Papa
Francisco – contra a idolatria do capital
A morte
de Jorge Bergoglio, o Papa Francisco, marca o fim de uma figura pouco comum,
que se destacou, numa Itália governada por neofascistas e numa Europa cada vez
mais reacionária, por um engajamento ético, social e ecológico surpreendente.
Depois
que Pio XII excomungou os comunistas, a esquerda só podia esperar anátemas do
Vaticano. João Paulo II e Joseph Ratzinger não perseguiram os teólogos da
libertação por utilizarem conceitos marxistas? Não tentaram impor um “silêncio
obsequioso” a Leonardo Boff? É claro que, desde o século XIX, sempre existiram
correntes de esquerda no catolicismo, mas elas encontraram somente hostilidade
por parte das autoridades romanas.
Por
outro lado, as correntes clericais críticas do capitalismo eram geralmente
bastante reacionárias. Criticando o socialismo feudal ou clerical no Manifesto
comunista, Marx e Engels notaram “sua absoluta incapacidade de compreender o
curso da história”; mas reconheceram nesta mistura “de ecos do passado e
ameaças ao futuro” uma “crítica mordaz e espirituosa” que podia por vezes
“atingir a burguesia bem no coração”.
Max
Weber propôs uma análise mais geral da relação entre a Igreja e o capital: em
sua obra sobre a sociologia das religiões, ele constata a “profunda aversão”
(tiefe Abneigung) da ética católica ao espírito do capitalismo, apesar das
adaptações e compromissos. Esta é uma hipótese que deve ser levada em
consideração se quisermos compreender o que aconteceu em Roma com a eleição do
papa argentino.
• Jorge Bergoglio, o Papa Francisco
O que
poderíamos esperar do cardeal Jorge Bergoglio, eleito Pontifex Maximum em março
de 2013? Claro, ele era latino-americano, o que não deixava de ser um sinal de
mudança. Mas ele tinha sido eleito pelo mesmo conclave que tinha entronizado o
conservador Joseph Ratzinger, e vinha da Argentina, um país onde a Igreja não é
conhecida por seu progressismo, com vários de seus dignitários tendo colaborado
ativamente com a sangrenta ditadura militar.
Não foi
esse o caso de Jorge Bergoglio: segundo alguns relatos, chegou até mesmo a
ajudar pessoas perseguidas pela junta a esconderem-se ou a abandonarem o país.
Mas também não se opôs ao regime: um “pecado de omissão”, poderíamos dizer.
Enquanto alguns cristãos de esquerda, como Adolfo Pérez Esquivel (Prêmio Nobel
da Paz), sempre o apoiaram, outros viam-no como um opositor de direita ao
governo dos “peronistas de esquerda” Néstor e Cristina Kirchner.
Seja
como for, uma vez eleito, Francisco – nome que escolheu em referência a São
Francisco, o amigo dos pobres e dos pássaros – distinguiu-se imediatamente por
sua atitude corajosa e engajada. De certa forma, ele lembra o Papa Roncalli,
João XXIII: eleito “papa de transição” para garantir a continuidade e a
tradição, iniciou a mais profunda mudança na Igreja depois de séculos: o
Concílio Vaticano II (1962-65). Bergoglio tinha inicialmente pensado em adotar
o nome de “João XXIV” para homenagear seu antecessor da década de 1960.
A
primeira viagem do novo pontífice fora de Roma ocorreu em julho de 2013, no
porto italiano de Lampedusa, onde centenas de migrantes ilegais chegavam,
enquanto muitos outros se afogavam no Mediterrâneo. Em sua homilia, não hesitou
em se opor ao governo italiano – e a uma grande parte da opinião pública –,
denunciando a “globalização da indiferença” que nos torna “insensíveis aos
gritos dos outros”, ou seja, à sorte dos “imigrantes que morreram no mar,
naquelas embarcações que, em vez de serem um caminho de esperança, eram um
caminho de morte”. Voltaria várias vezes a esta crítica à desumanidade da
política europeia em relação aos migrantes.
