Greg Grandin: Trump e Bukele criam campos de
concentração em El Salvador
Toda
a desonrosa história de ilegalidade dos EUA na América Latina parece estar
resumida na saga de Kilmar Ábrego García: o homem que foi
deportado ilegalmente e preso no Centro de Confinamento do Terrorismo, CECOT,
em El Salvador, causando indignação entre os defensores dos direitos humanos e
opositores do governo Trump nos EUA.
Alguns
consideram a chegada de Ábrego García a El Salvador o marco de um novo capítulo
sombrio na história dos EUA, mas Washington tem um longo histórico de apoio e
exploração da ilegalidade na América Latina para seus
próprios fins.
Durante
as décadas de 1970 e 1980, regimes anticomunistas apoiados pelos EUA
“desapareceram” com centenas de milhares de cidadãos latino-americanos, praticando uma
forma de terrorismo de Estado que remonta à Alemanha
nazista. El Salvador ganhou fama por esses
“desaparecimentos” políticos. Cerca de 71 mil pessoas, entre 1 e 2% da população de
El Salvador, foram mortas ou desapareceram.
Um
aspecto importante do terror naquela época era não saber. Amigos e familiares
dos desaparecidos se esgotavam tentando lidar com o labirinto da burocracia.
Autoridades do governo ignoravam suas perguntas, e diziam que seus parentes
desaparecidos provavelmente tinham ido para Cuba ou fugido com uma amante.
Atualmente,
porém, Trump, com a ajuda do presidente salvadorenho Nayib Bukele, não vê necessidade
desses subterfúgios. A impunidade do foda-se demonstrada durante a visita de
Bukele ao Salão Oval da Casa Branca — “Claro que não vou fazer isso”, disse
Bukele, quando perguntaram se ele devolveria Ábrego García — é um nível mais
alto de terror, que não pretende semear dúvida, mas fomentar o desamparo.
Aproximadamente
2% da população de El Salvador definha nos gulags de Bukele, e o país
atingiu a mais alta taxa de
encarceramento per capita do mundo — uma proporção que equivaleria a 4
milhões de pessoas no Brasil.
É como
se de repente ninguém mais soubesse para onde foram todos os habitantes da
Paraíba — até descobrirem que eles haviam sido enviados para CECOT.
Todos
os deportados para o CECOT merecem atenção. O crime de Estado não é que uma
pessoa inocente foi mandado para o CECOT “por engano”, mas que qualquer pessoa
tenha sido mandada para lá. A existência do CECOT, no entanto, precisa ser
reconhecida, não como uma aberração na história dos EUA na América Latina, mas
como uma extensão dela.
Washington
teve profundas implicações na extensa história de repressão na América
Latina, ajudando a criar um sistema
impressionante de
esquadrões da morte, campos de extermínio e voos da morte — helicópteros ou
aviões que atiravam prisioneiros políticos no oceano para se afogarem.
É
preciso repudiar Trump em voz alta e firme, sem esquecer, porém, que os EUA há
muito tempo andam à margem da lei na América Latina.
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Sem lei na América Latina
Na
América Latina, a linha entre combater e favorecer o fascismo está sempre
mudando de lugar. Durante a Segunda Guerra Mundial, Washington investiu uma
enorme capacidade de repressão em seus vizinhos de hemisfério, como parte do
esforço de guerra dos Aliados contra o nazismo. Vencida a guerra, as forças de
segurança da região, incentivadas pelo governo de Harry Truman, voltaram suas
armas contra os antifascistas latino-americanos.
Em
1948, por exemplo, o Chile reprimiu uma greve de mineiros com seu exército
reforçado pelos EUA. Os militares, segundo escreveu a historiadora
Jody Pavilack, assumiram “o controle total das minas e dos terrenos no
entorno”, e “mandaram centenas de pessoas para prisões militares e baniram
outras milhares da região”.
Apenas
quatro anos antes, muitos desses grevistas tinham ouvido Henry Wallace,
vice-presidente de Franklin Roosevelt nos EUA, dizer que eles eram a linha de
frente da democracia. Agora, eles estavam na linha de tiro, sendo caçados por
um jovem capitão do exército, Augusto Pinochet, que prendeu mineiros de carvão
e nitrato. Muitos foram levados para a colônia penal de Pisagua, no deserto do
Atacama, que depois, durante a ditadura, Pinochet usou como centro de detenção
e tortura e local de valas comuns para as vítimas do regime.
