos brasileiros alvos de discurso de ódio em Portugal não
prestaram queixa. "Os principais motivos destacados pelas pessoas
migrantes inquiridas para não denunciar foram medo, sensação de impotência,
sentimento de impunidade, custo financeiro e falta de acolhimento",
descreve o documento.
• Reação
à impunidade
Movimentos sociais de combate ao racismo e a
xenofobia em Portugal consideram que a legislação para punir os agressores é
frouxa. Por isso, diversos grupos articularam um abaixo-assinado para uma
Iniciativa Legislativa Cidadã. O objetivo da proposta é alterar o Código Penal
para que, em vez de serem considerados apenas ilícitos administrativos, a
discriminação racial e de origem passe a ser crime no país.
"É imprescindível uma reformulação
jurídica que enquadre estas condutas como crimes, com as devidas consequências
penais, para assim garantir a proteção efetiva dos direitos fundamentais e
reforçar o compromisso do Estado com a justiça e a igualdade", diz o
documento.
• Com
avanço da AfD, brasileiros sofrem xenofobia na Alemanha
Constrangimentos, xingamentos e recusas de
atendimento no serviço público: brasileiros que vivem na Alemanha relatam que
convivem com diferentes formas de xenofobia no país. Um dos fatores por trás
dos casos, segundo especialistas, é o discurso anti-imigração adotado por
políticos, sobretudo pelo partido de ultradireita Alternativa para Alemanha
(AfD)..
"Tem situações que fico na dúvida se foi
racismo, ou xenofobia, mas essa foi bem evidente", conta Isabel, estudante
brasileira em Düsseldorf. Em 2019, quando chegou ao país, ela precisou abrir
uma conta em banco. Na ocasião, o atendente perguntou se ela preferia ler o
contrato em inglês em vez de alemão, e ela respondeu que sim. "Ele disse
que nesse caso aquele banco não era para mim, eu deveria virar as costas e ir
embora. São experiências assim, nas entrelinhas."
Os problemas não param por aí. Outros
brasileiros têm dificuldade de acessar o serviço de saúde por conta do
preconceito. Ao procurar um endocrinologista para tratar um nódulo na tireoide,
Alessandra obteve como resposta que não seria atendida, por não falar alemão.
"Me mandou voltar na semana seguinte com uma tradutora. Depois desse dia,
tenho a sensação que preciso colocar uma armadura diária porque não sei quem
vai vir com pedras na mão para me atacar pelo fato de eu ser uma
imigrante."
Na avaliação da presidente da ONG Janaínas,
que presta consultoria a brasileiras em casos de xenofobia, Evelyne Leandro, a
vida dos imigrantes brasileiros pode ficar mais difícil no país com o aumento
da participação política da AfD no Bundestag (câmara baixa do Parlamento
alemão). "O receio vai fazer parte das nossas vidas, as microagressões vão
aumentar, talvez haja uma ausência de políticas públicas que nos
protejam", afirma.
<><> Xenofobia em alta
Não há dados oficiais que indiquem o número
de casos de xenofobia contra brasileiros na Alemanha. A Embaixada do Brasil em
Berlim foi procurada, mas não informou se recebeu denúncias de situações desse
tipo.
No entanto, um levantamento do Ministério do
Interior alemão acompanha os registros de crimes de ódio no país. Entre eles,
os de racismo e xenofobia. Os dados apontam para um crescimento de 813% dessas
queixas entre 2019 e 2023. Elas passaram de 1,6 mil para 15 mil denúncias.
"Quando os políticos dão um sinal para
população, a população se sente autorizada a tratar mal estrangeiros. Isso não
é um fenômeno da Alemanha, isso acontece em qualquer outro país europeu onde a
direita ganhou uma expressão", explica o sociólogo da Universidade Livre
de Berlim Sergio Costa.
Ele lembrou a tentativa do candidato a
chanceler federal alemão Friedrich Merz, da União Democrata Cristã (CDU), de
aprovar um projeto que pedia restrições à reunificação familiar e a rejeição de
imigrantes nas fronteiras. Para aprovar a moção, ele contou com apoio da AfD.
"Mesmo entre eleitores mais moderados, como aqueles que votam na
democracia cristã, esse discurso xenófobo é alimentado por lideranças do
partido, que apostam nesse discurso como uma maneira de não perder votos para a
AfD."
Dados compilados pela Statista revelam que,
em 2024, 13,3% da população acreditava que o país estava em risco por causa dos
estrangeiros. Ao todo, 15,6 milhões de imigrantes vivem na Alemanha e
representam 19% da população. Ainda de acordo com a pesquisa, 15,3% dos alemães
consideram que os estrangeiros só estão no país para se aproveitar de
benefícios sociais, e 11% alegam que, em caso de desemprego, os estrangeiros
devem ser deportados.
"Esse é o mal causado pela AfD. Ela
conseguiu traduzir frustrações diversas e oferecer um discurso que explica as
insatisfações e ressentimentos através da presença de estrangeiros",
pondera Costa. "São discursos muito vagos que acabam se valendo da
desinformação para dar corpo a insatisfações que têm outras razões."