No que
diz respeito à América Latina, também houve uma mudança notável. Em setembro de
2013, o Papa Francisco encontrou-se com Gustavo Gutiérrez, fundador da teologia
da libertação, e o jornal do Vaticano Osservatore Romano publicou, pela
primeira vez, um artigo favorável a este pensador. Outro gesto simbólico foi a
beatificação, e depois a canonização, do arcebispo Romero de El Salvador,
assassinado em 1980 pelos militares por ter denunciado a repressão antipopular,
um herói celebrado pela esquerda católica latino-americana, mas ignorado pelos
pontífices anteriores.
Durante
sua visita à Bolívia, em julho de 2015, Jorge Bergoglio prestou uma homenagem
intensa e vibrante à memória de seu companheiro jesuíta Luis Espinal Camps, um
padre missionário, poeta e cineasta espanhol assassinado durante a ditadura de
Luis García Meza, em 21 de março de 1980, por seu engajamento nas lutas
sociais. Quando se encontrou com Evo Morales, o presidente socialista boliviano
ofereceu-lhe uma escultura feita pelo mártir jesuíta: uma cruz de madeira
apoiada numa foice e num martelo…
Durante
sua visita à Bolívia, o Papa Francisco participou de um encontro mundial de
movimentos sociais na cidade de Santa Cruz. Seu discurso na ocasião ilustra a
“profunda aversão” ao capitalismo de que falava Max Weber, mas num nível que
nenhum de seus antecessores conseguiu atingir. Uma passagem agora famosa de seu
discurso: “Nós castigamos a terra, os povos e os indivíduos de uma forma quase
selvagem. E, por trás de tanta dor, tanta morte e destruição, há o cheiro
daquilo a que Basílio de Cesareia chamou “o esterco do diabo”: a ambição
desenfreada do dinheiro que governa. O serviço do bem comum passa para segundo
plano. Quando o capital se erige em ídolo e domina todas as opções humanas,
quando a avidez do dinheiro orienta todo o sistema socioeconômico, arruína a
sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade
entre os homens, coloca os povos uns contra os outros e, como vemos, põe em
perigo até a nossa casa comum”.
Não é
de surpreender que a abordagem do Papa Francisco tenha encontrado uma
resistência considerável nos setores mais conservadores da Igreja. Um dos
opositores mais ativos é o cardeal americano Raymond Burke, um fervoroso
apoiador de Donald Trump, que também entrou em contato com Matteo Salvini, o
líder da Liga do Norte, durante uma viagem à Itália… Alguns destes opositores
acusavam o novo pontífice de ser um herege, ou até mesmo um… marxista
disfarçado.
Quando
Rush Linebaugh, um jornalista católico reacionário (americano), lhe chamou
“papa marxista”, o Papa Francisco respondeu refutando educadamente o adjetivo,
acrescentando que não se sentia ofendido porque “conhecia muitos marxistas que
eram boas pessoas”. De fato, em 2014, o Papa recebeu em audiência dois
destacados representantes da esquerda europeia: Alexis Tsipras, então líder da
oposição ao governo de direita em Atenas, e Walter Baier, coordenador da rede
Transform, formada por fundações culturais ligadas ao Partido da Esquerda
Europeia (como a Fundação Rosa Luxemburgo, na Alemanha).
Nessa
ocasião, ele decidiu iniciar um processo de diálogo entre marxistas e cristãos,
que levou a vários encontros, incluindo uma universidade de verão conjunta em
2018 na ilha de Syros, na Grécia. Em 2014, o Papa recebeu uma delegação dos
participantes (cristãos e marxistas) neste diálogo (incluindo o autor desta
nota).
