terça-feira, 15 de abril de 2025

"Sem memória, não há democracia", afirma Ivo Herzog

Filho do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado pela ditadura militar em 1975, Ivo Herzog transformou a dor da perda em luta pela justiça, pela memória e pelos direitos humanos. Nesta entrevista para a série especial do Correio sobre os 40 anos da democracia brasileira, ele relembra o impacto pessoal e coletivo da morte de seu pai, avalia os avanços e retrocessos da democracia no Brasil e comenta os riscos atuais representados pelo negacionismo histórico, pela desinformação e pelas tentativas de ruptura institucional, como as que marcaram o 8 de Janeiro de 2023, com a tentativa de golpe de Estado.

·        Como a trajetória e o legado de seu pai, Vladimir Herzog, influenciaram sua visão sobre a democracia, justiça e direitos humanos no Brasil contemporâneo?

Acabei sendo introduzido aos direitos humanos e acompanhei todo o processo de redemocratização do Brasil com a anistia, as primeiras eleições, a eleição de Fernando Collor de Mello e outros momentos. A nossa família sempre teve a esperança de que uma das agendas a serem tratadas na redemocratização fosse a punição dos responsáveis pelo assassinato do meu pai e pelo desaparecimento de tantos outros. Passados quase 50 anos, ainda não vimos isso acontecer. É algo muito frustrante. Houve uma luta enorme para que o país se tornasse novamente democrático, e não houve justiça. Agora, vivemos um momento histórico, com a primeira prisão de militares que atentaram contra a democracia. Isso reacende a esperança de que os responsáveis pelas violências da ditadura também possam ser levados à Justiça. Isso é vital para a construção de uma sociedade mais justa, com dignidade humana e respeito aos seus cidadãos.

·        Quais foram os impactos pessoais e políticos da morte de seu pai na vida de sua família e na forma como vocês se posicionaram publicamente?

Essa pergunta é bastante difícil. O primeiro impacto é a perda do meu pai, que influencia a formação do indivíduo. Eu tinha nove anos na época. Hoje tenho 58. Todas as minhas lembranças com minha mãe trazem a tragédia do meu pai. Boa parte dos fatos da nossa vida foi impactada por esse legado. Isso aumentou nossa responsabilidade, porque o caso se tornou notório. Quando tivemos uma vitória, como a retificação do atestado de óbito do meu pai há cerca de 10 anos, foi também uma vitória para os familiares de outros mortos e desaparecidos. Nossa vida se tornou muito pautada por isso. Se um dia eu escrevesse uma biografia minha ou da minha mãe, a maior parte das páginas traria narrativas ligadas à luta pelo legado do meu pai.

·        Como tem sido o trabalho do Instituto Vladimir Herzog nos últimos anos, especialmente diante do crescimento de discursos autoritários?

O Instituto Vladimir Herzog foi criado há 15 anos e é, também, um resultado desse legado. Nossa missão é a defesa da democracia, da liberdade e dos direitos humanos. Ele nasceu muito forte por causa da herança que carregava. Além das nossas propostas, havia uma demanda da sociedade para que déssemos respostas a questões urgentes. Temos uma forte agenda política, mas nunca fomos e nem seremos uma organização partidária. Acreditamos que valores como democracia, liberdade de expressão e direitos humanos são suprapartidários. Infelizmente, vimos um partido de extrema-direita vencer uma eleição e assumir o governo. Esse governo confrontou diretamente os valores que defendemos. Foi um período difícil, mas que nos ajudou a amadurecer e crescer.

·        Na sua avaliação, quais são os maiores desafios da democracia brasileira hoje, especialmente no combate à desinformação e ao negacionismo histórico?

Acho que a maior ameaça é a desinformação. A utilização das redes sociais para propagar narrativas falsas é muito grave. Essas narrativas ocupam os meios de comunicação de forma viral. O grande desafio das democracias é mostrar o que é verdadeiro diante de tantas mentiras que se espalham com velocidade e impacto.

·        Como você vê o papel da imprensa brasileira na proteção das liberdades democráticas? O trabalho de seu pai ainda é uma referência?

Acredito que o jornalismo que meu pai praticava e ensinava, pois ele também era professor, ainda é uma referência. Era um jornalismo comprometido com a apuração das notícias de interesse público. Hoje, por conta da internet e da velocidade das redes, o tempo da notícia ficou muito curto. Muitas vezes não há tempo para apurar como se deve. E jornalismo de qualidade exige investigação, apuração com calma — o que está cada vez mais difícil.

·        Nos últimos anos, setores da sociedade têm relativizado ou defendido o período ditatorial. O que isso revela sobre a nossa cultura democrática?

