No
Pará da COP 30, um lixão a céu aberto é o retrato da contradição brasileira
A
proximidade da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas no
Pará, a COP 30, tem evidenciado a tragédia daquilo que já entrou para a
normalidade no cotidiano local (e nacional): a falta brutal de políticas
públicas – e privadas – sobre o tratamento do lixo.
Estive
no estado recentemente, especificamente na cidade de Cametá, a 180 quilômetros
de Belém. Lá, pude conferir de perto o imenso abismo entre o frisson provocado
pelo encontro internacional (com hospedagens chegando a R$ 2
milhões na capital) e o volume diário de lixo despejado nas ruas, calçadas,
descampados e especialmente no Rio Tocantins, que banha o município conhecido
por seu carnaval e rica tradição cultural.
É
difícil não se impressionar com a beleza da região: dezenas de ilhas decoradas
por casas de madeira coloridas, vastas áreas de açaizeiros e buritizeiros,
barcos de variados tamanhos singrando o rio vasto, alguns deles rebatendo o
brilho de sombrinhas plásticas carregadas pelas passageiras. É bonito demais
– e o olho gosta de festa.
Mas,
infelizmente, a robusta e constante presença do lixo consegue minar todo combo
de beleza: sacolas, garrafas de água, copos, colheres, latas, alimentos, sacos
de pipoca, biscoitos e salgadinhos povoam ruas, prainhas, aquíferos e rio. Em
Cametá, a maior parte dos dejetos sólidos vai para a região do Mataquiri, onde há um antigo lixão sem tratamento
dos resíduos. Ali, catadores/as e população já encontraram de tudo,
incluindo lixo hospitalar, materiais cortantes, fetos humanos e, uma vez,
uma perna. Gente jogada,
literalmente, no lixo.
“É uma
situação de desumanidade”, declarou na época a
promotora de justiça Louise Rejane Severino, titular da promotoria de Cametá.
Esse
cenário – sem exageros, é um filme cotidiano de terror – acontece na quarta
cidade com mais crianças no Brasil: elas são quase 27% dos 134.184
habitantes do município (e muitas das embalagens que vi nos igarapés da região
eram, aliás, de alimentos ultraprocessados como biscoitos, salgadinhos,
refrigerantes e doces, o que sinaliza um outro problema corrente, o da
alimentação com muito sódio e pouca qualidade).
A cinco
quilômetros do centro de Cametá, o lixão de Mataquiri tem dois hectares de
terra transformados em uma verdadeira cicatriz aberta. Ali, o fogo transforma
dia e noite em um inferno particular, no qual não é “apenas” o calor que
fustiga, mas uma fumaça extremamente tóxica que adoece crianças, idosos,
trabalhadores – todos forçados a inalar aquilo que se esconde sob a palavra
“resíduo”.
Em
2015, o lixão ardeu durante uma semana, levando os hospitais da cidade a ficarem
lotados com pessoas apresentando problemas respiratórios. Dez anos depois, como
mostra esse vídeo, o cenário é o
mesmo. São mais de 20,12 toneladas de lixo por dia, segundo esse estudo realizado em
2002 (quando a população da cidade tinha pouco mais de 91 mil pessoas, ou seja,
o volume hoje é bem maior).
Além de
apontar o dedo para governos e comunidades, é preciso incluir empresas privadas
como outro agente a ser responsabilizado.
A área,
é claro, é transformada sazonalmente em moeda política. O ex-prefeito do local,
Victor Cassiano, do MDB, apareceu em um vídeo (2020, período eleitoral),
garantindo que iria resolver o problema e se
mostrando horrorizado com a situação do lixão. “Os governos anteriores
não deram a atenção devida”, escreveu ele. O
gestor foi cassado há dez dias por
indícios de abuso de poder econômico e está inelegível (cabe recurso).
A
destruição que vemos na superfície se repete não só abaixo do lixão, mas em seu
entorno: quando o lixo orgânico começa a se decompor, gera um líquido escuro e
malcheiroso chamado chorume. Não é uma novidade que ele seja altamente poluente
e que precise de tratamento adequado para evitar a contaminação do meio
ambiente. Mas isso não impede que ele chegue aos montes aos aquíferos locais.
No
“Estudo preliminar da contaminação das águas subterrâneas no entorno do lixão
na cidade de Cametá”, encomendado pela prefeitura da cidade, Luiz
Walter da Silva Monteiro, Tatiana Barbosa da Costa e Lucia Beckmann C. Menezes
mostram que a contaminação pode penetrar no solo e atingir os lençois
freáticos.
Bactérias,
vírus e até substâncias radioativas estão na lista – mas é a presença de metais
pesados no chorume, como cádmio, cromo, cobre, chumbo e zinco, o que mais chama
atenção.
O
cádmio, por exemplo, é muito tóxico e se acumula no corpo com o tempo, podendo
vir de lixo comum, esgoto e outras atividades humanas. Já o cromo aparece em
diferentes formas químicas e também é liberado em resíduos urbanos. O cobre,
por outro lado, tende a aparecer em pequenas quantidades nas águas
subterrâneas, e não tem efeito acumulativo como o chumbo.