É
verdade que quando se trata do direito das mulheres a dispor do próprio corpo e
da moral sexual em geral – contracepção, aborto, divórcio, homossexualidade –
Francisco mantém-se fiel às posições conservadoras da doutrina da Igreja. Mas
há alguns sinais de abertura, dos quais o violento conflito de 2017 com a
direção da Ordem de Malta, uma instituição rica e aristocrática da Igreja
Católica, é um sintoma marcante.
O
Grão-Mestre ultraconservador da Ordem, o Príncipe (?!) Matthew Festing, exigiu
a demissão do Chanceler da Ordem, o Barão de Boeselager, pelo terrível pecado
de distribuir preservativos a pessoas pobres ameaçadas pela epidemia de AIDS na
África. O Chanceler recorreu ao Vaticano, que decidiu a seu favor contra
Festing; este último, apoiado pelo Cardeal Burke, recusou-se a obedecer e foi
demitido de suas funções pelo Vaticano. Isto ainda não é a adoção da
contracepção pela doutrina moral da Igreja, mas é uma mudança…
É claro
que o Papa Francisco não tem nada de marxista, e sua teologia está muito longe
da forma marxista da teologia da libertação. Sua formação intelectual,
espiritual e política deve muito à teologia do povo, uma variante argentina não
marxista da teologia da libertação, cujos principais inspiradores são Lucio
Gera e o teólogo jesuíta Juan Carlos Scannone. A teologia do povo não pretende
basear-se na luta de classes, mas reconhece o conflito entre o povo e o
“antipovo” e apoia a opção preferencial pelos pobres. Está menos preocupada com
questões socioeconômicas do que outras formas de teologia da libertação e
presta mais atenção à cultura, em particular à religião popular.
Num
artigo de 2014, “O Papa Francisco e a Teologia do Povo”, Juan Carlos Scannone
destaca, com razão, o quanto as primeiras encíclicas do Papa, como a Evangelium
Gaudí (2014), criticada por seus críticos de esquerda como “populista” (no
sentido argentino, peronista, não europeu, do termo), devem a esta teologia
popular. Parece-me, no entanto, que Jorge Bergoglio, em sua crítica ao “ídolo
do capital” e a todo o atual “sistema socioeconômico”, vai mais longe do que
seus inspiradores argentinos. Sobretudo em sua última encíclica, Laudato si’
(2015), que merece uma reflexão marxista.
• Laudato si’
A
“encíclica ecológica” do Papa Francisco é um acontecimento de importância
global, do ponto de vista religioso, ético, social e político. Dada a enorme
influência da Igreja Católica, foi uma contribuição crucial para o
desenvolvimento de uma consciência ecológica crítica. Embora tenha sido
acolhida com entusiasmo pelos verdadeiros ambientalistas, suscitou inquietação
e rejeição dos conservadores religiosos, dos representantes do capital e dos
ideólogos da “ecologia de mercado”.
Trata-se
de um documento de grande riqueza e complexidade, que propõe uma nova
interpretação da tradição judaico-cristã – rompendo com o “sonho prometeico de
dominação do mundo” – e uma reflexão crítica sobre as causas da crise
ecológica. Em certos aspectos, como a ligação indissociável entre o “grito da
terra” e o “grito dos pobres”, é evidente que a teologia da libertação – em
particular a do ecoteólogo Leonardo Boff – foi uma de suas fontes de
inspiração.
Nas
breves notas a seguir, gostaria de destacar um aspecto da encíclica que explica
a resistência que encontrou nos meios econômicos e midiáticos: seu caráter
antissistêmico.
Para o
Papa Francisco, as catástrofes ecológicas e as mudanças climáticas não resultam
apenas de comportamentos individuais – mesmo que estes tenham um papel
importante –, mas dos “atuais modelos de produção e consumo”. Bergoglio não é
marxista e a palavra “capitalismo” não aparece na encíclica… Mas é muito claro
que, para ele, os dramáticos problemas ecológicos de nosso tempo são o
resultado das engrenagens da atual economia globalizada – engrenagens
constituídas por um sistema global, “um sistema estruturalmente perverso de
relações comerciais e de propriedade” (seção 52 do documento).
