Uma
nova ordem mundial?
Em 2 de
abril, Donald Trump anunciou a imposição de tarifas abrangentes a países de
todo o mundo, atingindo aliados e inimigos com enormes barreiras comerciais, no
que equivaleu a um ataque direto à ideologia do livre comércio. Uma tarifa de
34% seria imposta à China, 20% à União Europeia, 49% ao Camboja, 48% ao Laos,
46% ao Vietnã e assim por diante: números elaborados de acordo com uma fórmula
matemática simplificada, na qual o déficit comercial de mercadorias dos EUA com
qualquer país era dividido pelo valor das importações dos EUA para esse país, e
esse número era então dividido pela metade.
O Wall
Street Journal lamentou que Donald Trump estivesse “explodindo o
sistema de comércio mundial” e voltando à “velha era do protecionismo
comercial”. Para o Financial Times, foi “um ato surpreendente de
automutilação”, que “derrubaria a ordem econômica global e mancharia a
prosperidade dos EUA”. Os investidores logo entraram em colapso. Os principais
índices de ações despencaram e cerca de US$ 10 trilhões em valor de mercado
sumiram.
À
medida que os rendimentos dos títulos subiam, uma Casa Branca nervosa parecia
mudar de rumo, reduzindo a tarifa para 10% para a maioria dos países, com a
notável exceção da China, onde agora foram aumentadas para 125%. Outros
aumentos estão suspensos por noventa dias. Uma vez terminado esse período de
espera, não está claro se o plano original do “Dia da Libertação” de Donald
Trump será restabelecido, diluído ou descartado. Mas mesmo em sua forma atual,
as tarifas representam uma grande mudança na economia global – que os
comentaristas de todo o espectro estão lutando para interpretar.
A ideia
de que a agenda de Donald Trump é ditada pelas gigantes empresas de tecnologia
ficou para trás, já que poucas empresas têm mais a perder com as tarifas do que
a Amazon e a Tesla. Também não é verdade, como alguns argumentaram, que as
tarifas são uma resposta ao declínio do capitalismo americano. Antes da posse
de Donald Trump, a economia dos EUA era relativamente robusta, com alto
crescimento da produtividade, fortes investimentos e gastos com P&D e
retornos maciços para suas multinacionais.
Outros
especularam que Donald Trump quer pressionar os Estados a aderirem a um
“Acordo de Mar-a-Lago” global, no qual o dólar seria enfraquecido para reforçar
a competitividade da manufatura americana. Mas isso também é implausível, uma
vez que desestabilizaria profundamente o sistema do dólar, que é um dos
principais pilares do poder global dos EUA que Donald Trump está obcecado em
aprimorar.
As
tarifas de Donald Trump parecem, pelo valor de face, representar uma ruptura
com o papel histórico do Estado americano de supervisionar o capitalismo
global. Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA têm perseguido firmemente um
único projeto hegemônico: construir um “império informal” composto por estados
soberanos oficialmente independentes ligados entre si por meio de fluxos
transfronteiriços de comércio e investimento.
Os EUA
assumiram a liderança na criação do sistema de Bretton Woods, cujos controles e
salvaguardas permitiram a outros países alguma flexibilidade na implementação
de políticas fiscais e monetárias independentes e que forneceram uma estrutura
estável para buscar uma maior integração, eliminando tarifas e, eventualmente,
barreiras não tarifárias. Na década de 1970, Bretton Woods foi deixado de lado
e substituído pelos fluxos contínuos de comércio e investimento da globalização
neoliberal: uma ordem integrada unida pela livre circulação de capital sob a
liderança americana.
Por
meio desse processo, o Estado dos EUA passou a representar não apenas os
interesses de sua burguesia doméstica, mas também os do capital global, impondo
um “estado de direito” internacional para proteger os direitos de propriedade e
coordenar entre diferentes nações. Isso envolveu a negociação de acordos de
livre comércio, bem como a criação de uma rede de instituições internacionais –
FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio – que transformaram as
estruturas internas de cada Estado-nação, à medida que assumiam a
responsabilidade de garantir as condições para a acumulação internacionalizada.