O
Equador também usou tanques e aviões que recebeu do programa Lend-Lease durante
a guerra para fazer cerco a um protesto estudantil. Bolívia e Paraguai usaram
tanques fornecidos pelos EUA para dispersar greves.
Com o
avanço da Guerra Fria, Washington apoiou uma série de golpes, começando por
Venezuela e Peru, em 1948. Em meados dos anos 70, a América Latina era um
continente aparelhado.
A CIA
se infiltrou em praticamente todos os aspectos da sociedade civil. Entre os
documentos relacionados ao assassinato de John F. Kennedy, que recentemente
perderam o sigilo, um relatório revela que a CIA
organizou as eleições de 1966 na Bolívia como se fosse um musical da Broadway,
gastando centenas de milhares de dólares no candidato vencedor e em seu
oponente, para que as eleições parecessem “confiáveis”. A agência considerou
sua produção uma “verdadeira proeza”. Cinco anos depois, Washington deixou de
lado o fingimento e apoiou diretamente um golpe militar na Bolívia.
Os EUA
infestaram a região com agências de inteligência e segurança com enorme poder
de repressão. Os esquadrões da morte na América Latina não eram justiceiros
independentes, mas a linha de frente de uma cruzada cada vez mais integrada em
todo o continente. Autoridades dos EUA ajudaram a sincronizar
as unidades de inteligência nacional latino-americanas em uma operação única, que recebeu o nome
de Condor. A CIA fornecia
agentes e um sistema de comunicação para todo o
continente, com sede na Zona do Canal do Panamá. As agências de inteligência
europeias se inspiravam na operação
Condor para construir suas próprias máquinas de repressão.
Sob o
abrigo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, a
USAID, os EUA enviaram muitos homens para treinar os latino-americanos na arte
da tortura. O mais conhecido deles era Daniel Mitrione.
No
Brasil, no Uruguai, e em outros lugares, os planos de dominação dos EUA exigiam
essa violência — como está acontecendo em El Salvador.
Mitrione
chegou ao Brasil antes do golpe de 1964, que teve apoio da CIA, integrando uma
equipe que propunha aplicar o “método científico” na tortura. Ele fez o mesmo
no Uruguai, onde inventou novos instrumentos de tortura. Uma delas era a
“cadeira de dragão”, feita de metal condutor, com barras articuladas que
pressionavam os membros do prisioneiro nu cada vez que aplicavam choque,
criando cortes profundos na pele.
Naquela
época, como agora, a completa ausência de responsabilidade não era apenas um
fio condutor entre os parceiros dos EUA: era uma condição mínima para as
parcerias. No Brasil, no Uruguai, e em outros lugares, os planos de dominação
dos EUA exigiam essa violência — como está acontecendo em El Salvador, onde
Trump tenta alavancar um enorme centro de detenção para ser usado como destino
para inexplicáveis deportações em massa.
A
alegria com que Trump, Bukele e demais presentes na reunião na Casa Branca
discutiram seu plano foi horripilante.
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Democracia e Desumanização
Imagens dos gulags de
Bukele, com prisioneiros empurrados uns contra os outros, despidos, e com
as cabeças raspadas, chamaram a atenção
do mundo. Para muitos observadores, elas evocam a desumanização dos navios negreiros e dos campos de
concentração nazistas.
Representam uma violência que, para muitos, define a América Latina, refletida
na história sinistra do período da Guerra Fria, de desaparecimentos à tortura,
das prisões em massa aos voos da morte.
Essas
histórias, no entanto, não são a totalidade da América Latina. Ao lado de toda
a desumanização corre uma outra história de humanização, uma corrente
emancipatória cujas raízes remontam à colonização.
A maior
parte da cobertura em língua inglesa sobre a resistência a Bukele se concentra
em advogados e políticos de classe média. Os opositores mais pobres ao
presidente autoritário são frequentemente esquecidos: ativistas rurais, trabalhistas, ambientais e feministas, que estão
literalmente colocando suas vidas em jogo.
Líderes
de movimentos de oposição, especialmente mulheres, mas também
ambientalistas e sindicalistas, são mortos em ritmo constante. Dos que não são
assassinados, muitos são processados por acusações forjadas em um sistema
judicial que cumpre as ordens do presidente. Bukele colocou o país sob um
aparente estado de exceção permanente, acusando as organizações de sociedade
civil de serem fachadas para gangues.
Se a
democracia fosse medida por essa coragem, El Salvador e toda a América Latina,
onde ativistas de movimentos sociais lutam por uma sociedade mais igualitária,
contra todas as possibilidade e enfrentando grandes riscos, deveriam figurar
entre os lugares mais democráticos do planeta.
