O
colaboracionismo do Grupo Folha da Manhã à ditadura civil-militar e seu braço
executor: a Folha da Tarde
Desde
fins da década de 1990, parte da historiografia brasileira já sublinhava que o equivocado
processo de Anistia, promulgada em 1979, auxiliou a cunhar igualmente a errônea
visão de que vivemos envoltos em uma tradição de valores democráticos. A partir
das lutas pela Anistia, “liberta-se” a sociedade brasileira a repudiar a
ditadura e, assim, demonstrar sua parcela progressista com profundas e
autênticas origens na trajetória histórica do país. E há aqui ironia. Naquele
momento plasmou-se a imagem de que a sociedade brasileira viveu a ditadura do
pós-1964 como um hiato, um instante a ser expurgado. Ícones de resistência são
lembrados, afirmados, expostos e sublinhados maciçamente para ratificar a
tradição democrática brasileira. Os inúmeros jornalistas perseguidos,
demitidos, torturados e mortos sofreram estas horríveis barbáries enquanto
atuavam como militantes das esquerdas, em ações armadas ou como simpatizantes.
Assim, como pontuava lúcida e ferinamente Cláudio Abramo, “nas redações não há
lugar para lideranças. Os donos dos jornais não sabem lidar com jornalistas
influentes, que, muitas vezes, se chocam com as diretrizes do comando. O
jornalista tem ali uma função, mas ‘ficou forte, eles eliminam’.” O cerne dessa reflexão inaugural é a atuação
do Grupo Folha da Manhã, proprietário da Folha de S. Paulo e
da Folha da Tarde, entre outros, no período. Em dezessete anos,
entre 19/10/1967 e 7/5/1984, o país foi dos “anos de chumbo” ao processo
das Diretas Já. Enquanto isso, a Folha da Tarde vivenciou
uma redação tanto de esquerda engajada — até o assassinato de Marighella —
como, a partir daí, de partidários e colaboradores do autoritarismo.
Durante
uma década e meia sob o comando de policiais, o jornal adquiriu um apelido: o
de “maior tiragem”, já que muitos dos jornalistas que ali trabalharam eram
igualmente “tiras” e exerciam cargos na Secretaria de Segurança Pública do
Estado de São Paulo. A partir desse perfil de funcionários, a Folha da
Tarde, enquanto um braço operacional do Grupo Folha da Manhã, carrega a
acusação de “legalizar” mortes decorrentes de tortura, se tornando conhecido
como o Diário Oficial da Oban. Esta é uma ponta para conjecturarmos
o porquê de os carros do Grupo Folha da Manhã terem sido incendiados por
militantes das esquerdas nos dias 21/9/1971 e 25/10/1971. A temática foi
esmiuçada em meu trabalho desenvolvido entre 1996 e 2001, e publicado em 2004,
nos 40 anos do Golpe, como o livro Cães de guarda: jornalistas e
censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Minha análise sobre os carros
incendiados foi reconhecida pelo Relatório da Comissão Nacional da Verdade. A
ação era uma represália, já que o Grupo era acusado de ceder automóveis ao
Doi-Codi, que com esse disfarce, montava emboscadas, prendendo ativistas. Nesse
sentido, trata-se de mapear uma experiência de colaboracionismo de
uma parcela da imprensa com os órgãos de repressão no pós-AI-5. Ou seja, tem-se
como mote a atuação de alguns setores das comunicações do país e suas estreitas
e permissivas conexões com a ditadura civil-militar do pós-1964. Além de não
fazer frente ao regime e às suas formas violentas de ação, parte da imprensa
também apoiou a barbárie. Há diversas tonalidades de colaboração e todas
demonstram como esses grupos se plasmaram à ditadura. Escolheu-se conjeturar
com o que, julgo, ser o mais forte nessas relações de cooperação, apreendendo o
ato de colaboracionismo como tendo cores e tonalidades várias. Tanto podia
ser exercido de maneira individual, como coletiva e, como vale salientar, este
modo de agir não é exclusivo do jornal selecionado. Suas características
peculiares, no entanto, tornaram-no um locus privilegiado
desta análise.
A Folha
da Tarde, do Grupo Folha da Manhã, foi velozmente mapeada anteriormente.
