"Sem memória, não há democracia",
afirma Ivo Herzog
Filho
do jornalista Vladimir
Herzog,
torturado e assassinado pela ditadura militar em 1975, Ivo Herzog transformou a
dor da perda em luta pela justiça, pela memória e pelos direitos humanos. Nesta
entrevista para a série especial do Correio sobre os 40 anos da democracia
brasileira,
ele relembra o impacto pessoal e coletivo da morte de seu pai, avalia os
avanços e retrocessos da democracia no Brasil e comenta os riscos atuais
representados pelo negacionismo histórico, pela desinformação e pelas
tentativas de ruptura institucional, como as que marcaram o 8 de Janeiro de
2023, com a tentativa de golpe de Estado.
·
Como a trajetória e o legado de seu pai, Vladimir Herzog,
influenciaram sua visão sobre a democracia, justiça e direitos humanos no
Brasil contemporâneo?
Acabei
sendo introduzido aos direitos humanos e acompanhei todo o processo de
redemocratização do Brasil com a anistia, as primeiras eleições, a eleição de
Fernando Collor de Mello e outros momentos. A nossa família sempre teve a
esperança de que uma das agendas a serem tratadas na redemocratização fosse a
punição dos responsáveis pelo assassinato do meu pai e pelo desaparecimento de
tantos outros. Passados quase 50 anos, ainda não vimos isso acontecer. É algo
muito frustrante. Houve uma luta enorme para que o país se tornasse novamente
democrático, e não houve justiça. Agora, vivemos um momento histórico, com a
primeira prisão de militares que atentaram contra a democracia. Isso reacende a
esperança de que os responsáveis pelas violências da ditadura também possam ser
levados à Justiça. Isso é vital para a construção de uma sociedade mais justa,
com dignidade humana e respeito aos seus cidadãos.
·
Quais foram os impactos pessoais e políticos da morte de
seu pai na vida de sua família e na forma como vocês se posicionaram
publicamente?
Essa
pergunta é bastante difícil. O primeiro impacto é a perda do meu pai, que
influencia a formação do indivíduo. Eu tinha nove anos na época. Hoje tenho 58.
Todas as minhas lembranças com minha mãe trazem a tragédia do meu pai. Boa
parte dos fatos da nossa vida foi impactada por esse legado. Isso aumentou
nossa responsabilidade, porque o caso se tornou notório. Quando tivemos uma
vitória, como a retificação do atestado de óbito do meu pai há cerca de 10
anos, foi também uma vitória para os familiares de outros mortos e
desaparecidos. Nossa vida se tornou muito pautada por isso. Se um dia eu
escrevesse uma biografia minha ou da minha mãe, a maior parte das páginas
traria narrativas ligadas à luta pelo legado do meu pai.
·
Como tem sido o trabalho do Instituto Vladimir Herzog nos
últimos anos, especialmente diante do crescimento de discursos autoritários?
O
Instituto Vladimir Herzog foi criado há 15 anos e é, também, um resultado desse
legado. Nossa missão é a defesa da democracia, da liberdade e dos direitos
humanos. Ele nasceu muito forte por causa da herança que carregava. Além das
nossas propostas, havia uma demanda da sociedade para que déssemos respostas a
questões urgentes. Temos uma forte agenda política, mas nunca fomos e nem
seremos uma organização partidária. Acreditamos que valores como democracia,
liberdade de expressão e direitos humanos são suprapartidários. Infelizmente,
vimos um partido de extrema-direita vencer uma eleição e assumir o governo.
Esse governo confrontou diretamente os valores que defendemos. Foi um período
difícil, mas que nos ajudou a amadurecer e crescer.
·
Na sua avaliação, quais são os maiores desafios da
democracia brasileira hoje, especialmente no combate à desinformação e ao
negacionismo histórico?
Acho
que a maior ameaça é a desinformação. A utilização das redes sociais para
propagar narrativas falsas é muito grave. Essas narrativas ocupam os meios de
comunicação de forma viral. O grande desafio das democracias é mostrar o que é
verdadeiro diante de tantas mentiras que se espalham com velocidade e impacto.
·
Como você vê o papel da imprensa brasileira na proteção
das liberdades democráticas? O trabalho de seu pai ainda é uma referência?
Acredito
que o jornalismo que meu pai praticava e ensinava, pois ele também era
professor, ainda é uma referência. Era um jornalismo comprometido com a
apuração das notícias de interesse público. Hoje, por conta da internet e da
velocidade das redes, o tempo da notícia ficou muito curto. Muitas vezes não há
tempo para apurar como se deve. E jornalismo de qualidade exige investigação,
apuração com calma — o que está cada vez mais difícil.
·
Nos últimos anos, setores da sociedade têm relativizado
ou defendido o período ditatorial. O que isso revela sobre a nossa cultura
democrática?
Revela
uma característica do Brasil, que é o desapego à memória. Países como
Argentina, Chile e Uruguai, que passaram por ditaduras, têm monumentos e
políticas de memória que criam consciência histórica. No Brasil, não só
deixamos de promover memória, como houve movimentos ativos para apagar a pouca
memória construída. Um exemplo, no ano passado, o presidente da República
proibiu que os órgãos públicos lembrassem os 60 anos do golpe de 1964. Sem
memória e conhecimento, tudo vira disputa de narrativa — e isso abre espaço
para fake news tomarem conta do debate público.
