O
capitalismo é mais industrial do que nunca
A
inserção das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) na produção e na
vida cotidiana deu origem a teorias, sobretudo nos anos 1980 e 1990, que
sugeriram que o “antigo” capitalismo industrial teria se transformado em uma
sociedade pós-industrial. Nessa nova sociedade, as contradições inerentes ao
capitalismo teriam se deslocado da produção e do trabalho para outras lugares
da vida social.
Essa
ideia está baseada em dois pressupostos equivocados: O primeiro deles considera
a indústria como um simples sinônimo de fábrica, o que levou um conjunto de
autores à conclusão de que o capitalismo teria superado a produção fabril
e, portanto, trabalho e classe trabalhadora teriam perdido sua importância
política e social.
O
segundo equívoco está em uma compreensão limitada, e muito presente entre os
economistas, de que industrial seria sinônimo de setor secundário. Com base na
divisão por setores da economia, setor primário (agricultura), o secundário
(indústria) e o terciário (serviços), a indústria seria restringida à produção
fabril.
A
perspectiva pós-industrial pode ser confrontada, primeiro, partindo das
referências de Karl Marx sobre as formas iniciais de indústria capitalista no
campo, o que discutiu no capítulo “A Assim Chamada Acumulação Primitiva”
de O capital. Além disso, em outro momento dessa obra, quando Marx
discute as metamorfoses e o ciclo do capital, vemos que o capital, considerado
pelo autor em seu ciclo global como capital industrial, recebe essa denominação
justamente para sinalizar que a forma industrial “abarca todo ramo da produção
conduzido de modo capitalista.” (Marx, 1985, p. 41).
A
partir dessa premissa conceitual, podemos compreender que indústria vai além de
fábricas ou setores econômicos específicos: industrial é uma forma de produção.
Mais ainda do que isso, industrial é a forma central da produção das e nas
sociedades capitalistas.
A
segunda confrontação contra a perspectiva pós-industrial pode ser feita quando
se observa a presença das formas estruturais de organização da produção
capitalista ao longo da história. Com base na divisão em classes sociais, a
cooperação capitalista dá origem a forma histórica capitalista de organização
do trabalho. É sob a cooperação capitalista que a divisão social do trabalho
especificamente capitalista é organizada: baseada no trabalho social combinado
sob o comando do capitalista.
As
plataformas digitais tanto reproduzem quanto expandem essa forma. Nesse
contexto, o processo de externalização produtiva se aprofunda, impulsionado
pela introdução dessa nova força produtiva ou das plataformas digitais como uma
“nova maquinaria”. O trabalhador coletivo, renovado sob os princípios da
cooperação capitalista, reproduz a estrutura industrial-cooperativa enquanto
tem aprofundada a subordinação ao capital, incorporando antigas e novas
práticas de gestão do trabalho.
A
exploração do trabalhador coletivo é fortalecida, com isso, à medida que o
trabalho socialmente combinado é reorganizado no espaço e no tempo. O velho
trabalho por peça assume atualmente uma nova forma (Casilli, 2020; Gray; Suri,
2017) em uma ampla gama de atividades: treinamento de sistemas de Inteligência
Artificial (Le Ludec et al, 2023); moderação de conteúdo de mídia social;
serviços de transporte e entrega de alimentos baseados em aplicativos (Amorim
& Moda, 2021); e atividades como a geração de seguidores para
influenciadores e produção de desinformação (Grohmann; Corpus Ong, 2024).
Essa
radicalização da indústria é desenvolvida simultaneamente com a dispersão do
trabalho (Harvey, 1992) em um duplo sentido: primeiro, há uma fragmentação mais
profunda do trabalho (divisão em tarefas menores, microtarefas, padronização,
scripts); e segundo, há uma manutenção do controle sobre o trabalhador coletivo
por meio da internet, das TICs, dados e algoritmos como mecanismos para
articular esta dispersão dos trabalhadores/as e de tarefas menores,
configurando uma nova combinação entre trabalhos cada vez mais subdivididos.
A
produção industrial contemporânea, com os processos de externalização da
produção (terceirizações, deslocamentos globais de processos produtivos e, mais
recentemente, com a plataformização) mantiveram o controle e centralizaram
ainda mais o poder sobre o trabalho, mantendo relações hierárquicas com
empresas subcontratadas e, agora, com trabalhadores de plataforma.
Impõem-se,
com isso, demandas rigorosas tanto para a qualidade quanto para a quantidade de
mercadorias produzidas ou mercadorias e passageiros entregues, muitas vezes com
prazos mais curtos e menos previsíveis. Essa disposição permitiu às empresas
contratantes a expansão de suas margens de lucro, ao mesmo tempo em que reduziu
progressivamente a quantidade de trabalho realizado dentro de suas próprias
instalações (Chan, Pun e Selden, 2019).
