terça-feira, 15 de abril de 2025

O capitalismo é mais industrial do que nunca

A inserção das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) na produção e na vida cotidiana deu origem a teorias, sobretudo nos anos 1980 e 1990, que sugeriram que o “antigo” capitalismo industrial teria se transformado em uma sociedade pós-industrial. Nessa nova sociedade, as contradições inerentes ao capitalismo teriam se deslocado da produção e do trabalho para outras lugares da vida social.

Essa ideia está baseada em dois pressupostos equivocados: O primeiro deles considera a indústria como um simples sinônimo de fábrica, o que levou um conjunto de autores à conclusão de que o capitalismo teria superado a produção fabril e, portanto, trabalho e classe trabalhadora teriam perdido sua importância política e social.

O segundo equívoco está em uma compreensão limitada, e muito presente entre os economistas, de que industrial seria sinônimo de setor secundário. Com base na divisão por setores da economia, setor primário (agricultura), o secundário (indústria) e o terciário (serviços), a indústria seria restringida à produção fabril.

A perspectiva pós-industrial pode ser confrontada, primeiro, partindo das referências de Karl Marx sobre as formas iniciais de indústria capitalista no campo, o que discutiu no capítulo “A Assim Chamada Acumulação Primitiva” de O capital. Além disso, em outro momento dessa obra, quando Marx discute as metamorfoses e o ciclo do capital, vemos que o capital, considerado pelo autor em seu ciclo global como capital industrial, recebe essa denominação justamente para sinalizar que a forma industrial “abarca todo ramo da produção conduzido de modo capitalista.” (Marx, 1985, p. 41).

A partir dessa premissa conceitual, podemos compreender que indústria vai além de fábricas ou setores econômicos específicos: industrial é uma forma de produção. Mais ainda do que isso, industrial é a forma central da produção das e nas sociedades capitalistas.

A segunda confrontação contra a perspectiva pós-industrial pode ser feita quando se observa a presença das formas estruturais de organização da produção capitalista ao longo da história. Com base na divisão em classes sociais, a cooperação capitalista dá origem a forma histórica capitalista de organização do trabalho. É sob a cooperação capitalista que a divisão social do trabalho especificamente capitalista é organizada: baseada no trabalho social combinado sob o comando do capitalista.

As plataformas digitais tanto reproduzem quanto expandem essa forma. Nesse contexto, o processo de externalização produtiva se aprofunda, impulsionado pela introdução dessa nova força produtiva ou das plataformas digitais como uma “nova maquinaria”. O trabalhador coletivo, renovado sob os princípios da cooperação capitalista, reproduz a estrutura industrial-cooperativa enquanto tem aprofundada a subordinação ao capital, incorporando antigas e novas práticas de gestão do trabalho.

A exploração do trabalhador coletivo é fortalecida, com isso, à medida que o trabalho socialmente combinado é reorganizado no espaço e no tempo. O velho trabalho por peça assume atualmente uma nova forma (Casilli, 2020; Gray; Suri, 2017) em uma ampla gama de atividades: treinamento de sistemas de Inteligência Artificial (Le Ludec et al, 2023); moderação de conteúdo de mídia social; serviços de transporte e entrega de alimentos baseados em aplicativos (Amorim & Moda, 2021); e atividades como a geração de seguidores para influenciadores e produção de desinformação (Grohmann; Corpus Ong, 2024).

Essa radicalização da indústria é desenvolvida simultaneamente com a dispersão do trabalho (Harvey, 1992) em um duplo sentido: primeiro, há uma fragmentação mais profunda do trabalho (divisão em tarefas menores, microtarefas, padronização, scripts); e segundo, há uma manutenção do controle sobre o trabalhador coletivo por meio da internet, das TICs, dados e algoritmos como mecanismos para articular esta dispersão dos trabalhadores/as e de tarefas menores, configurando uma nova combinação entre trabalhos cada vez mais subdivididos.

A produção industrial contemporânea, com os processos de externalização da produção (terceirizações, deslocamentos globais de processos produtivos e, mais recentemente, com a plataformização) mantiveram o controle e centralizaram ainda mais o poder sobre o trabalho, mantendo relações hierárquicas com empresas subcontratadas e, agora, com trabalhadores de plataforma.

Impõem-se, com isso, demandas rigorosas tanto para a qualidade quanto para a quantidade de mercadorias produzidas ou mercadorias e passageiros entregues, muitas vezes com prazos mais curtos e menos previsíveis. Essa disposição permitiu às empresas contratantes a expansão de suas margens de lucro, ao mesmo tempo em que reduziu progressivamente a quantidade de trabalho realizado dentro de suas próprias instalações (Chan, Pun e Selden, 2019). 