Criado em 1/7/1949, com o slogan “o vespertino das multidões”,
assim permaneceu até 31/12/1959. Retornou em 19/1/1967 e foi extinto em
21/3/1999. O intervalo de tempo que inquieta esta análise, todavia, é o que vai
do seu ressurgimento até o dia 7/5/1984. Nesses dezessete anos, entre 1967
e 1984, o país foi dos “anos de chumbo” ao processo das “Diretas Já”; e a Folha
da Tarde teve tanto uma redação de esquerda engajada, como de
partidários do autoritarismo que reinava no Brasil.
Assim,
nas páginas daquele jornal há desde denúncias sobre os tempos vividos como (e
principalmente) o reflexo do seu aval às conjunturas do momento. Os homens e
mulheres que lá trabalharam, seu corpo de jornalistas, formavam um grupo
diverso e múltiplo. Viveram tanto as forças do arbítrio, nas prisões e mortes
não só relatadas, mas também sentidas na própria pele, como muitos igualmente
pactuaram com os agentes da repressão. Como se poderá notar, a trajetória
da Folha da Tarde não apenas espelha as rupturas e mudanças no
panorama brasileiro, como também os caminhos percorridos pelo Grupo Folha da
Manhã para se adaptar aos percalços e à efervescência política daquele período,
perdendo poucos anéis, mas jamais os dedos.
O
início da década de 1960, portanto, foi um momento de grandes mudanças internas
no Grupo. Por um lado, alterações de forma: três jornais são reunidos em um,
que recebe o nome de Folha de S. Paulo. De outro lado, alteram-se
estruturas, com a nova direção da empresa. Com a substituição de Nabantino
Ramos por Otávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, em 1962, a linha
editorial se tornou francamente anti-janguista. Como outros jornais, os do
Grupo, além disso, apoiaram as mobilizações e os acontecimentos que culminaram
na ação de 1º de abril de 1964.
Concomitantes
ao alinhamento editorial ocorriam transformações em âmbito empresarial. A Folha
de S. Paulo a partir de então buscou ampliar seu público, adquirindo
uma frota própria e, ao conquistar o leitor do interior do estado, aumentou sua
influência. Quanto às metamorfoses na forma e no conteúdo do jornal, o cargo de
diretor de redação do Folhão foi ocupado por José Reis, homem
do jornal desde 1948, e que esteve à frente da Folha até 1967.
Cláudio
Abramo assumiu o Folhão em 1967 e esteve à sua frente quando,
entre 1969 e 1972, o veículo viveria um momento de censura imposta pelo regime
a toda a imprensa, e que não findou no início dos anos de 1970 para a
totalidade da imprensa. O ano de 1967 foi o período inicial das transformações
da Folha, quando o Grupo investiu em tecnologia, com a aquisição de
máquinas offset, e no aumento da frota para acelerar a entrega de
seus jornais. Essas modificações se iniciaram pelo jornal Cidade de
Santos em 8/7/1967 e chegaram à Folha de S. Paulo em
1/1/1968. No meio do caminho, em 19/1/1967, relançou-se a Folha da
Tarde, como o primeiro jornal paulistano a publicar fotos coloridas na
primeira página. Credita-se a esses primeiros anos do Grupo uma ampliação
substancial do seu público leitor e a conformação do seu perfil empresarial.
Assim é que, em 1965, o Grupo adquiriu o jornal Notícias Populares,
fundado dois anos antes. E doze anos após a posse de Frias e Caldeira,
a Folha de S. Paulo transformou-se no jornal mais lido no
interior do estado de São Paulo, segundo o Ibope. E a Folha da Tarde,
que imagem deixou? É impossível refazer esse desenho nos prendendo somente ao
espaço da redação. O corpo de redação da Folha da Tarde, de 1967 a
1984, é formado por dois grupos distintos: os de antes e os de depois do AI-5.