Este
processo reflete apenas a ponta do iceberg, a manifestação mais recente da
acumulação flexível (Harvey, 1992), que é caracterizada pela flexibilização
produtiva, aumento do desemprego e gestão do trabalho e dos trabalhadores por
meio de mecanismos de participação e autoresponsabilização. Assim, a
externalização ocorre em múltiplas dimensões: dentro das empresas, impactando
as práticas de contratação, salários e horas de trabalho; e em suas relações
externas, por meio da terceirização extensiva em níveis nacional e global
(Tomasina, 2012).
O
capitalismo industrial de plataforma é sustentado por estruturas que
permanecem ‘ocultas’, escondidas debaixo de uma narrativa que posiciona as
plataformas digitais e as tecnologias como únicas alternativas ao
desenvolvimento social. A externalização dos processos produtivos é a forma
fragmentária e anterior do que agora são conhecidas como plataformas digitais.
A
combinação de tecnologias, mundialização financeira e políticas neoliberais
permitiu que o capitalismo descentralizasse e dispersasse ainda mais a produção
e o trabalho. Por meio desses mecanismos, o capital expandiu as práticas de
externalização e corte de custos, impulsionadas pela plataformização do
trabalho e pela erosão sistemática dos direitos trabalhistas.
Além
disso, o capitalismo industrial de plataforma está se assentando sobre a
divisão internacional do trabalho, que molda a organização socioeconômica
específica de cada região e influencia sua relação com a (des)proteção
trabalhista e com o grau de precariedade locais. Isso quer dizer que, embora as
plataformas digitais estejam baseadas em modelos semelhantes em diversos locais
do mundo, elas exploram a forma como os mercados de trabalho estão
historicamente estruturados dentro de cada formação social, com suas
fragilidades e desigualdades sociais específicas, resultando na criação de uma
geopolítica de exploração do trabalho em plataformas (Abílio, Amorim, Grohmann,
2021).
Ao
pressupor tais fragilidades e desigualdades sociais, o capitalismo industrial
de plataforma cria a aparência de um autômato tecnológico eficaz e eficiente, a
ponta do iceberg, mas que está assentada em uma base de
desigualdades, fragilidades sociais e jurídicas que cristalizam processos
históricos de informalização e precarização do trabalho.
Dito de
forma simplificada: nenhum trabalhador se submeteria a transportar pessoas via
aplicativo, de um lado ao outro, 14h por dia, se houvesse alternativas de
trabalho e emprego mais dignas ou se as empresas de aplicativo, ao serem
obrigadas legalmente, remunerassem esses trabalhadores por todo o tempo em que
se encontram à disposição das plataformas.
Como
mencionamos, as plataformas digitais carregam as marcas estruturais dos
processos de acumulação flexível e externalização, sendo uma síntese desses
processos. À medida que a lógica da plataforma se espraia, ela renova relações
sociais de exploração historicamente cristalizadas desde a colonização e a
Revolução Industrial. Alguns, nessa relação, são responsáveis por fornecer as
matérias-primas necessárias para construir as infraestruturas das plataformas;
outros por fornecer dados para análise de Big Data; ou ainda por recrutar e
organizar trabalhadores para microtarefas e treinamento de Inteligência
Artificial.
Se há,
nesse sentido, uma diversidade de capitalismos de plataforma no mundo, como
propõem alguns autores, essa diversidade é moldada pela mesma diversidade que
marcou a gênese e a formação da produção industrial capitalista.
Ao
enfatizar o aspecto industrial do capitalismo contemporâneo, desejamos,
portanto, nos distanciar do seleto grupo daqueles que apenas sublinham as
novidades das transformações produtivas e secundarizam seus elementos de
permanência. Em um contexto em que as transformações são cada vez mais céleres,
enfatizar o que se reproduz no aparentemente novo parece ser um bom caminho
para a análise crítica da produção capitalista contemporânea na qual as
plataformas digitais são peças centrais.
Em
outras palavras, a ideia de um capitalismo industrial de plataforma, se assim
podemos sintetizar, não opera em sintonia com noções aparentemente semelhantes,
como por exemplo, as de “sociedade do cansaço”, “capitalismo de vigilância” ou
de “capitalismo cognitivo”. Pelo contrário, ela procura ressaltar os aspectos
centrais (e constantes) da produção capitalista mistificados por uma estrutura
tecnológica fetichizada.
A
indicação de um capitalismo industrial de plataforma, em vez de ser uma
tentativa de introduzir um novo conceito ou noção, visa, na prática, apontar o
que está sendo reproduzido, mesmo que de forma renovada. Com isso, a análise
das plataformas digitais ganha complexidade na medida em que se apresenta como
a parte mais visível de um longo e recentemente acelerado processo de externalização
dos custos produtivos que aprofunda a forma industrial da produção capitalista.