Quais
são, para o Papa Francisco, estas caraterísticas “estruturalmente perversas”?
Em primeiro lugar, um sistema em que predominam “os interesses limitados das
empresas” e “uma racionalidade econômica questionável”, uma racionalidade
instrumental cujo único objetivo é a maximização dos lucros. Assim, “o
princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras
considerações, é uma distorção conceitual da economia: se a produção aumenta,
não importa se produzimos em detrimento dos recursos futuros ou do bem-estar do
meio ambiente” (195).
Esta
distorção, esta perversidade ética e social, não corresponde mais a um país do
que a outro, mas a um “sistema global, em que predomina a especulação e a busca
por rendimentos financeiros, tendendo a ignorar qualquer contexto e qualquer
efeito sobre a dignidade humana e o meio ambiente”. “Parece, pois, que a
degradação ambiental e a degradação humana e ética estão intimamente ligadas”
(56).
A
obsessão pelo crescimento ilimitado, o consumismo, a tecnocracia, a dominação
absoluta das finanças e o endeusamento do mercado são caraterísticas perversas
do sistema. Numa lógica destrutiva, tudo se reduz ao mercado e ao “cálculo
financeiro de custos e benefícios”. No entanto, é preciso compreender que “o
ambiente é um daqueles bens que os mecanismos de mercado são incapazes de
defender ou promover adequadamente” (190). O mercado é incapaz de levar em
consideração valores qualitativos, éticos, sociais, humanos ou naturais, ou
seja, “valores que ultrapassam qualquer cálculo” (36).
O poder
“absoluto” do capital financeiro especulativo é um aspecto essencial do
sistema, como o demonstrou a então recente crise bancária. O comentário da
encíclica é desmistificador: “Salvar os bancos a todo o custo, fazendo com que
os cidadãos paguem o preço, sem uma decisão firme de rever e reformar todo o
sistema, reafirma uma dominação absoluta das finanças, que não têm futuro e
podem apenas gerar novas crises depois de uma longa e custosa recuperação
aparente. A crise financeira de 2007-2008 foi uma oportunidade para desenvolver
uma nova economia, mais atenta aos princípios éticos e favorável a uma nova
regulação da atividade financeira especulativa e da riqueza fictícia. Mas não
houve qualquer reação que conduzisse a um questionamento dos critérios obsoletos
que continuam governando o mundo” (189).
Esta
dinâmica perversa do sistema mundial que “continua regendo o mundo” é a razão
do fracasso das cúpulas mundiais sobre o meio ambiente: “são inúmeros os
interesses pessoais e é muito fácil para os interesses econômicos prevalecerem
sobre o bem comum e manipularem a informação para evitar que seus projetos
sejam afetados”.
Enquanto
prevalecerem os imperativos dos poderosos grupos econômicos, “podemos esperar
apenas algumas declarações superficiais, ações filantrópicas isoladas e até
mesmo alguns esforços para mostrar certa sensibilidade em relação ao meio
ambiente, quando, na verdade, qualquer tentativa das organizações sociais de
mudar as coisas será considerada um incômodo causado pelos utópicos românticos
ou como um obstáculo a contornar” (54).
Neste
contexto, a encíclica denuncia a irresponsabilidade dos “responsáveis”, ou
seja, das elites dominantes, das oligarquias interessadas em preservar o
sistema, diante da crise ecológica: “Muitos dos que detêm a maior parte dos
recursos e do poder econômico ou político parecem principalmente fazer tudo o
que está a seu alcance para ocultar os problemas ou dissimular os sintomas,
tentando apenas reduzir certos impactos negativos das mudanças climáticas. Mas
muitos sintomas indicam que estes efeitos continuarão agravando-se caso
mantenhamos nossos atuais padrões de produção e consumo” (26).
