ALÉM
DO MARCO: A luta indígena por justiça, território e existência
Para
além do marco, existe uma memória viva. Existem passos que ressoam mesmo antes
do tempo ser contado. A resistência dos povos indígenas não se restringe a
linhas traçadas por mãos estranhas ao solo sagrado, ela pulsa nas veias da
terra, no canto dos ancestrais, no corpo que resiste e insiste em existir.
Nos
últimos anos, a presença indígena em posições de poder tem se intensificado,
representando um marco histórico na luta pelos direitos originários. Com
líderes em posições políticas, ministérios e aumentando sua presença nas
discussões públicas, os povos indígenas demonstram que desejam e têm direito de
estar onde as decisões são tomadas. No entanto, lidam com um contexto de
retrocessos com projetos de lei que colocam em risco diretamente seus direitos
e territórios.
O PL
903, antigo PL 490, aprovado como Lei 14.701 é um dos principais ataques
legislativos. Seu objetivo é limitar a demarcação de terras indígenas, adotando
o conceito de “marco temporal” – uma teoria que ignora séculos de violência e
expulsão dos povos indígenas de suas terras. Já o PL 3729 sugere relaxar as
normas de licenciamento ambiental, o que pode apressar construções e projetos
sem levar em conta os efeitos socioambientais, particularmente em regiões
tradicionais.
Outro
grande risco é o Projeto de Lei 191, que facilita a mineração, a edificação de
usinas hidrelétricas e a extração de petróleo em territórios indígenas, sem
assegurar consulta livre, prévia e esclarecida às comunidades impactadas,
conforme estipulado pela Convenção 169 da OIT. A isso se acrescenta o Projeto
de Lei 2633, conhecido como “PL da Grilagem”, que simplifica a legalização de
terras invadidas, incentivando ainda mais o desmatamento e a violência no
campo. Esses projetos colocam em risco direitos fundamentais e permitem a
destruição de biomas inteiros.
Neste
contexto, o Acampamento Terra Livre (ATL) se estabelece como um dos mais
proeminentes espaços de resistência e articulação do movimento indígena no
Brasil. O ATL, realizado todos os anos em Brasília, reúne indígenas de diversos
povos e regiões para denunciar esses retrocessos, cobrar o cumprimento de seus
direitos e marcar sua presença política. Não se trata apenas de um protesto: é
uma manifestação de afirmação, força coletiva e visão de futuro.
Na 21ª
edição do principal evento indígena global, representantes de vários povos
expressaram denúncias impactantes contra iniciativas anti-indígenas que estão
sendo discutidas no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF). A
mobilização igualmente ressaltou a importância da crise climática e a
necessidade de salvaguardar os territórios tradicionais.
“A
gente não pode perder a esperança de um dia comemorar, de uma vez por todas, a
inconstitucionalidade do Marco Temporal. Mas também não podemos ignorar as
ameaças: a exploração econômica de nossas terras e a mineração em territórios
indígenas. O desafio posto no Supremo é um dos maiores da política indigenista
brasileira no período pós-1988.” — Mauricio Terena, coordenador jurídico da
Apib
O ATL
2025 também foi espaço para a defesa de políticas públicas específicas para os
povos indígenas, com foco em saúde, educação e valorização da cultura
ancestral. A mobilização reiterou a importância essencial da espiritualidade,
da memória coletiva e dos rituais tradicionais na luta diária dos povos
indígenas.
Um dos
principais destaques da edição foi o aumento do protagonismo das mulheres
indígenas. Líderes como Sônia Guajajara e Célia Xakriabá motivam uma nova
geração feminina que combina lutas com determinação e ancestralidade. A
participação das mulheres tem expandido a discussão sobre questões como a
violência de gênero nas comunidades, a proteção do meio ambiente e a igualdade
no acesso aos direitos.