¨ Gilmar Mendes
suspende ações sobre 'pejotização' e cobra uniformização da Justiça do Trabalho
O
ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu nesta
segunda-feira (14) suspender a tramitação de todos os processos na Justiça
brasileira que discutam a legalidade da chamada “pejotização”, em que empresas
contratam prestadores de serviços como pessoa jurídica, evitando criar uma
relação de vínculo empregatício formal.
Play
Video
A
decisão foi tomada após o Supremo ter reconhecido, em votação terminada no
último sábado (12) (Tema 1389) a repercussão geral do
assunto.
Isso quer dizer que os ministros selecionaram um processo do tipo para que seu
desfecho sirva de parâmetro para todos os casos semelhantes, unificando o
entendimento da Justiça brasileira como um todo.
O tema
tem colocado o Supremo em rota de colisão com a Justiça Trabalhista ao menos
desde 2018, quando a Corte julgou ser inconstitucional uma súmula do Tribunal
Superior do Trabalho (TST) que barrava a
pejotização.
Na
ocasião, o Supremo decidiu, por maioria, liberar as empresas brasileiras,
privadas ou públicas, para terceirizarem até mesmo suas atividades fim, e não
só serviços de apoio como limpeza e vigilância. Desde então, esse entendimento
tem embasado milhares de decisões dos ministros da Corte para derrubar vínculos
empregatícios reconhecidos pela Justiça Trabalhista.
Para a
corrente majoritária do Supremo, a decisão sobre terceirização garante a
atualização das relações de trabalho para uma nova realidade laboral,
conferindo maior “liberdade de organização produtiva dos cidadãos” e validando
“diferentes formas de divisão do trabalho”, conforme escrito por Gilmar Mendes,
relator do tema na Corte.
Ao
reconhecer a repercussão geral do assunto, Mendes frisou o grande volume de
recursos que chegam ao Supremo todos os anos, do tipo chamado reclamação
constitucional, em que empresas buscam reverter o reconhecimento de vínculos
trabalhistas, alegando descumprimento da decisão da corte sobre a terceirização
irrestrita.
O
ministro deu como exemplo o primeiro semestre de 2024, período no qual foram
julgadas pelas duas turmas do Supremo mais de 460 reclamações “que envolviam
decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a
liberdade de organização produtiva”, descreveu Mendes. No mesmo período, foram
1.280 decisões monocráticas (individuais) sobre o assunto.
“Conforme
evidenciado, o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal
Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande
insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao
STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões
trabalhistas”, escreveu Mendes na decisão desta segunda.
O
recurso que servirá de paradigma sobre o assunto trata do reconhecimento de
vínculo empregatício entre um corretor de seguros franqueado e uma grande
seguradora, mas Mendes destacou que uma eventual tese de repercussão geral
deverá ter alcance amplo, considerando todas as modalidades de contratação de
trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços.
“É
fundamental abordar a controvérsia de maneira ampla, considerando todas as
modalidades de contratação civil/comercial. Isso inclui, por exemplo, contratos
com representantes comerciais, corretores de imóveis, advogados associados,
profissionais da saúde, artistas, profissionais da área de TI, motoboys,
entregadores, entre outros”, afirmou o ministro-relator.
Não há
data definida para que o Supremo paute o processo para julgamento pelo
plenário. Quando isso ocorrer, os ministros deverão decidir sobre três pontos
já pré-definidos:
1) Se a
Justiça do Trabalho é a única competente para julgar as causas em que se
discute a fraude no contrato civil de prestação de serviços;
2) Se é
legal que empresas contratem trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a
prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento
sobre a terceirização de atividade-fim.
3)
Definir se cabe ao empregado ou ao empregador o ônus de provar se um contrato
de prestação de serviços foi firmado com o objetivo de fraudar as relações
trabalhistas ou não.
Nos
últimos anos, o tema vem mobilizando em especial a advocacia trabalhistas. No
ano passado, diversas entidades, como diferentes seccionais da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), assinaram.
<><>
Uberização
O tema
da pejotização está relacionado também ao fenômeno chamado “uberização”, que
trata da prestação de serviços por autônomos via aplicativos para celular, como
é o caso dos motoristas da plataforma Uber, por exemplo.
Em
fevereiro do ano passado, o Supremo já havia reconhecido a repercussão geral
num recurso sobre
uberização,
no qual deve definir se há ou não vínculo de emprego formal entre motoristas de
aplicativos de transportes e as empresas responsáveis pelas plataformas (Tema
1291).
Fonte:
Por Henrique Amorim e Guilherme Henrique Guilherm, em A Terra é
Redonda/Agencia Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário