A
“boiada do petróleo” passa na foz do Amazonas
No
início da pandemia de COVID-19, em maio de 2020, o então ministro do Meio
Ambiente do governo Bolsonaro, Ricardo Salles, sugeriu numa reunião ministerial
que era a hora de “passar a boiada” sobre a legislação ambiental. Salles queria
aproveitar o foco da imprensa na doença, que apavorava a população, para
provocar estragos no clima e no meio ambiente, temas tão desprezados tanto por
ele como por seu chefe.
Mas,
nos quatro anos de Bolsonaro na presidência, assim como nos dois anos e meio de
Michel Temer no cargo, não houve qualquer oferta ao mercado de áreas para
exploração de combustíveis fósseis na foz do Amazonas. Aliás, foi no governo
Temer que a então presidente do Ibama, Suely Araújo, hoje coordenadora de
Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC), negou uma licença para a
francesa Total Energies perfurar um poço de petróleo numa área próxima ao atual
FZA-M-59, da Petrobras. Foi uma decisão técnica, baseada nas evidências do alto
risco que tal empreendimento representa para uma região ao mesmo tempo rica e
frágil em termos ambientais. A foz só seria lembrada no final de 2022, no
apagar das luzes do governo Bolsonaro, quando a petroleira estatal brasileira
começou o processo de licenciamento no órgão ambiental para o bloco 59.
Por
isso, é chocante que, em seu esforço para reconstruir uma Petrobras combalida
pela tentativa de privatização do governo anterior, Lula esteja olhando para o
passado fóssil ao invés do futuro renovável. Justo o governo que colocou o
Brasil de volta ao multilateralismo climático abandonado por seu antecessor,
vem agora oferecer 47 blocos na foz do Amazonas a petroleiras. A confirmação da
oferta dessas áreas no leilão que a Agência Nacional do Petróleo (ANP)
promoverá em junho foi feita na 2ª feira (14/4).
A
inclusão destes blocos no certame contradiz frontalmente a tentativa de Lula de
protagonizar a agenda global de transição energética. E também coloca em xeque
suas prioridades: se o interesse privado de um punhado de empresas por explorar
petróleo no Brasil “até a última gota” ou a segurança e o bem-estar da
população brasileira diante dos eventos extremos oriundos das mudanças
climáticas, que têm na queima de combustíveis fósseis sua principal causa.
Sem
falar que a venda dessas áreas no litoral amazônico se dará a menos de cinco
meses da COP30, que vai acontecer em Belém, a cerca de 500 km do FZA-M-59, e
mais perto ainda de áreas da foz que estarão no leilão, como se vê no mapa das
áreas disponibilizado pela ANP. Os petroestados que participarão da conferência
do clima certamente estão agradecendo por este salvo-conduto para manter os
fósseis longe das decisões da COP.
A
“boiada do petróleo” sobre a foz do Amazonas, contudo, não se restringe ao
leilão da agência, já que em muitas licitações não há oferta das petroleiras,
mesmo com interesse prévio das empresas. Só que o novo “leilão do fim do mundo”
espera a decisão do Ibama sobre a licença para a Petrobras perfurar um poço no
bloco 59. É essa a “porteira” a ser aberta para a “boiada” atropelar o grande
sistema recifal amazônico, os manguezais do litoral Norte e os Povos Indígenas
e as comunidades ribeirinhas do Amapá, sem contar o clima do nosso planeta.
Esse é o motivo de tantos impropérios e ataques “nível 5ª série” que o Ibama
tem recebido. Não se trata de um eventual problema com a competência técnica do
órgão, mas de uma disputa econômica feita em baixíssimo nível.
A
estratégia do mercado petrolífero é óbvia: a Petrobras, como uma empresa
controlada pelo governo, pode tentar “atropelar” as decisões técnicas do Ibama,
fazendo pressão política sobre o órgão ambiental. É por isso que Alexandre
Silveira, titular do Ministério de Minas e Energia (MME), pasta à qual a
petroleira estatal está vinculada, ampliou seus ataques ao Ibama. É por isso
que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), responsável por
votar [ou não] matérias de interesse do governo, disse que o órgão “boicotava o
Brasil”. É por isso que o presidente Lula, que, embora entusiasta da exploração
de combustíveis fósseis na foz do Amazonas, mantinha-se neutro no debate,
resolveu, desde fevereiro, acusar o Ibama de “lenga-lenga” e de “atuar contra o
governo”.