A existência dessas duas castas se cruza intimamente com os
acontecimentos políticos do momento. Além de reportar a realidade para as
folhas impressas, muitos dos que lá trabalharam tiveram engajamento contra ou a
favor da repressão. De tal modo, compreender por que a Folha da Tarde renasceu
em 1967 também é uma forma de adentrar nessa trama. As uniões e separações dos
Frias com figuras como Cláudio Abramo e seus pares indicam os difíceis caminhos
que unem idealismo e realidade no Brasil pós-1968, tendo como palco o prédio
amarelo. Para ver e rever alguns desses embates, faz-se importante trazer à
tona a trajetória desse periódico.
·
Por
que renasce a Folha da Tarde?
A Folha
da Tarde que renasceu naquele outubro de 1967 era um jornal
completamente diferente do que existira entre 1949 e 1959. O projeto a queria
moderna, colorida, impressa em offset. Nas suas páginas deveriam
estar as questões nacionais do momento e, principalmente, a efervescência que
transpirava pelas ruas do país. Quando o jornal foi para as bancas, o cenário
político era de constante movimento e havia uma permanente ebulição. Dirigida
primeiramente pelo jornalista carioca Jorge Miranda Jordão, egresso da Última
Hora, contou nesse momento com “velhos jornalistas” que tinham pouco
mais de trinta anos de idade, além de pessoas que começavam suas carreiras.
Muitos deles, como Raimundo Pereira, Frei Betto, Paulo Sandroni, Chico Caruso,
viriam a ter um papel de destaque em sua profissão nas décadas seguintes. A
linha editorial era de oposição ao governo, até quando este o permitiu; nesses
primeiros tempos, o jornal caminhava ainda para encontrar seu perfil e definir
bem seu público-alvo. Foram o desenrolar do panorama e o posicionamento pessoal
dos jornalistas daquela redação que deram o tom do jornal. No fundo, portanto,
ele se constituiu como um reflexo do momento vivido. Como refletiu Paulo
Sandroni, “não creio que fosse um jornal de esquerda, mas ganhou esse caráter
depois”. Nas manchetes da Folha da Tarde de 1968 o tom é quase
sempre político. Em abril, trazem as torturas sofridas durante oito dias, no
Rio, por dois irmãos e cineastas durante a missa de sétimo dia do estudante
Edson Luís, morto no mês de março em um conflito com a Polícia Militar no
restaurante estudantil Calabouço. Em 2 de outubro, em letras garrafais, o
jornal diz: “Conheça Vladimir, ele quer o poder”.
Fica
claro o quanto a efervescência política ganhava espaço nas ruas e nas páginas
dos periódicos. A maioria dos jornalistas tinha alguma militância, mesmo que
apenas como simpatizante. Muitos dos jornalistas daquela redação ou eram ou
tinham amigos engajados politicamente. No prédio da Alameda Barão de Limeira,
a Folha da Tarde ainda noticiou, no dia 13 de dezembro, a
libertação de José Dirceu e a transferência de outros estudantes presos no
Congresso da UNE (realizado em Ibiúna, no interior São Paulo) para outras
unidades militares e do DOPS em todo o país.O mais drástico estava por vir.
Carlos Penafiel, responsável pela diagramação do jornal, resumiu o que
aconteceu ali horas depois, quando, à noite, o locutor da Agência Nacional,
Alberto Cúri, tendo ao seu lado o ministro da Justiça, Gama e Silva, leu o Ato
Institucional nº 5: “(…) o AI-5 mexeu na redação. Nossa primeira reação foi
que, como jornal, estávamos mortos. Daí em diante a linha à esquerda do jornal
era meio impossível. Sabíamos que o pouco de liberdade que poderíamos ter da
censura oficial, [seria confrontada] com a censura interna (Frias, Caldeira e
Cia.). Houve um desânimo geral e muitos saíram nessa ocasião. Só continuaram os
que não tinham muita opção, afinal o AI-5 tinha mexido com toda a Imprensa.
[Assim,] ou se partia para fazer jornais clandestinos ou se ficava onde
estava.”