<<> No trabalho, na escola e em casa
Brasileiros que vivem em diversas cidades da
Alemanha relatam casos de xenofobia que ocorrem nos habitantes mais variados.
Cleuza foi alvo de preconceito por parte dos colegas na empresa em trabalhava.
A tradutora mora na Saxônia, um dos estados de maior capilaridade da AfD, onde
o partido conquistou 30,6% dos votos na última eleição estadual.
"Faziam de conta que não me entendiam,
diziam que eu não falava alemão direito. Eu só queria ganhar meu pão e ir para
casa. Foi bem difícil e no fim das contas, não quis mais trabalhar lá e pedi
para sair, porque o ambiente era pesadíssimo. Sei que não foi pessoal porque
outros também foram vítimas", relata.
Já Solange conta que recorreu ao atendimento
de psicologia escolar após o filho de 6 anos ser discriminado pela professora.
"Ela começou a detoná-lo, dizer que ele não conseguia acompanhar a turma e
que nunca iria para o ginásio. Conversando com outros pais, descobri que ela
tinha a mesma atitude com outras duas famílias estrangeiras. Então foi sim
racismo", relata. "Tirei ele da escola e procurei ajuda do estado.
Fiquei muito mal, porque temos o direito de ficar aqui e temos que passar por
isso."
Em Dresden, outro reduto da AfD, Daniela
recebeu pelo correio o panfleto da sigla que imitava uma passagem de avião para
deportação de imigrantes. "Foi violento porque sou estrangeira, meu marido
viu que foi um homem idoso, de cabelo branco, que colocou na caixa de correio,
que tem nosso sobrenome. Foi um choque de realidade ver esse comportamento. Já
teve outras situações de gente cuspindo do meu lado ou de não me cumprimentarem
de volta", diz. "O fato de ser lida como branca no Brasil não me
protegeu na Alemanha."
<><> AfD e o avanço da xenofobia
Os casos de xenofobia na Alemanha não
começaram com o surgimento da AfD, fundada em 2013. Segundo Sergio Costa, a
discriminação aumentou no país após a reunificação da Alemanha em 1990. Ele
explica que com a integração, os estados da antiga Alemanha Oriental e as
cidades industriais perderam relevância econômica no país.
Além disso, naquele período, agendas de
diversidade social ganharam força no país. "Essa transformação não é
aceita por todos os grupos. As pessoas veem na possibilidade de hostilizar
estrangeiros uma forma ilusória de se rebelar contra uma influência perdida, a
exemplo de homens que perderam parte da influência com o crescimento da
igualdade de gênero", afirma o pesquisador.
Por fim, nesse processo, estrangeiros, seus
descendentes e alemães naturalizados passaram a ocupar espaços na sociedade
alemã. "O discurso xenófobo é uma maneira fácil de traduzir essas
insatisfações que tem outros motivos, como a globalização e a perda de
importância econômica."
Um dos que tentaram arregimentar esse
discurso durante a reunificação foi o Partido Nacional-Democrático da Alemanha
(NPD), que nunca obteve votos para chegar ao Bundestag. No caso da AfD, o
partido não nasceu ultradireitista. No entanto, essa ala ganhou espaço na
legenda, expulsou os fundadores moderados e eurocéticos e se promoveu sob uma
plataforma de discriminação com estrangeiros.
<><> Preconceito multifacetado
Evelyne Leandro ressalta que os 160 mil
brasileiros na Alemanha são um grupo heterogêneo, por isso, a xenofobia tem
várias camadas. "Quando você soma a raça à questão econômica, há mais
microagressões", afirma.
Rosa, moradora da Turíngia, onde o brasileiro
Torben Braga se reelegeu deputado estadual pela AfD em 2024 e estado da maior
proporção de votos para a sigla (32,8%), também já foi vítima de xenofobia.
"Eu estava andando na rua com algumas amigas e alemães passaram de carro,
gritando: 'Fora! Alemanha para alemães", conta.
Outra situação ocorreu em uma
confraternização com amigos do marido, que é alemão. "Um homem perguntou
para meu marido se meus pelos pubianos eram iguais ao meu cabelo. Por que ele
se achou confortável para dizer isso? Levantei e fui embora." Para ela,
pesou o fato de ser uma mulher negra. "Se talvez eu fosse uma estrangeira
de pele clara ele não faria esse tipo de pergunta. Naquele momento de
impotência, foi traumático."
Já Mayara, ao tentar entrar numa festa, foi
barrada pelo segurança, que liberou a entrada das duas amigas que a
acompanhavam, uma alemã e outra polonesa. "Pediu meus documentos, coisa
que não fez com as outras duas. Perguntou minha idade, eu já tinha 30 anos, e
depois de onde eu vinha e disse que eu não iria entrar. O caso foi parar na
Justiça."
Na Alemanha, vítimas de xenofobia podem
procurar a Agência Alemã de Antidiscriminação. O órgão oferece aconselhamento
aos imigrantes em casos de discriminação e indica quais as medidas judiciais
podem ser tomadas. Ela foi criada em 2006, junto com uma lei antidiscriminação,
que prevê o pagamento de indenização quando o autor é responsabilizado.
Fonte: DW Brasil

Nenhum comentário:
Postar um comentário