·
De que forma o Instituto Vladimir Herzog tem atuado junto
às escolas na formação de uma cidadania mais crítica?
O
Instituto tem duas frentes importantes. Temos o portal Memórias da Ditadura,
que apresenta a história do período por diversos ângulos — militares contra o
golpe, camponeses, a comunidade LGBT , entre outros. São vários módulos
educacionais voltados às escolas. A segunda frente é a área de educação em
direitos humanos, que promove o ensino sobre respeito à diversidade, direitos e
convivência em paz. É uma forma muito construtiva de manter vivo o legado do
meu pai.
·
O Brasil falhou em construir uma justiça de transição
plena após a ditadura? O que ainda falta?
Sim. O
primeiro passo seria o Supremo Tribunal Federal revisar seu entendimento sobre
a Lei da Anistia de 1979. A impunidade aos agentes do Estado que torturaram,
sequestraram e mataram foi um passaporte para que eles continuem soltos e
articulando rupturas. Enquanto não houver punição, essa ameaça permanece viva.
Agora, com o julgamento dos responsáveis pelo 8 de Janeiro, há uma luz de
esperança. Se houver condenações, pode ser o fim dessa impunidade.
·
Como o senhor avalia o envolvimento de militares e civis
na tentativa de golpe articulada por Bolsonaro? Isso revela uma continuidade da
tutela militar sobre a política?
Essa é
uma questão que me intriga. Tivemos oito anos de Fernando Henrique, oito de
Lula, dois mandatos da Dilma, e agora Lula de novo, e ainda assim não
resolvemos essa ferida, não tratamos do tema. A Corte Interamericana de
Direitos Humanos determinou, no caso do meu pai, que o Estado promovesse um
pedido público de perdão, com presença das Forças Armadas. Isso nunca
aconteceu. Enquanto esse reconhecimento não vier, continuaremos sem mostrar à
sociedade que o que foi feito no passado foi errado. É preciso ter esse
reconhecimento institucional do que foi feito no passado foi errado.
·
O senhor acredita que o país será capaz de
responsabilizar de forma efetiva os responsáveis pela tentativa de golpe do 8
de janeiro?
Espero
que sim. Veja o caso da minha mãe, que só na semana passada foi decretada
a anistia política do
meu pai, quase 50 anos depois. Vidas foram profundamente transformadas e
impactadas. Minha mãe trabalhou 12 horas por dia para nos sustentar e nos
educar. É fundamental que o Estado reconheça isso e repare, sem que os
envolvidos peçam perdão. A Alemanha reconheceu seus erros com os judeus. O
Brasil ainda não fez isso. O Brasil está muito parado em relação a isso. Nunca
tivemos um presidente da república que tenha feito esse pedido de perdão. Assim
não conseguimos evoluir com uma agenda democrática.
·
Qual sua opinião sobre os pedidos de anistia feitos por
apoiadores do ex-presidente Bolsonaro?
Esse
pedido de Bolsonaro e seu grupo é uma aberração. A anistia é para crimes
políticos, para quem pensava ou discordava do regime. Muitos foram processados,
condenados e tiveram que ser exilados, em função do pensar diferente. O que
Bolsonaro e seus aliados fizeram foram crimes previstos em lei, de conspiração,
destruição, financiamento de ações terroristas. Eles tentam sequestrar o
conceito de anistia, a luta que nós temos há décadas para garantir impunidade
aos líderes do movimento, especialmente Bolsonaro. E fazem isso de maneira
desavergonhada. A única intenção que eles têm é conseguir a impunidade dos
líderes desse movimento, na figura central do ex-presidente Jair Bolsonaro e do
seu núcleo. Um exemplo do caráter de Bolsonaro é que, quando a situação
apertou, ele fugiu para a Flórida e mandou as "tropas" para o campo
de batalha, fugindo antes de a batalha começar. Mandou as tropas e fugiu do
campo de batalha. É uma das pessoas mais desprezíveis que a humanidade já
produziu. Que o peso da lei recaia sobre ele, e isso será um recado importante
para que no futuro, outras pessoas cogitem articular um golpe de Estado.
·
Se pudesse enviar uma mensagem às novas gerações que não
viveram a ditadura ou a transição democrática, qual seria?
A
principal lição é tudo isso que temos hoje — direito de se reunir, de falar o
que pensa, de se manifestar, liberdade de expressão — foi conquistado. Não foi
dado, foi conquistado por pessoas que enfrentaram a ditadura, enfrentaram um
regime que proibia todas essas coisas. Centenas morreram. Dezenas de milhares
carregam cicatrizes desse processo. Foi um processo com custo alto. Precisamos
valorizar e respeitar isso e entender que é uma luta contínua. Se baixarmos a
guarda, governos autoritários podem, novamente, tentar reduzir nossas
liberdades como cidadãos.
Fonte: Correio Braziliense
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