Criar
um mundo contínuo de acumulação de capital também significava controlar a
inflação e espremer o trabalho. Isso exigiu a centralização do poder estatal
dos EUA nas agências executivas mais diretamente responsáveis por gerenciar
essa internacionalização, especialmente o Federal Reserve, o
Departamento do Tesouro e o Escritório do Representante de Comércio dos EUA –
cujo isolamento das pressões eleitorais ajudou a afastar os desafios
protecionistas.
A nova
ordem global sustentou uma aliança simbiótica entre o capital financeiro e
industrial. Ao permitir o aumento da mobilidade do capital, a financeirização
desencadeou poderosas forças competitivas que serviram para disciplinar tanto
os Estados quanto os trabalhadores – restaurando os lucros e resolvendo a crise
da década de 1970.
O
Estado neoliberal, contudo, perdeu legitimação porque teve de atender às
necessidades de acumulação, revertendo programas sociais por meio da imposição
de austeridade permanente, enquanto esvaziava as instituições democráticas por
meio da burocratização do poder estatal. Como resultado, a política
social-democrata chegou a um impasse, já que nenhum setor do grande capital
estava disposto a apoiar um compromisso com os trabalhadores que pudesse ter
legitimado mais uma vez a acumulação. O fracasso da esquerda em oferecer um
caminho plausível para sair do agravamento das consequências sociais abriu
caminho para as vitórias eleitorais de Donald Trump.
A crise
de legitimação da qual o trumpismo emergiu foi resultado da força do capital
norte-americano, não de seu declínio. Donald Trump agora está tentando explorar
a relativa autonomia do executivo, um baluarte histórico da agenda da
globalização, para minar essa ordem global. As tarifas têm sido uma ideia fixa
para Donald Trump, que parece acreditar que elas são a chave para o
rejuvenescimento do capitalismo nacional. No entanto, há também uma dinâmica
política mais profunda em ação aqui. Partes da direita nacionalista se uniram
em torno da visão de que o papel dos EUA como gerente do sistema mundial tem um
custo muito alto.
Os
“trabalhadores americanos”, argumentam eles, sofreram com a
desindustrialização, bem como com a pressão descendente sobre os salários e a
migração; pequenas e médias empresas têm lutado para lidar com importações
baratas e um dólar alto; e a sociedade em geral viu recursos excessivos
canalizados para a manutenção de um elaborado estado imperial.
Donald
Trump apresenta esses problemas como resultado de concessões feitas por
governos anteriores para trazer outros Estados para o sistema liderado pelos
EUA. Ele afirma que, assim, foi diminuída a supremacia econômica e política
americana – como indicado pelo déficit comercial do país, especialmente em
relação à China, cuja ascensão econômica deu crédito a essa narrativa. A
solução, dizem-nos, é reverter os “maus acordos comerciais” e reconstruir a
capacidade de fabricação após décadas de deslocamentos da produção para o
exterior (offshoring) e, assim, de internacionalização da produção: um
plano que envolveria tirar o financiamento de seu pedestal e substituí-lo até
certo ponto pela indústria doméstica.
Mas
isso é muito difícil de fazer e quase certamente não funcionará. A globalização
não pode ser simplesmente revertida com golpes de caneta que criam tarifas.
Isso, para evolver, envolveria muito mais do que simplesmente impor tarifas;
exigiria uma série de controles de capital, bem como uma política industrial
abrangente – medidas que constituiriam um desafio mais sério para as frações
dominantes de capital do que qualquer coisa que Donald Trump esteja disposto a
contemplar. [Tudo isso, entretanto, enfrentaria o problema da taxa de lucro
declinante].
A sua
decisão abrupta de mudar de rumo das coisas assim que encontrou os limites
estruturais dos mercados financeiros ressalta o fato de que a autonomia do
Estado neoliberal permanece estritamente relativa. Somente um governo com uma
clara determinação de enfrentar o capital e as forças sociais e políticas para
perseguir significativamente esse desafio seriam capazes de realizar tais
ambições.
Isso
não é, no entanto, subestimar o impacto das tarifas – tanto as que já foram
implementadas quanto as que ainda estão por vir. A política comercial
inconstante de Donald Trump terá efeitos duradouros sobre o investimento e a
confiança das empresas e, nos próximos meses, ainda podemos ver uma guerra
comercial em espiral – uma situação que a globalização liderada pelos EUA há
muito evita.