Diante
da dramática destruição do equilíbrio ecológico do planeta e da ameaça sem
precedentes representada pelas mudanças climáticas, o que propõem os governos
ou os representantes internacionais do sistema (Banco Mundial, FMI, etc.)? A
resposta deles é o chamado “desenvolvimento sustentável”, um conceito cujo
conteúdo é cada vez mais vazio, um verdadeiro flatus vocis, como diziam os
escolásticos da Idade Média.
O Papa
Francisco não tem qualquer ilusão quanto a esta mistificação tecnocrática: “O
discurso do crescimento sustentável tem o hábito de se tornar um meio de
distração e de redução da culpa que absorve os valores do discurso ecológico no
seio das finanças e da tecnocracia, e a responsabilidade social e ambiental das
empresas tem o hábito de reduzir-se a uma série de ações de marketing e de
imagem” (194).
As
medidas concretas propostas pela oligarquia tecnofinanceira dominante são
totalmente ineficazes, como o “mercado de carbono”. A crítica do Papa a esta
falsa solução é um dos argumentos mais importantes da encíclica. Referindo-se a
uma resolução da Conferência Episcopal Boliviana, Jorge Bergoglio escreveu: “A
estratégia de compra e venda de ‘créditos de carbono’ pode dar origem a uma
nova forma de especulação e prejudicar o processo de redução das emissões
globais de gases poluentes. Este sistema parece ser uma solução rápida e fácil,
que dá a aparência de um certo compromisso com o meio ambiente, mas que, em
todo o caso, não constituiria uma mudança radical à altura das circunstâncias.
Pior ainda, poderia tornar-se um remédio que favorece o consumo excessivo em
certos países e setores” (171).
Passagens
como esta explicam a falta de entusiasmo dos círculos “oficiais” e dos adeptos
da “ecologia de mercado” (ou do “capitalismo verde”) pela Laudato si’…
Ao
associar a questão ecológica à questão social, o Papa Francisco insiste na
necessidade de medidas drásticas, isto é, de mudanças profundas para responder
a este duplo desafio. O principal obstáculo é a natureza “perversa” do sistema:
“a mesma lógica que nos impede de tomar decisões drásticas para inverter a
tendência ao aquecimento global é a que nos impede de alcançar o objetivo de
erradicar a pobreza” (175).
Embora
o diagnóstico da crise ecológica da Laudato si’ seja de uma clareza e de uma
coerência impressionantes, as ações que ela propõe são mais limitadas. É certo
que muitas de suas sugestões são úteis e necessárias, como por exemplo: “propor
formas de cooperação ou de organização comunitária que defendam os interesses
dos pequenos produtores e protejam os ecossistemas locais da predação” (180).
Também
é muito significativo que a encíclica reconheça a necessidade, para as
sociedades mais desenvolvidas, de “conterem-se um pouco, estabelecerem certos
limites razoáveis e até mesmo de voltarem atrás antes que seja tarde demais”,
ou seja, “chegou o momento de aceitar um certo decrescimento em algumas partes
do mundo, pondo em prática remédios para que outras possam crescer
saudavelmente” (193).
Mas são
precisamente estas “medidas drásticas” que fazem falta, como as propostas por
Naomi Klein em seu livro This changes everything: romper com os combustíveis
fósseis (carvão, petróleo) antes que seja tarde demais, deixando-os no subsolo.
Não podemos mudar as estruturas perversas do atual modo de produção e de
consumo sem um conjunto de iniciativas antissistêmicas que ponham em causa a
propriedade privada, por exemplo, das grandes multinacionais dos combustíveis
fósseis (BP, Shell, Total, etc.).
É certo
que o Papa menciona a utilidade de “grandes estratégias que interrompam
eficazmente a degradação do meio ambiente e inculquem uma cultura de respeito
que impregne toda a sociedade”, mas este aspecto estratégico é pouco
desenvolvido na encíclica.