Este processo reflete apenas a ponta do iceberg, a manifestação mais recente da acumulação flexível (Harvey, 1992), que é caracterizada pela flexibilização produtiva, aumento do desemprego e gestão do trabalho e dos trabalhadores por meio de mecanismos de participação e autoresponsabilização. Assim, a externalização ocorre em múltiplas dimensões: dentro das empresas, impactando as práticas de contratação, salários e horas de trabalho; e em suas relações externas, por meio da terceirização extensiva em níveis nacional e global (Tomasina, 2012).

O capitalismo industrial de plataforma é sustentado por estruturas que permanecem ‘ocultas’, escondidas debaixo de uma narrativa que posiciona as plataformas digitais e as tecnologias como únicas alternativas ao desenvolvimento social. A externalização dos processos produtivos é a forma fragmentária e anterior do que agora são conhecidas como plataformas digitais.

A combinação de tecnologias, mundialização financeira e políticas neoliberais permitiu que o capitalismo descentralizasse e dispersasse ainda mais a produção e o trabalho. Por meio desses mecanismos, o capital expandiu as práticas de externalização e corte de custos, impulsionadas pela plataformização do trabalho e pela erosão sistemática dos direitos trabalhistas.

Além disso, o capitalismo industrial de plataforma está se assentando sobre a divisão internacional do trabalho, que molda a organização socioeconômica específica de cada região e influencia sua relação com a (des)proteção trabalhista e com o grau de precariedade locais. Isso quer dizer que, embora as plataformas digitais estejam baseadas em modelos semelhantes em diversos locais do mundo, elas exploram a forma como os mercados de trabalho estão historicamente estruturados dentro de cada formação social, com suas fragilidades e desigualdades sociais específicas, resultando na criação de uma geopolítica de exploração do trabalho em plataformas (Abílio, Amorim, Grohmann, 2021).

Ao pressupor tais fragilidades e desigualdades sociais, o capitalismo industrial de plataforma cria a aparência de um autômato tecnológico eficaz e eficiente, a ponta do iceberg, mas que está assentada em uma base de desigualdades, fragilidades sociais e jurídicas que cristalizam processos históricos de informalização e precarização do trabalho.

Dito de forma simplificada: nenhum trabalhador se submeteria a transportar pessoas via aplicativo, de um lado ao outro, 14h por dia, se houvesse alternativas de trabalho e emprego mais dignas ou se as empresas de aplicativo, ao serem obrigadas legalmente, remunerassem esses trabalhadores por todo o tempo em que se encontram à disposição das plataformas. 

Como mencionamos, as plataformas digitais carregam as marcas estruturais dos processos de acumulação flexível e externalização, sendo uma síntese desses processos. À medida que a lógica da plataforma se espraia, ela renova relações sociais de exploração historicamente cristalizadas desde a colonização e a Revolução Industrial. Alguns, nessa relação, são responsáveis por fornecer as matérias-primas necessárias para construir as infraestruturas das plataformas; outros por fornecer dados para análise de Big Data; ou ainda por recrutar e organizar trabalhadores para microtarefas e treinamento de Inteligência Artificial.

Se há, nesse sentido, uma diversidade de capitalismos de plataforma no mundo, como propõem alguns autores, essa diversidade é moldada pela mesma diversidade que marcou a gênese e a formação da produção industrial capitalista.

Ao enfatizar o aspecto industrial do capitalismo contemporâneo, desejamos, portanto, nos distanciar do seleto grupo daqueles que apenas sublinham as novidades das transformações produtivas e secundarizam seus elementos de permanência. Em um contexto em que as transformações são cada vez mais céleres, enfatizar o que se reproduz no aparentemente novo parece ser um bom caminho para a análise crítica da produção capitalista contemporânea na qual as plataformas digitais são peças centrais.

Em outras palavras, a ideia de um capitalismo industrial de plataforma, se assim podemos sintetizar, não opera em sintonia com noções aparentemente semelhantes, como por exemplo, as de “sociedade do cansaço”, “capitalismo de vigilância” ou de “capitalismo cognitivo”. Pelo contrário, ela procura ressaltar os aspectos centrais (e constantes) da produção capitalista mistificados por uma estrutura tecnológica fetichizada.