O
último é um metais mais perigosos: ele pode se prender à matéria orgânica ou se
transformar em compostos que se dissolvem facilmente. Mesmo em pequenas
quantidades, a exposição ao chumbo pode causar sérios danos à saúde — e, em
casos mais graves, até levar à morte.
Conversei
com a agente de saúde Mileide Farias, uma das autoras do estudo “Gestão de
Resíduos Sólidos para o Povo Ribeirinho do Projeto de Assentamento
Agroextrativista Ilha Itaúna, Cametá, Pará” (disponível aqui). Segundo ela, as
doenças mais comuns decorrentes do descarte inapropriado são as respiratórias e
de pele, a maioria delas causadas pela queima de lixo e pela exposição a
substâncias tóxicas. Além disso, há uma série de acidentes como cortes e ferimentos
causados por vidros quebrados e outros objetos cortantes.
“Infelizmente,
o lixão ainda é uma realidade em Cametá. É um problema grave, especialmente
durante o verão, quando o lixo é queimado e causa uma fumaça tóxica que afeta a
saúde das pessoas”, diz ela, que é ribeirinha de Itaúna de Baixo.
O
estudo do qual Farias fez parte focou no problema do descarte especificamente
na comunidade acima, na qual foram aplicados 200 questionários para moradores e
moradoras da ilha.
Ali, a
pesquisadora e suas colegas observaram que vidros, metais, lixo eletrônico e
sementes de açaí (hoje usadas para produção de cosméticos e plástico
biodegradável, entre outros fins) eram descartados indevidamente no ambiente,
enquanto plásticos eram queimados.
A
maioria dos entrevistados não sabia da existência de metais pesados resultantes
da queima do lixo eletrônico. Hoje, segundo ela, o cenário na ilha é outro – ou
seja, com trabalho e pesquisa bem orientados, há luz no fim do túnel.
“Trabalho
como agente de saúde há 1 ano e 8 meses. O que mais se destaca para mim é a
mudança de comportamento da comunidade ribeirinha em relação ao descarte de
lixo. Antigamente, jogavam lixo no rio, mas com a educação ambiental e o
trabalho dos agentes, Incra e outros programas do governo, as pessoas começaram
a entender o impacto do lixo não biodegradável e mudaram seus hábitos”, ela
disse, apesar de pessoas da cidade seguirem descartando lixo quando vão ao
interior.
“Além
disso, foi bem visível a mudança na saúde da população que queimava o lixo,
devido à falta de coleta na área ribeirinha. Hoje, graças a Deus, temos a
coleta seletiva de resíduos na comunidade”, diz Farias.
‘As
empresas poderiam colaborar desenvolvendo programas de reciclagem e
reutilização de materiais, além de investir em tecnologias mais sustentáveis.’
Há um
ponto extremamente importante na discussão: além de apontar o dedo para
governos e comunidades, é preciso incluir empresas privadas como outro agente a
ser responsabilizado pela poluição e adoecimento da população.
Um
estudo na revista Science Advances, o Global Producer
Responsibility for Plastic Pollution, mostrou que, a cada 100 resíduos
plásticos recolhidos na natureza, 12 traziam as marcas Coca-Cola, PepsiCo,
Nestlé, Danone e Altria/Philip Morris International (coleta entre 2018 e
2022).
Como
mostra esse texto da Climainfo,
apenas metade do lixo plástico recolhido no período teve sua marca
identificável, assim o percentual de poluição dessas grandes marcas dobra,
chegando a 24%.
“As
empresas poderiam colaborar desenvolvendo programas de reciclagem e
reutilização de materiais, além de investir em tecnologias mais sustentáveis.
Elas também poderiam trabalhar em parceria com a comunidade e o poder público
para desenvolver soluções conjuntas para o problema do lixo”, diz Farias.
Obviamente,
o enorme problema do lixo não é uma marca somente de Cametá: na região Norte
que receberá a COP 30 em novembro, a porcentagem de resíduos com disposição
inadequada em 2022 foi de 63,4%, o que significa 3.240.105 toneladas
de lixo por ano.
Dos 450
municípios nortistas que dispõem de alguma forma de disposição final em seu
território, 354 são considerados ambientalmente inadequados, segundo informa a
Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais. Os
dados fazem parte do estudo “Caracterização analítica da realidade dos
“lixões” municipais na Amazônia paraense”, disponível aqui.
Os
lixões, infelizmente, continuam bombando: de acordo com os dados mais recentes
do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento, o SNIS, entre os 144
municípios do estado do Pará, 127 informam sobre o manejo dos resíduos
sólidos.
Deles,
99 ainda utilizam lixões como forma de disposição final de resíduos sólidos
urbanos. No fim, a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (Lei n° 12.305/2010)
continua em grande parte sendo tão real quanto a vitória régia sobre a qual
Mariah vai cantar.
Fonte:
Por Fabiana Moraes, em The Intercept

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