Revela uma característica do Brasil, que é o desapego à memória. Países como Argentina, Chile e Uruguai, que passaram por ditaduras, têm monumentos e políticas de memória que criam consciência histórica. No Brasil, não só deixamos de promover memória, como houve movimentos ativos para apagar a pouca memória construída. Um exemplo, no ano passado, o presidente da República proibiu que os órgãos públicos lembrassem os 60 anos do golpe de 1964. Sem memória e conhecimento, tudo vira disputa de narrativa — e isso abre espaço para fake news tomarem conta do debate público.

·        De que forma o Instituto Vladimir Herzog tem atuado junto às escolas na formação de uma cidadania mais crítica?

O Instituto tem duas frentes importantes. Temos o portal Memórias da Ditadura, que apresenta a história do período por diversos ângulos — militares contra o golpe, camponeses, a comunidade LGBT , entre outros. São vários módulos educacionais voltados às escolas. A segunda frente é a área de educação em direitos humanos, que promove o ensino sobre respeito à diversidade, direitos e convivência em paz. É uma forma muito construtiva de manter vivo o legado do meu pai.

·        O Brasil falhou em construir uma justiça de transição plena após a ditadura? O que ainda falta?

Sim. O primeiro passo seria o Supremo Tribunal Federal revisar seu entendimento sobre a Lei da Anistia de 1979. A impunidade aos agentes do Estado que torturaram, sequestraram e mataram foi um passaporte para que eles continuem soltos e articulando rupturas. Enquanto não houver punição, essa ameaça permanece viva. Agora, com o julgamento dos responsáveis pelo 8 de Janeiro, há uma luz de esperança. Se houver condenações, pode ser o fim dessa impunidade.

·        Como o senhor avalia o envolvimento de militares e civis na tentativa de golpe articulada por Bolsonaro? Isso revela uma continuidade da tutela militar sobre a política?

Essa é uma questão que me intriga. Tivemos oito anos de Fernando Henrique, oito de Lula, dois mandatos da Dilma, e agora Lula de novo, e ainda assim não resolvemos essa ferida, não tratamos do tema. A Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou, no caso do meu pai, que o Estado promovesse um pedido público de perdão, com presença das Forças Armadas. Isso nunca aconteceu. Enquanto esse reconhecimento não vier, continuaremos sem mostrar à sociedade que o que foi feito no passado foi errado. É preciso ter esse reconhecimento institucional do que foi feito no passado foi errado.

·        O senhor acredita que o país será capaz de responsabilizar de forma efetiva os responsáveis pela tentativa de golpe do 8 de janeiro?

Espero que sim. Veja o caso da minha mãe, que só na semana passada foi decretada a anistia política do meu pai, quase 50 anos depois. Vidas foram profundamente transformadas e impactadas. Minha mãe trabalhou 12 horas por dia para nos sustentar e nos educar. É fundamental que o Estado reconheça isso e repare, sem que os envolvidos peçam perdão. A Alemanha reconheceu seus erros com os judeus. O Brasil ainda não fez isso. O Brasil está muito parado em relação a isso. Nunca tivemos um presidente da república que tenha feito esse pedido de perdão. Assim não conseguimos evoluir com uma agenda democrática.

·        Qual sua opinião sobre os pedidos de anistia feitos por apoiadores do ex-presidente Bolsonaro?

Esse pedido de Bolsonaro e seu grupo é uma aberração. A anistia é para crimes políticos, para quem pensava ou discordava do regime. Muitos foram processados, condenados e tiveram que ser exilados, em função do pensar diferente. O que Bolsonaro e seus aliados fizeram foram crimes previstos em lei, de conspiração, destruição, financiamento de ações terroristas. Eles tentam sequestrar o conceito de anistia, a luta que nós temos há décadas para garantir impunidade aos líderes do movimento, especialmente Bolsonaro. E fazem isso de maneira desavergonhada. A única intenção que eles têm é conseguir a impunidade dos líderes desse movimento, na figura central do ex-presidente Jair Bolsonaro e do seu núcleo. Um exemplo do caráter de Bolsonaro é que, quando a situação apertou, ele fugiu para a Flórida e mandou as "tropas" para o campo de batalha, fugindo antes de a batalha começar. Mandou as tropas e fugiu do campo de batalha. É uma das pessoas mais desprezíveis que a humanidade já produziu. Que o peso da lei recaia sobre ele, e isso será um recado importante para que no futuro, outras pessoas cogitem articular um golpe de Estado.

·        Se pudesse enviar uma mensagem às novas gerações que não viveram a ditadura ou a transição democrática, qual seria?

A principal lição é tudo isso que temos hoje — direito de se reunir, de falar o que pensa, de se manifestar, liberdade de expressão — foi conquistado. Não foi dado, foi conquistado por pessoas que enfrentaram a ditadura, enfrentaram um regime que proibia todas essas coisas. Centenas morreram. Dezenas de milhares carregam cicatrizes desse processo. Foi um processo com custo alto. Precisamos valorizar e respeitar isso e entender que é uma luta contínua. Se baixarmos a guarda, governos autoritários podem, novamente, tentar reduzir nossas liberdades como cidadãos.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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