Se há
esperança entre os salvadorenhos, talvez haja também esperança para seus
vizinhos do norte: não só que os Estados Unidos deixem de apoiar e impulsionar
a ilegalidade na América Latina, mas também que a própria ilegalidade se
sujeite a aspirações mais elevadas — que todos possamos ser humanizados nos
olhos uns dos outros.
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Trump promete financiar estruturas de campos de concentração
em El Salvador
Em uma
decisão que marca um novo revés para as promessas radicais de Donald Trump, a
Justiça dos Estados Unidos determinou que o governo norte-americano não pode
revogar o status legal de mais de 530 mil imigrantes oriundos de Venezuela,
Cuba, Nicarágua e Haiti. Contudo, o milionário de extrema direita busca apoio
de El Salvador para a criação de “campos de concentração”.
A ordem
contra as deportações em massa foi emitida por um tribunal em Boston. A decisão
protege os imigrantes que entraram legalmente no país por meio de um programa
especial implementado durante a gestão de Joe Biden. A medida representa um
obstáculo para Trump que tem prometido executar a maior deportação em massa da
história dos EUA.
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Campos de concentração
Trump
se encontrou com o presidente de El Salvador, Nayib Bukele. Os dois líderes,
conhecidos por suas posturas autoritárias e alinhamento ideológico à extrema
direita, trocaram elogios durante a reunião e discutiram uma possível ampliação
da cooperação entre os países na área de segurança. Particularmente sobre estes
“campos de concentração”.
Um dos
pontos centrais do encontro foi o financiamento norte-americano para a
construção de novos presídios de segurança máxima em território salvadorenho —
estruturas que, segundo analistas, podem se transformar em campos de detenção
de imigrantes deportados dos EUA. Desde março, mais de 200 venezuelanos já
foram transferidos dos Estados Unidos para El Salvador, onde estão encarcerados
em prisões originalmente destinadas a criminosos considerados de alta
periculosidade.
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Cenário alarmante em El Salvador
Para a
analista política e professora de filosofia Biazita Gomes, especialista em
geopolítica, relações internacionais e direitos humanos o cenário é alarmante.
“É um cenário muito preocupante. Bukele não respeita nenhum tipo de direito
humano ou internacional. Essas prisões de venezuelanos não possuem qualquer
respaldo jurídico nem em El Salvador ou nos EUA. Sequer no direito
internacional”, afirma.
Segundo
ela, o envio de imigrantes para prisões estrangeiras, como campos de
concentração externos, configura uma tentativa de burlar as legislações
norte-americanas. “Como Trump não pode fazer essas prisões dentro do seu país
porque a legislação impede, o Judiciário americano impede isso, então vemos as
tentativas de Trump de burlar leis”, alerta Gomes.
A
especialista aponta que, por trás dessa manobra, está o financiamento massivo
do governo norte-americano ao regime de Bukele. “O que temos é uma questão de
dinheiro. Os EUA colocam muito dinheiro em El Salvador e vão passar por cima de
todas as legislações internacionais. Vamos ver El Salvador se transformando em
um grande campo de concentração. Ele já é assim dentro do país. 2% dos jovens
estão presos, consequência de um Estado de Sítio que o país vive há dois anos.
A tendência é aumentar”, explica.
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Escalada autoritária
Além de
El Salvador, a professora menciona com preocupação o avanço de governos
autoritários em outras partes da América Latina, como o Equador, comandado por
Daniel Noboa. Reeleito em meio a denúncias de irregularidades eleitorais, Noboa
também decretou Estado de Sítio antes do pleito, sob a justificativa de conter
a violência gerada por organizações criminosas.
“O
Equador segue o mesmo caminho. Em guerra civil desde 2024, Noboa declarou Sítio
no sábado que antecedeu o processo eleitoral. São dois regimes totalitários que
fazem parte do que chamo de Cinturão Trumpista na América Latina. Ainda temos
Paraguai e Argentina. Temos que ficar
de olho nisso”, alerta Biazita Gomes.
A
crescente influência de lideranças de direita radical e a cooperação
internacional para contornar legislações protetivas de direitos humanos acendem
o alerta de organizações internacionais e defensores das liberdades civis. O
temor, como diz Biazita, é que estejamos assistindo à construção de um “filme
distópico acontecendo na realidade”.
Fonte: The Intercept/TVT News

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