O novo
“leilão do fim do mundo” deixa óbvio que não se trata apenas de uma “licença
para fazer pesquisa numa pequena área” no litoral da Amazônia, como os
defensores da exploração de petróleo no Brasil “até a última gota” tentam
difundir. A autorização para a Petrobras no FZA-M-59 facilitará outros pedidos
de licença para explorar combustíveis fósseis na região. Como o jogo imposto
pelas petroleiras é fazer crer que a decisão técnica não importa, se o Palácio
do Planalto aceitar esse jogo, tudo dependerá da vontade política de quem o
ocupar.
Só que
já sentimos na pele os estragos que “vontades políticas” podem causar. A
“boiada” de Bolsonaro quase causou o genocídio do Povo Yanomami; abriu a
Floresta Amazônica para o desmatamento e para o garimpo ilegal; e não
investigou um megavazamento de petróleo que atingiu toda a costa do Nordeste.
A
emergência climática é real. É ela que está afetando a produção dos alimentos,
jogando seus preços para o alto e afetando a inflação, algo caro para Lula e
que está corroendo sua popularidade. Que deixou o Rio Grande do Sul debaixo
d’água por um mês há quase um ano. Que provocou secas severas por dois anos
consecutivos na Amazônia, afetando a vida de populações ribeirinhas. Que vem
provocando ondas de calor fora de época em todo o país e alimentando incêndios
no Pantanal, na Amazônia e no Cerrado.
E tudo
isso causado principalmente pela queima de combustíveis fósseis que a “boiada
do petróleo” quer passar sobre a foz do Amazonas, sob as bênçãos de parte do
governo.
• Licença para exploração abriria a
porteira
A
licença do Ibama que a Petrobras e parte do governo tanto querem para perfurar
um poço de combustíveis fósseis no bloco FZA-M-59, na foz do Amazonas, é só uma
“cortina de fumaça” para uma ambição muito maior. A autorização, se concedida,
será uma “porteira aberta” para a exploração de petróleo e gás fóssil em toda a
foz do Amazonas. Abrirá precedente também para a indústria petrolífera em
outras bacias sedimentares da costa amazônica, como Pará-Maranhão e
Barreirinhas.
É o que
mostra a reportagem da série “Até a última gota”, da InfoAmazonia, que já
mostrou que a região amazônica, incluindo os países vizinhos, tornou-se a nova
fronteira do petróleo em todo o mundo. No Brasil, a busca por combustíveis
fósseis se concentra no mar. E o que acontecer com o bloco 59, no litoral do
Amapá, será decisivo para o futuro da exploração de combustíveis fósseis na
Amazônia brasileira.
“Se a
Petrobras tiver autorização e achar algo lá, vamos segui-la”, disse no ano
passado Décio Oddone, CEO da Brava Energia. A petroleira, resultado da fusão da
Enauta com a 3R Petroleum, detém a concessão de um bloco na foz, assim como a
PetroRio, atual PRIO. Os demais seis blocos concedidos pela Agência Nacional do
Petróleo (ANP) na bacia são da Petrobras, entre eles o 59.
Além
desses, há mais 16 áreas sob concessão na costa amazônica. São cinco na bacia
do Pará-Maranhão, nas mãos de Petrobras e Brava, e 11 em Barreirinhas,
concedidos pela ANP para essas duas petroleiras e para as gigantes Shell e BP.
E a agência ainda poderá oferecer mais 47 blocos na foz no próximo leilão que
fará, em 17 de junho. A lista final da licitação será divulgada neste mês.
Essas
empresas estão ávidas pela resposta do Ibama sobre o 59 porque apostam na
pressão política da Petrobras. Tecnicamente, vários pedidos de licença já foram
negados pela altíssima sensibilidade ambiental da região e a falta de
informações sobre os impactos da atividade petrolífera. “Se a Petrobras, uma
empresa brasileira que tem o governo como principal acionista, não está
conseguindo, ninguém vai conseguir [a autorização]”, afirmou João Correa,
presidente da TGS no Brasil, empresa norueguesa que faz levantamentos sísmicos
na margem equatorial.
Enquanto
isso, as empresas se valem de brechas na regulação para ganhar tempo e manter
suas concessões. Pelas regras da ANP, o descumprimento dos prazos contratuais
obrigaria a devolução dos blocos ao governo. E 20 dos 25 blocos concedidos – a
maioria desde 2013, quando a atual presidente da Petrobras, Magda Chambriard,
era diretora-geral da ANP e ofertou essas áreas em leilão – não iniciaram a
exploração como estabelecido em contrato.
Contudo,
a agência permite a prorrogação de prazos em “casos fortuitos”, ou seja, fora
do controle das concessionárias. Com esse argumento, as petroleiras
justificaram os atrasos no licenciamento ambiental para manter os contratos
ativos. E assim mantêm o risco de a costa amazônica virar uma nova fronteira
exploratória de petróleo e gás fóssil no Brasil.
Mas, se
parte do governo quer explorar petróleo “até a última gota”, inclusive na
Amazônia, a chefe da assessoria especial do Ministério do Meio Ambiente (MMA)
para a COP30, Alice Amorim, “lembrou” que a transição para um mundo sem
combustíveis fósseis precisa começar. Ela participou de um evento promovido na
4ª feira (2/4) por petroleiras, quando foi apresentada uma proposta de
critérios para definir que países cortariam primeiro sua produção com a
implantação do transitioning away proposto na COP28, em Dubai.
A
inclusão da expressão na declaração de Dubai foi um avanço em relação a
conferências do clima anteriores, que não citaram o tema em seus documentos
finais. Mas, desde então, não houve evolução em relação a como esse movimento
será feito, explica Nicola Pamplona na Folha. Por isso há uma expectativa que o
debate seja retomado em Belém, na COP30.
• Pressão do governo ganha reforço
A tropa
de choque governamental que pressiona o Ibama pela licença para a Petrobras
perfurar um poço no bloco FZA-M-59, na foz do Amazonas, vai ganhar mais um
integrante. Confirmado pelo presidente Lula como ministro das Comunicações, o
deputado federal Pedro Lucas Fernandes, do Maranhão, líder do União Brasil na
Câmara, preside a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Exploração de Petróleo
na Margem Equatorial, criada em abril de 2024.
Fernandes
tem as bênçãos de outro defensor ferrenho da exploração: o presidente do
Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Com a agenda do governo amarrada ao
Congresso, a “fome” do presidente Lula por explorar petróleo no litoral do
Amapá se juntou à “vontade de comer” de Alcolumbre de capitalizar politicamente
o fato em seu estado.
Fernandes
também defendeu mudanças no Ibama, comandado por Rodrigo Agostinho, destacam
Folha e Brasil 247. Segundo o deputado, o órgão ambiental tem um “pensamento
ideológico” muito forte e que isso “é muito ruim para o governo”. Esqueceu que
o Ibama é um órgão de Estado, que segue a legislação ambiental e toma decisões
técnicas, que podem, inclusive, ser questionadas pelos empreendedores – como a
Petrobras está fazendo na foz.
A
petroleira espera para “breve” a licença para o poço que quer perfurar no bloco
59, informa o Metrópoles. Foi o que disse a diretora de Exploração e Produção
(E&P) da petroleira, Sylvia dos Anjos, a mesma que, em outubro, num arroubo
de negacionismo, disse que a presença de corais na região marítima da Amazônia
onde a empresa quer perfurar era “fake news científica”.
A
executiva voltou a repetir a falácia de que explorar combustíveis fósseis na
foz do Amazonas e em outras bacias da Margem Equatorial é necessário para repor
reservas e garantir que o Brasil não volte a importar petróleo, relata o
Estadão. Só que dados recentes da Agência Nacional do Petróleo (ANP) mostram
que o país tem petróleo até 2038 no atual ritmo de produção.
Como o
país exporta óleo, pois produz muito mais do que consome, basta ajustar as
vendas externas para expandir esse prazo-limite. Sem falar nas projeções de
queda de demanda, tanto da Agência Internacional de Energia (IEA) como da
própria Petrobras, e nas possibilidades no pré-sal, que ainda está sendo
explorado. A mesma Petrobras anunciou duas descobertas na região recentemente.
Sylvia,
porém, não parou aí na defesa da exploração da foz. Repetindo Pietro Mendes,
presidente do conselho de administração da Petrobras e secretário de Petróleo e
Gás do Ministério de Minas e Energia (MME), disse que na região do bloco 59 “circulam
mais de mil cargueiros, navios”, por isso não haveria problema em abrir um
poço. Mas cargueiros e navios não perfuram o subsolo marinho. Nem correm o
risco de despejar milhões de barris de petróleo no mar no caso de um acidente
na perfuração.