Reconhecendo
que “o atual sistema mundial é insustentável”, Jorge Bergoglio procura uma
alternativa global, à qual ele chama “cultura ecológica”, uma mudança que “não
pode limitar-se a uma série de respostas urgentes e parciais aos problemas
crescentes da degradação ambiental, do esgotamento dos recursos naturais e da
poluição. Ela deve implicar uma perspectiva diferente, um modo de pensar, uma
política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que
aceitem a resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (111).
Mas são
poucos os indícios de uma nova economia e de uma nova sociedade que
correspondam a esta cultura ecológica. Não se trata de pedir ao Papa que adote
o ecossocialismo, mas a alternativa para o futuro permanece um pouco abstrata.
O Papa
Francisco adotou a “opção preferencial pelos pobres” das Igrejas
latino-americanas. A encíclica define isso claramente como um imperativo
planetário: “Nas condições atuais da sociedade mundial, na qual há tanta
desigualdade e na qual as pessoas são cada vez mais marginalizadas e privadas
dos mais elementares direitos humanos, o princípio do bem comum transforma-se
imediatamente, como consequência lógica e inelutável, num apelo à solidariedade
e numa opção prioritária pelos mais pobres”.
Mas na
encíclica, os pobres não aparecem como atores de sua própria emancipação, o
projeto mais importante da teologia da libertação. As lutas dos pobres, dos
camponeses e dos povos indígenas para defender as florestas, a água e a terra
contra as multinacionais e o comércio agrícola, assim como o papel dos
movimentos sociais, que são precisamente os principais atores na luta contra as
mudanças climáticas – Via Campesina, Justiça Climática, Fórum Social Mundial –
são uma realidade social que não aparece muito na Laudato si’.
Este
será, no entanto, um tema central dos encontros do Papa com os movimentos
populares, os primeiros na história da Igreja. No encontro de Santa Cruz
(Bolívia, julho de 2015), Francisco declarou: “Vós, os mais humildes, os
explorados, os pobres e os excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer
que o futuro da humanidade está em grande parte em vossas mãos, em vossa
capacidade de organizar e promover alternativas criativas, na busca diária dos
3 Ts (trabalho, teto, terra) e também na vossa participação como protagonistas
nos grandes processos de mudança, nacionais, regionais e mundiais. Não vos
subestimem! Vós sois os semeadores da mudança”.
Certamente,
como Jorge Bergoglio destaca na encíclica, a tarefa da Igreja não é substituir
os partidos políticos, propondo um programa de mudança social. Com seu
diagnóstico antissistêmico da crise, que liga inseparavelmente a questão social
e a proteção do meio ambiente, “o grito dos pobres” e “o grito da terra”, a
Laudato si’ é uma contribuição preciosa e inestimável para a reflexão e a ação
para salvar a natureza e a humanidade da catástrofe.
Cabe
aos marxistas, comunistas e ecossocialistas completar este diagnóstico com
propostas radicais que visem alterar não só o sistema econômico dominante, mas
também o modelo perverso de civilização imposto pelo capitalismo em escala
global. Propostas que incluam não apenas um programa concreto de transição
ecológica, mas também uma visão de uma outra forma de sociedade, para além do
reino do dinheiro e das mercadorias, baseada nos valores da liberdade,
solidariedade, justiça social e respeito pela natureza.
É
difícil prever qual será o futuro da Igreja após a morte do Papa Francisco:
quem será eleito no próximo conclave? Seguirá a orientação crítica e humanista
de Bergoglio ou regressará à tradição conservadora dos pontífices anteriores?
Inúmeros novos cardeais foram nomeados por Francisco, mas qual é a convicção
íntima deles?
As
próximas semanas decidirão se Jorge Bergoglio foi apenas um parêntesis ou se
abriu um novo capítulo na longa história do catolicismo.
Fonte:
Por Michae Löwy, em A Terra é Redonda

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