Ao
final do ATL 2025, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) publicou
uma carta conclusiva reflexiva e desafiadora. O texto denuncia o maior ataque
institucional aos direitos indígenas desde 1988, critica projetos de energia e
combustíveis fósseis que desrespeitam territórios tradicionais e solicita a
suspensão imediata de propostas legislativas anti-indígenas.
Infelizmente
mesmo em espaços de reivindicação de direitos como o Acampamento Terra Livre,
os povos indígenas seguem sendo vítimas da violência estatal. A marcha de 10 de
abril, que contou com a presença de mais de 7 mil pessoas e se dirigia
pacificamente ao Congresso Nacional, foi violentamente reprimida pela Polícia
Militar do Distrito Federal (PMDF) e pelo Departamento de Polícia Legislativa
(DPOL). Foram disparadas bombas de gás contra a multidão, atingindo inclusive a
deputada federal Célia Xakriabá, que precisou de atendimento médico.
Este
episódio destaca o racismo estrutural e o autoritarismo que ainda marcam a
relação do Estado com os povos originários. Diante desse cenário, a Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (Coiab) publicaram notas de repúdio à violência
policial.
• Povos indígenas rumo à COP na Amazônia
Com a
chegada da COP 30, que ocorrerá em Belém do Pará, os povos indígenas reforçam
suas conexões tanto nacionais como internacionais. Buscam assumir um papel
central nas conversas globais acerca da crise climática, trazendo suas
propostas e conhecimentos tradicionais para o foco do debate.
Nesse
contexto, os povos indígenas da Amazônia, das ilhas do Pacífico e da Austrália
realizaram um pronunciamento histórico na tenda da Coiab, fortalecendo sua
aliança e protagonismo rumo à COP30. No texto “Unidos pela força da terra: a
resposta somos nós”, as lideranças declaram que “a partir de agora, estaremos
unidos, declarando ao mundo que, se depender de nós, a COP na Amazônia será o
símbolo de uma virada decisiva nas negociações e mobilizações climáticas”.
Toya
Manchineri, coordenador da Coiab e membro do G9, destacou a importância do
papel dos povos indígenas na luta contra as mudanças climáticas: “As maiores
autoridades climáticas somos nós, os guardiões da Terra, as lideranças
indígenas. Hoje é um dia histórico, em que os povos da maior floresta do mundo
se unem com os povos do maior oceano do mundo para enfrentar o maior desafio
planetário hoje, as mudanças climáticas. A COP 30 é um espaço crucial para
fazermos essa virada de chave na discussão climática global, mas nossa aliança
com os povos originários das Ilhas do Pacífico e da Austrália vai além disso.
Queremos continuar fortalecendo a solidariedade com os parentes indígenas e
aliados do mundo inteiro, pois o que nos une é mais forte que qualquer fronteira.
Avançaremos juntos, pelo futuro do planeta. A resposta somos nós, todos nós”.
George
Nacewa, Pacific Climate Warriors, acrescentou que “os povos do Pacífico também
sabem o que significa lutar por uma parte do planeta que sustenta a vida de
milhões. Grande parte da sobrevivência global está ligada ao Oceano Pacífico,
assim como está ligada à Amazônia, e ainda assim os guardiões de ambas as
entidades estão sendo negligenciados. Hoje viemos dar as mãos à nossa família
indígena no Brasil enquanto eles se preparam para sediar as negociações
climáticas da ONU. Sabemos que a verdadeira liderança climática existe dentro
dessas paredes, por que os líderes do mundo não podem se espelhar nisso? Se
eles não têm a vontade política de colocar nosso clima de volta nos trilhos
para garantir a sobrevivência de todos, então nos levem para a mesa de discussão
e nós os ajudaremos a chegar lá”.
Na
Tenda da Amazônia Indígena também ecoou o grito por uma Amazônia livre de
petróleo e gás. Lideranças indígenas da Bacia Amazônica denunciaram os impactos
da exploração de combustíveis fósseis em seus territórios e ressaltaram a
urgência de uma transição energética que respeite seus direitos. Além disso,
alertaram que a proteção da Amazônia é fundamental para o equilíbrio climático
global.