É algo
que a Petrobras sabe, já que tentou perfurar um poço perto do bloco 59 em 2011
e teve de abandonar a atividade por causa das fortes correntezas da região, sem
falar no fluido de perfuração que despejou no mar. Sylvia, no entanto, disse
que a petroleira pode atuar “de maneira segura”, segundo o Valor.
Em
tempo: Um estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) indica que 27 países
programaram licitações de novas áreas exploratórias este ano. Os investimentos
em exploração também se recuperaram da queda na pandemia e atingiram, em 2024,
o mesmo nível de 2019. Como lembra Nicola Pamplona na Folha, a EPE é parte da
ala governista que defende a exploração de combustíveis fósseis na foz do
Amazonas
• Congresso tem PLs contra e a favor de
explorar petróleo na Amazônia
Não é
segredo que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não são nada amigáveis ao
clima e ao meio ambiente. O “Pacote da Destruição”, listado pelo Observatório
do Clima (OC), com 25 projetos de lei e propostas de emenda à Constituição que
tentam flexibilizar leis ambientais e climáticas, prova isso. Felizmente há
iniciativas de parlamentares que pretendem barrar esses ataques. Mas também há
quem queira engrossar ainda mais o “caldo destruidor”.
Exemplos
desse antagonismo envolvem a exploração de combustíveis fósseis na Amazônia.
Enquanto o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) apresentará um projeto de
lei para vedar a exploração de petróleo e gás fóssil na região, o senador
Mecias de Jesus (Republicanos-RR) propôs uma legislação ambiental específica
para a autorizar a atividade na foz do Amazonas, além de repasses de royalties.
Além de
proibir a exploração na Amazônia, a proposta de Valente, que será apresentada
hoje (16/4), prevê uma moratória para projetos já existentes, com a recuperação
das áreas já impactadas pela atividade petrolífera, destaca a Folha. Com o
projeto, o PSOL pretende abrir uma discussão na base de apoio do presidente
Lula no parlamento sobre a exploração, que rachou o governo: a área ambiental é
contra, enquanto o Ministério de Minas Energia (MME) e o próprio presidente
pressionam o IBAMA pela licença de exploração para a Petrobras.
O
deputado reforça que “o Brasil não pode seguir abrindo novas frentes de
exploração de combustíveis fósseis justamente na Amazônia, um dos territórios
mais estratégicos para o equilíbrio climático do planeta”. Por isso, sua
iniciativa tem o apoio de diversas organizações ambientais e climáticas. Além
do OC, apoiam o projeto o Greenpeace, Instituto de Estudos Socioeconômicos
(INESC), WWF, Instituto Arayara e Painel Mar.
Na
contramão está o PL 1.247/2025, do senador Mecias. O texto propõe a inclusão de
três artigos na Lei do Petróleo (9.478/1996) criando um regime específico para
o licenciamento ambiental da exploração de petróleo e gás fóssil na região,
informa a agência eixos.
O
senador diz que seu projeto é rígido nas exigências ambientais e torna a
atividade petrolífera na região “ainda mais rigorosa”, com tecnologias para
minimizar impactos ambientais e sociais. No entanto, propõe que a foz do
Amazonas seja tratada como “de relevância estratégica para a segurança
energética nacional”, o que cai como uma luva para quem quer atropelar decisões
técnicas do IBAMA e explorar a região para “financiar a transição energética”
(acredite se quiser).
O risco
é suplantar o licenciamento e transferir para o MME e para a Agência Nacional
do Petróleo (ANP) competências que hoje são do Ministério do Meio Ambiente
(MMA) e do IBAMA – que (surpresa!) não participaram da elaboração do texto.
Além disso, a coordenadora de políticas públicas do OC, Suely Araújo,
classificou a proposta como “desnecessária”, pois a legislação atual já prevê
os instrumentos necessários para o pagamento de royalties e suas aplicações.
“Por
que regras específicas para a foz do Amazonas? Quem definirá essa ‘relevância
estratégica’? Se acham que estarão obrigando a concessão de licenças ambientais
dessa forma estão equivocados. Esse projeto de lei não reúne condições mínimas
de prosperar no Legislativo. Se virar lei, vai cair no Supremo Tribunal
Federal”, sentencia Suely.
Fonte:
ClimaInfo

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