Mesmo
que Donald Trump recue totalmente ou perca a Casa Branca para os democratas na
próxima eleição, outros estados ainda terão perdido a fé na administração
americana, o que dificultará o retorno ao regime anterior de livre comércio.
Enquanto isso, as tarifas certamente gerarão pressões inflacionárias, agravando
as crises sociais que ajudaram a impulsionar Donald Trump ao poder e aumentando
a probabilidade de uma recessão.
Dados
os efeitos prejudiciais da globalização sobre os trabalhadores, é surpreendente
que setores do movimento trabalhista – principalmente o líder do United
Auto Workers, Sean Fain – tenham apoiado as tarifas como um meio de
derrubar a ordem existente. Mas as tarifas por si só são insuficientes para
reverter a globalização. Ademais, essas tarifas que têm sio impostas não farão
nada para fortalecer o poder da classe trabalhadora, nem para melhorar os
padrões de vida da população em geral; na verdade, elas provavelmente farão o
oposto.
O
retorno das empresas (onshoring) não significará necessariamente o
retorno de “bons empregos” ao coração do gigante do Norte, nem interromperia o
processo de desenvolvimento tecnológico responsável por uma grande proporção
das perdas de empregos na indústria. Provavelmente assumirá a forma de
investimento no Sul em que prevalecem de baixos salários e trabalhadores não
sindicalizados, o que ameaça minar ainda mais a solidariedade de classe.
Há
também uma forte chance de que as políticas de Donald Trump sirvam para
desacreditar os desafios da esquerda ao livre comércio e à globalização no
futuro. Concentrar-se estritamente nas tarifas desvia a atenção da tarefa mais
urgente de construir um movimento da classe trabalhadora que possa lutar pela
redistribuição de renda, melhoria da segurança no emprego, programas sociais e
uma transição verde.
O que
está em jogo aqui não é a “competitividade americana”, mas sim a necessidade de
democratizar o investimento. Isso envolveria a imposição de limites à
capacidade do capital de disciplinar Estados e trabalhadores por meio da ameaça
do movimento de “saída” (exit). Mas também significaria desenvolver
mecanismos de planejamento por meio dos quais as forças populares possam
exercer controle sobre os recursos da sociedade. Na ausência de tais
mecanismos, será impossível construir um sistema comercial que atenda aos
trabalhadores dentro e fora dos EUA.
¨
O boicote da Europa aos EUA é real e já está sendo
sentido em um de seus setores mais lucrativos: o turismo
David
Pereira tem 53 anos e mora na França. Como muitos
europeus, cresceu imerso na cultura dos Estados Unidos. As músicas que ouvia,
os filmes do cinema da cidade, os carros dos sonhos — tudo vinha de lá. Quando
conseguiu juntar dinheiro, decidiu viajar e conhecer o país de perto. E não foi
só uma vez. Ele já esteve nos EUA quase uma dúzia de vezes e, há dois anos,
percorreu os parques nacionais da Costa Oeste.
A ideia
era voltar neste verão, agora com a família, para visitar Yellowstone. Mas
depois de dois meses de governo Trump, Pereira mudou de planos. Em entrevista à CNN, contou
que decidiu cancelar a viagem. E ele não é o único.
O setor
de turismo dos EUA já começou a sentir os efeitos dessa mudança de clima entre
os dois lados do Atlântico. Agências de viagem na Europa relatam uma queda no
interesse, e autoridades americanas falam em diminuição da demanda.
O dado
mais claro veio em uma reportagem do Financial Times, com um título
direto: “Turistas europeus cancelam viagens aos EUA por causa das políticas de
Trump”. Segundo números da Administração de Comércio Internacional, a
quantidade de visitantes da Europa Ocidental que passaram ao menos uma noite
nos EUA caiu 17% em março, em comparação com o mesmo mês
de 2024.
Uma
queda importante para uma indústria que representa cerca de 2,5% do PIB
americano. E tem mais: a rede hoteleira francesa Accor informou que as reservas
para o verão caíram 25%.
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E não é só impressão
Apesar
de Trump estar na presidência há menos de três meses, começam a surgir números
e relatos que apontam para uma mudança concreta — e negativa — no turismo dos
EUA.