·
A
tempestade: o AI-5, o sonho acabou
Com a
decretação do AI-5, muitos proprietários de empresas de jornal criam
alternativas para se adaptarem aos “novos tempos”. Na mesma semana em que o
regime autoritário endureceu, em vários órgãos de imprensa os jornalistas mais
combativos foram demitidos. Jorge Miranda Jordão permaneceu à frente da Folha
da Tarde por mais alguns meses e foi demitido do Grupo nos primeiros
dias de maio de 1969. O dono do jornal, Octávio Frias de Oliveira, chamou-o à
sua sala e disse: “não posso mais ficar com você”.Alguns jornalistas da Folha
da Tarde eram simpatizantes da militância armada de esquerda,
abrigando reuniões em suas casas, hospedando pessoas ou participando da rede de
apoio, como o próprio Miranda Jordão, que acabou sendo preso em agosto de 1969.
Afora as demissões do jornal, a repressão pós-AI-5 os surpreendeu com máxima
violência, com invasões de domicílio e prisões ou forçando-os à
clandestinidade, como ocorreu com Paulo Sandroni. A “caça às bruxas”
intensificou-se após o sequestro do embaixador norte-americano, em 4/9/1969, e
o cerco a Carlos Marighella, morto em São Paulo, exatamente dois meses
depois.Nas alterações na direção do jornal, entre a saída de Miranda Jordão e a
posse de Pimenta Neves, exerceu o cargo um prata da casa, “(…) que
andava com uma capanga armada pela redação, e fomos todos demitidos. A linha do
jornal tinha mudado completamente, a ponto de que quando fui demitido por
motivos políticos, junto com 8 colegas, em agosto de 1969, de toda a antiga
equipe não restava mais ninguém”.
A
partir de julho de 1969, com o fim da equipe de redação que havia sido formada
desde outubro de 1967, o jornal, torna-se, nas palavras de Cláudio Abramo,
sórdido. O papel desempenhado pelo Grupo Folha da Manhã durante os anos de 1970
recebe muitas críticas. Para Freire, Almada e Ponce, “(…) a imprensa, censurada
aqui e ali, não oferecia resistência mais séria ao governo quando se tratava
das organizações de esquerda revolucionária. E aqui distinguimos muito bem os
jornalistas dos donos de jornal. É preciso que se diga, a bem da verdade, que
muitos jornalistas arriscaram seus empregos e mesmo a vida, enviando notícias
para o exterior e passando algumas informações apesar da censura. Jornais, como
a Folha de S. Paulo, transformaram-se em porta-vozes do governo
militar e mesmo cúmplices de algumas ações.” Denuncia-se o jornal e o Grupo
Folha da Manhã por algo extremamente sério: terem sido entregues à repressão
como órgãos de propaganda, enquanto papel, tinta e funcionários eram pagos pelo
Grupo. Neste sentido, buscando traçar um perfil do periódico, encontrei muitos
depoimentos que se auto atribuíam a criação da célebre frase que definiu
a Folha da Tarde a partir de julho de 1969. O jornal era tido
como “o de maior tiragem”, devido ao grande número de policiais que compunham
sua redação no pós-AI-5. Muitos também a conheciam, por isso, como “a
delegacia”.
·
Os
policiais: Diário Oficial da Oban
O
jornalista Antônio Aggio dirigiu o Cidade de Santos, publicação do mesmo
Grupo Folha da Manhã, de julho de 1967 a junho de 1969. Declaradamente um
repórter policial, com bom trânsito nas fontes de polícia, foi convocado para
a Folha da Tarde porque “o jornal não vendia”. O recorde de
vendas teria sido registrado em 3/1/1968, quando se comercializaram onze mil
exemplares/dia com as imagens dos combates na rua Maria Antônia, enquanto a
média era 2.5 mil exemplares por dia. Havia sido esta, aliás, a “explicação
oficial” permanente para se substituir Miranda Jordão: a baixa venda do jornal
e a falta de recursos para executar um similar competitivo com o Jornal
da Tarde. De Santos, Aggio trouxe ainda Holey Antônio Destro e José Alberto
Moraes Alves, o Blandy, e “tomou posse” do jornal a partir de
19/6/1969. O então jornalista Ítalo Tronca, remanescente da redação de Miranda
Jordão, lembrou que da antiga equipe que sobreviveu ao AI-5, só permaneceu quem
precisava do emprego. “Até que chegou o Aggio. Ele trazia para dentro da
redação um estojo que parecia um violão. Não sabíamos o que era. Mas ele
gostava de exibi-lo na sua sala: uma carabina turca. Nós não sabíamos de onde
vinha essa gente [Aggio, Horley e Torres]. O Horley vinha armado de uma
automática. Torres era relações públicas do IVº Comar e fazia um gênero amigo.