Somando
forças nesse pacto pelo clima e pela Amazônia, crianças indígenas e não
indígenas marcaram presença. Os “parentinhos”, como são chamadas as crianças
indígenas, marcharam ao lado de crianças não indígenas pelo acampamento,
entoando cantos em defesa da Amazônia, pela demarcação e titulação de terras
indígenas e por soluções para a crise climática.
Ao
final, entregaram uma carta às ministras Sônia Guajajara e Marina Silva, e à
presidenta da Funai, Joenia Wapichana, reafirmando seu papel ativo na luta pelo
clima e pela proteção dos territórios. No Manifesto das Crianças Indígenas: A
Resposta Somos Nós, elas denunciam os impactos da destruição ambiental e fazem
um apelo urgente por mudanças.
Em um
trecho comovente, afirmam: “Somos a voz da Terra que nunca se cala e a raiz que
segura o futuro […] Sempre falam que somos o futuro, mas somos o presente e o
agora!”
O
manifesto expressa a preocupação com os rios secos, os animais desaparecendo, o
aumento das queimadas e o desequilíbrio das chuvas. As crianças denunciam:
“Estão destruindo a nossa floresta. Como vai ser o nosso dia de amanhã, se hoje
já estamos perdendo tantas coisas?”. Ao final, deixam um recado claro às
autoridades e à sociedade: “Somos crianças, sim, e somos resistência! […] A
resposta somos nós! Todos nós!”
A
ligação ancestral com a terra e a defesa firme dos territórios fazem dos povos
indígenas protagonistas na luta pela vida no planeta.
• MMA firma acordo com IBGE para ampliar
mapeamento de povos e comunidades tradicionais
Ministério
do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) firmaram nesta segunda-feira (14/04) um acordo de
cooperação técnica para otimizar os estudos e o mapeamento censitário de povos
e comunidades tradicionais (PCTs) em todo o País.
Assinado
pela secretária nacional de Povos e Comunidades Tradicionais do MMA, Edel
Moraes, e pelo presidente do IBGE, Márcio Pochmann, o documento visa
desenvolver metodologias e pesquisas que ampliem a produção de dados
estatísticos e geográficos sobre esses segmentos populacionais, fortalecendo
sua visibilidade e assegurando direitos.
“O
acordo representa um avanço significativo na formulação de políticas públicas
mais justas e eficazes para os povos e comunidades tradicionais, reconhecendo
não apenas a presença, mas também a importância da manutenção dos modos de vida
desses grupos como um pilar essencial para a garantia de seus direitos”,
destacou Edel Moraes.
Com
vigência de 60 meses, o acordo prevê uma série de ações divididas em oito
etapas. Entre elas, estão a identificação de áreas prioritárias e de provável
presença de comunidades tradicionais, a harmonização de conceitos e
territórios, além do desenvolvimento de uma aplicação mobile para coleta
colaborativa de dados geoespaciais.
A
iniciativa também estabelece o compartilhamento de registros administrativos e
bases cadastrais entre o MMA, IBGE e outros órgãos governamentais. O objetivo é
promover análises mais precisas e integradas sobre a presença e as condições
dessas comunidades.
A
construção conjunta de metodologias será realizada com o apoio de organizações
representativas dos PCTs, como o Conselho Nacional de Povos e Comunidades
Tradicionais, que promove o diálogo entre governo e sociedade civil.
A
parceria também contempla a participação do MMA e do IBGE em etapas de
planejamento, testes e divulgação de dados relacionados às operações
censitárias, assegurando maior representatividade e inclusão dos PCTs nos
levantamentos oficiais.
Fonte:
Por Beatriz Tuxá e Antônio Marinho, no Le Monde/Agencia Brasil

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