O Financial Times compilou dados
que mostram queda no número de turistas vindos de países como Áustria, Reino
Unido, Suíça, Alemanha, Noruega e Espanha. Em alguns casos, as perdas
ultrapassam 20%. Além disso, também foi detectada uma redução nos voos de diferentes regiões com
destino aos EUA.
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A frase tem se repetido no setor: “algo está acontecendo”
Segundo
a Administração de Comércio Internacional (ITA), o total de
visitantes estrangeiros que viajaram aos EUA em março foi 12% menor do que no mesmo mês de 2024 — e esse número
nem inclui turistas do Canadá e do México, que também mostram desinteresse
pelos destinos americanos.
É
verdade que em 2024 a Semana Santa caiu em março e em 2025 será em abril, o que
pode influenciar um pouco a comparação. Mas para o setor, a tendência é mais
profunda. A consultoria Tourism Economics foi clara: “Está acontecendo algo...
e é uma reação a Trump”.
No
começo de abril, a rede hoteleira francesa Accor confirmou à Bloomberg TV que
as reservas feitas por europeus para visitar os EUA neste verão despencaram 25%. Os turistas
estão preferindo destinos como Canadá, América do Sul e Egito.
Na
Espanha, a Confederação de Agências de Viagem (CEAV) também afirmou que nota
uma perda de interesse dos viajantes pelo país norte-americano.
Diante
desse cenário, a Tourism
Economics atualizou suas previsões: em fevereiro, esperavam uma
queda de 5% no turismo dos EUA em 2025. Agora, a expectativa já é de um recuo
de 9,4%. A operadora francesa Voyageurs du Monde também relatou à CNN uma queda
de 20% nas reservas desde a posse de Trump.
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Mas afinal… por quê?
Para o
CEO do grupo Accor, talvez a resposta esteja ligada a um sentimento mais
subjetivo: “Provavelmente é a ansiedade de entrar em um território
desconhecido”, disse ele em entrevista à Bloomberg.
O fato
é que essa mudança de comportamento dos turistas acontece num contexto
geopolítico tenso. O retorno de Trump à Casa Branca provocou um distanciamento
entre Washington e Bruxelas, reacendeu conflitos na guerra comercial, levantou
discussões sobre recessão, defesa europeia e, segundo Paul English — cofundador
do Kayak —, também mexeu com a reputação internacional dos Estados Unidos.
Além
disso, vários países europeus revisaram suas recomendações para viagens aos
EUA. Algumas atualizações incluem alertas sobre políticas migratórias e de
fronteira mais rígidas, além de mudanças que afetam diretamente pessoas trans.
A
Dinamarca chegou a emitir um aviso oficial, e o Ministério das Relações
Exteriores da Espanha também atualizou suas diretrizes de segurança para quem
pretende viajar ao país.
Somam-se
a isso as frequentes notícias sobre detenções nas fronteiras — tudo isso acaba
impactando a imagem e o apelo dos EUA como destino turístico.
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E não é só a Europa que está mudando de postura
Na
China, o governo já emitiu alertas sobre o “deterioramento das relações
econômicas e comerciais” com os Estados Unidos. A orientação aos cidadãos é
clara: “Avaliem cuidadosamente os riscos de viajar aos EUA e viajem com
precaução”.
No
Canadá, os números também chamam atenção. Segundo o órgão oficial de
estatísticas, os deslocamentos de carro com destino aos EUA caíram 23% em
fevereiro. O tráfego aéreo teve um recuo menor, mas ainda significativo: 13%.
Esses
dados, somados aos da ITA, apontam para um movimento maior — que vai além do
turismo. Há meses, especialmente na Europa e no Canadá, cresce um boicote
silencioso a produtos dos Estados Unidos.
O
consumo tem se voltado para mercadorias locais ou de outros países. Algumas
plataformas e perfis nas redes sociais passaram a divulgar listas de produtos
americanos com sugestões de substitutos. Entre eles estão páginas como Made in CA, Boykot varor
fra USA e Choose.Europe.
Na
Dinamarca, algumas lojas decidiram ir além e passaram a identificar com
estrelas os produtos fabricados dentro da Europa.
Fonte:
Por Stephen Maher e Scott M. Aquanno, em A Terra é Redonda /Xataka.com

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