Os outros dois eram acintosamente policiais.” Rememorando esta trajetória, o
jornalista Adilson Laranjeira — que muito mais tarde, em meados da década de
1980, comandou a Folha da Tarde substituindo Aggio — conta que
“talvez fosse conveniente, naqueles tempos, manter a Folha da Tarde“,
como um jornal “de maior tiragem”, onde muitos jornalistas eram policiais, ou
se tornaram policiais lá dentro. Além do próprio editor-chefe, o chefe de
reportagem Carlos Dias Torres era investigador de polícia; o coronel da PM, na
época major, Edson Corrêa, era repórter da Geral; o delegado Antônio Bim esteve
por algum tempo no jornal; e o chefe da Internacional, Carlos Antônio Guimarães
Sequeira tornou-se delegado, por concurso, em 1972.
A
proposta de Antônio Aggio, quando assumiu a Folha da Tarde, era
realizar o oposto do que ocorrera no período dirigido por Miranda Jordão,
intensificando a ênfase às narrativas policiais. Tem-se a impressão, ao
consultar o periódico, que a gestão de Miranda foi percebida por Aggio como uma
ilha. O novo editor construiu uma ponte sobre ela, unindo outra vez o jornal à
sua suposta “gênese”, com exceção, é claro do reconhecimento e manutenção da
tecnologia offset, o grande avanço de modernização gráfica da época.
Um exemplo que corrobora essa aparente necessidade de distanciar as redações de
Miranda Jordão e de Aggio foi a cobertura dada à prisão de Frei Betto. Em
nenhum momento a Folha da Tarde mencionou que o jornalista
teria pertencido aos quadros do jornal. Nem Betto, nem nenhum dos outros
militantes presos e que tinham trabalhado no jornal. No mesmo dia 11/11/1969,
a Folha da Tarde, a Folha de S. Paulo e O
Estado de S. Paulo relataram a prisão do dominicano no Rio Grande do
Sul. O Estadão foi o único a mencionar que Frei Betto era
ex-chefe de reportagem da Folha da Tarde. A pressão sobre os donos
do jornal era muito grande e, além da presença policial na equipe de redação,
da substituição do espaço do editorial — o lugar onde a equipe de redação opina
sobre as questões do momento — por charges e da guinada à
direita, o tabloide adotou a censura interna e a autocensura. Neste sentido,
sublinha Boris Casoy, que foi editor-chefe da Folha de São Paulo,
“por uma questão de sobrevivência, o Grupo Folha não tinha censor. Tinha
decidido não enfrentar o regime. Fez autocensura.” Do mesmo modo, as manchetes
da primeira página da Folha da Tarde, além de difundirem informes
oficiais — que davam outra versão à verdade dos fatos —, também criavam um
pacto com o cativo público leitor. O
padrão manteve-se nos quinze anos de gestão de Antônio Aggio à frente da Folha
da Tarde, de 1/7/1969 a 7/5/1984. Ainda na véspera da votação da emenda
Dante de Oliveira, na plenária de 25/4/1984, pelas “Diretas Já”, todos os
jornais do país noticiaram a intimidação que o general Newton Cruz realizou,
fazendo exercícios militares e cercando o Congresso Nacional
com tropas da PM, do fim da tarde até às 21 horas. O general Cruz, ex-chefe do
SNI, era, desde agosto de 1983, responsável pelo Comando Militar do Planalto e
da 11ª Região Militar, com sede em Brasília, além de executor de medidas de
emergência. Usando desse instrumento, o general declarou ter antecipado o
esquema de segurança em 24 horas, para evitar o acesso não autorizado ao
Congresso. No entanto, o cerco se deu após oitocentos estudantes terem se
concentrado no saguão para uma vigília cívica até a votação. Para a Folha
da Tarde, todo o episódio não passou de um teste de adestramento.
·
Quando
jornalistas e policiais se confundem
A Folha
da Tarde foi um porta-voz e, como tal, ficou conhecida como o Diário
Oficial da Oban por reproduzir informes do governo como se fossem
matérias feitas pelo próprio jornal. As imagens, construídas para além da
verdade dos fatos, ditavam uma direção de raciocínio. Esses foram os “serviços
prestados” pelo jornal, de julho de 1969 a 7/5/1984. O grande poder da Folha
da Tarde, segundo Aggio, estava na sua alta vendagem. Se esse foi um dos
motivos que justificaram a linha policialesca durante a década de 1970, em
meados dos anos de 1980 a realidade começou a se alterar. Na perspectiva de
Carlos Brickman, “(…) quando o grupo de Aggio deixou de vender jornal, caiu. A
meu ver, Boris Casoy definiu a coisa com mais precisão: a Folha da
Tarde era de extrema direita porque o regime era de extrema direita.
Se o regime fosse de extrema esquerda, a Folha da Tarde seria
igualzinha, com os mesmos dirigentes, e seria de extrema esquerda. Na verdade,
a Folha da Tarde era o jornal da Polícia. Se a Polícia fosse a
Gestapo, como a nossa parecia aspirar ser, seria Gestapo. Se fosse KGB, seria
KGB numa boa, sem problemas. Não havia, no direitismo da Folha da Tarde,
nenhuma raiz econômica: era apenas a supremacia da ordem que valia”. O destino do jornal já estava, porém, selado.
Em meados de abril de 1984, Antônio Aggio foi invitado à sala de Octávio Frias
de Oliveira, onde também estava o filho. Não havia, segundo os donos do jornal,
mais espaço para aquela Folha da Tarde no prédio
da Barão de Limeira. Na primeira sexta-feira de maio, dia 4 — pouco mais de uma
semana depois da derrota das “Diretas Já” —, Antônio Aggio assinou um longo
artigo de página inteira. Contrariando o acordado, em uma espécie de editorial
intitulado “Plebiscito e referendo, instrumentos de salvação nacional”,
com charges, citações da Constituição de 1967, análises políticas e
definições de Estado e democracia, ficavam patentes as sincronias da Folha
da Tarde com os novos rumos da empresa.
Na sua
versão, Aggio deixou o jornal depois de escrever essa sua “carta de
princípios”, e não porque, para o Grupo Folha, ele simbolizava um passado que
devia sair de cena e ser esquecido. O país buscava novos ares, e a Folha
de S. Paulo se engajara em informar o público leitor sedento dessas
informações. Assim, era definitivamente imprescindível retirar os “tiras” da
redação. Eles eram um dos símbolos de um Brasil obsoleto e, como a anistia era
recíproca, não se julgariam também os seus atos.Em seu último dia de jornal,
7/5/1984, Aggio publicou uma pequena nota despedindo-se de seu público, que
vinha rareando, e agradeceu à sua equipe “aguerrida que sempre praticou a
lealdade acima de tudo”. Novamente são as vendas que justificam as mudanças
da Folha da Tarde. O futuro na Folha da Manhã tornou
Aggio um repórter especial da Agência Folha, da qual se aposentou em 1986.
Enquanto policial, manteve o vínculo empregatício na Secretária de Segurança
Pública. O delegado Sequeira também continuou no jornal até 1988, dirigindo a
Internacional. Do antigo trio, Horley Antônio Destro engajou-se no mercado
publicitário. No caso da Folha da Tarde, os jornalistas
responsáveis, íntimos do círculo policial repressivo, trocaram intencionalmente
a narrativa de um acontecimento pela publicação de versões que corroborassem o
ideário autoritário oficial. Certamente, acreditavam em suas ações, compactuando
sempre com o poder vigente. A essa atitude se pode dar o nome de autocensura,
como também colaboração. Fiéis aos seus “donos”, esses cães de guarda farejaram
uma brecha, protegeram uma suposta morada e, principalmente, ao defender
o castelo, venderam à sociedade uma imagem errônea. Quando o
“tabuleiro do poder” modificou-se, muitos desses servidores foram
aposentados, outros construíram para si uma imagem positiva e até mesmo
heróica, distanciando-se do que haviam feito. Outros tantos se readaptaram e
permaneceram trabalhado nas mídias como sempre. De todos esses esquemas e
estruturas para perder poucos anéis, algo deve ser sublinhado. O jornal,
impresso ou televisionado, é um produto que vende um serviço, a informação,
comprada pelos leitores. Assim, muitos pagaram pelo jornal impresso para
saberem o que se passava nos seus mundos. Outros sofreram com o que estava
impresso no jornal, mesmo que no dia seguinte este tenha virado simples papel
de embrulho de peixe nas feiras.
·
Ponderações
finais
Retomando
as ponderações sobre o processo que culminou com a Anistia decretada em 1979, e
tendo em perspectiva a forma aparentemente pacífica de interrupção da
circulação da Folha da Tarde como modelo, tem-se a impressão
de que tudo tomou seu lugar, apaziguando dilemas, o que pode causar desconforto
para quem não aceitou enquadrar-se à “nova ordem social”, particularmente os
familiares de mortos e desaparecidos. Por isso, é importante sublinhar o tom
dessa transição, tanto na Folha da Tarde, como no país. Uma
transição que garantiu a manutenção do controle às elites econômicas,
reafirmando a apregoada tradição conciliatória da política brasileira. Temas
dessa natureza costumam ser tão caros e complexos — conciliar, negando a dor, e
reafirmar sempre uma herança democrática brasileira — que as imagens fortes
desfocam a análise dos fatos, sobretudo aqueles que não interessam aos “donos
do poder”. Quase sempre vistas como meros dados, algo intrínseco à narrativa
superficial, as raízes democráticas do país são sublinhadas constantemente para
interpretar os períodos de arbítrio como exceções. Por esse raciocínio, aparar
arestas sem exorcizar fantasmas é um preço que deveria ser pago para preservar
a “inquestionável democracia”. Varre-se a sujeira para debaixo do tapete, a fim
de manter a impressão da sala limpa. Por esse olhar, os crimes não existiriam
ou seriam passíveis de perdão. Tudo em nome da preservação de um sistema
político estrábico, de olhar enviesado para as desigualdades sociais e envolto
também em fragilidade. Qualquer ação, assim, poderia desestabilizar a
democracia, jamais compreendida como conquista, mas como concessão, deitada em
(nosso) berço esplêndido. Questões atualíssimas no presente nos levam a
refletir sobre o papel da imprensa, seja nas democracias, nas ditaduras ou nos
processos que levam a uma ou a outra. Existem muitos veículos de comunicação
país afora que ainda não mereceram uma análise robusta sobre suas trajetórias.
Há um vasto campo a ser desbravado. Quanto menos investigações, mais fácil a
construção de negacionismos.
O
estudo que deu origem a Cães de guarda: jornalistas e
censores, do AI-5 à Constituição de 1988 reuniu um acervo de 60
entrevistas com jornalistas e censores, realizadas no período de 1996 a 2001,
as quais constituíram o texto de minha tese de doutorado, defendida em novembro
de 2001 no PPGH/UNICAMP. Nela, não foram consultados ou utilizados bancos de
entrevistas de projetos empresariais de memória, onde os depoimentos carregam
um tom “chapa-branca”. Estive com cada um dos entrevistados e por vezes,
encontrei-os em mais de uma ocasião. Debrucei-me sobre conjuntos documentais
que estavam sendo disponibilizados naquele momento em diversas instituições,
como os do Arquivo Nacional (RJ e Brasília), DPF (incluindo a Academia Nacional
de Polícia), e os Arquivos Públicos Estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo.
As conclusões formuladas foram reconhecidas para auxiliar tanto a Comissão
Nacional da Verdade, sendo citadas em seu relatório, quanto a Comissão Estadual
da Verdade (CEV) “Rubens Paiva”. Atualmente, este estudo auxilia o MPF-SP na
investigação sobre a participação empresarial no pós-1964. Assim, concluo me
utilizando da sugestão amiga de um jornalista/professor, leitor crítico, que
usando livremente a famosa frase de um dramaturgo alemão me disse: aquele que
não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e
diz que é mentira, este é um inconsequente.
Fonte: Por Beatriz Kushnir,
np Blog da Boitempo

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