A indicação de um capitalismo industrial de plataforma, em vez de ser uma tentativa de introduzir um novo conceito ou noção, visa, na prática, apontar o que está sendo reproduzido, mesmo que de forma renovada. Com isso, a análise das plataformas digitais ganha complexidade na medida em que se apresenta como a parte mais visível de um longo e recentemente acelerado processo de externalização dos custos produtivos que aprofunda a forma industrial da produção capitalista.

¨      Gilmar Mendes suspende ações sobre 'pejotização' e cobra uniformização da Justiça do Trabalho

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu nesta segunda-feira (14) suspender a tramitação de todos os processos na Justiça brasileira que discutam a legalidade da chamada “pejotização”, em que empresas contratam prestadores de serviços como pessoa jurídica, evitando criar uma relação de vínculo empregatício formal.  

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A decisão foi tomada após o Supremo ter reconhecido, em votação terminada no último sábado (12) (Tema 1389) a repercussão geral do assunto. Isso quer dizer que os ministros selecionaram um processo do tipo para que seu desfecho sirva de parâmetro para todos os casos semelhantes, unificando o entendimento da Justiça brasileira como um todo. 

O tema tem colocado o Supremo em rota de colisão com a Justiça Trabalhista ao menos desde 2018, quando a Corte julgou ser inconstitucional uma súmula do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que barrava a pejotização

Na ocasião, o Supremo decidiu, por maioria, liberar as empresas brasileiras, privadas ou públicas, para terceirizarem até mesmo suas atividades fim, e não só serviços de apoio como limpeza e vigilância. Desde então, esse entendimento tem embasado milhares de decisões dos ministros da Corte para derrubar vínculos empregatícios reconhecidos pela Justiça Trabalhista. 

Para a corrente majoritária do Supremo, a decisão sobre terceirização garante a atualização das relações de trabalho para uma nova realidade laboral, conferindo maior “liberdade de organização produtiva dos cidadãos” e validando “diferentes formas de divisão do trabalho”, conforme escrito por Gilmar Mendes, relator do tema na Corte. 

Ao reconhecer a repercussão geral do assunto, Mendes frisou o grande volume de recursos que chegam ao Supremo todos os anos, do tipo chamado reclamação constitucional, em que empresas buscam reverter o reconhecimento de vínculos trabalhistas, alegando descumprimento da decisão da corte sobre a terceirização irrestrita. 

O ministro deu como exemplo o primeiro semestre de 2024, período no qual foram julgadas pelas duas turmas do Supremo mais de 460 reclamações “que envolviam decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva”, descreveu Mendes. No mesmo período, foram 1.280 decisões monocráticas (individuais) sobre o assunto.

“Conforme evidenciado, o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas”, escreveu Mendes na decisão desta segunda. 

O recurso que servirá de paradigma sobre o assunto trata do reconhecimento de vínculo empregatício entre um corretor de seguros franqueado e uma grande seguradora, mas Mendes destacou que uma eventual tese de repercussão geral deverá ter alcance amplo, considerando todas as modalidades de contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços. 

“É fundamental abordar a controvérsia de maneira ampla, considerando todas as modalidades de contratação civil/comercial. Isso inclui, por exemplo, contratos com representantes comerciais, corretores de imóveis, advogados associados, profissionais da saúde, artistas, profissionais da área de TI, motoboys, entregadores, entre outros”, afirmou o ministro-relator. 

Não há data definida para que o Supremo paute o processo para julgamento pelo plenário. Quando isso ocorrer, os ministros deverão decidir sobre três pontos já pré-definidos: 

1) Se a Justiça do Trabalho é a única competente para julgar as causas em que se discute a fraude no contrato civil de prestação de serviços; 

2) Se é legal que empresas contratem trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento sobre a terceirização de atividade-fim. 

3) Definir se cabe ao empregado ou ao empregador o ônus de provar se um contrato de prestação de serviços foi firmado com o objetivo de fraudar as relações trabalhistas ou não. 

Nos últimos anos, o tema vem mobilizando em especial a advocacia trabalhistas. No ano passado, diversas entidades, como diferentes seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), assinaram.

<><> Uberização

O tema da pejotização está relacionado também ao fenômeno chamado “uberização”, que trata da prestação de serviços por autônomos via aplicativos para celular, como é o caso dos motoristas da plataforma Uber, por exemplo. 

Em fevereiro do ano passado, o Supremo já havia reconhecido a repercussão geral num recurso sobre uberização, no qual deve definir se há ou não vínculo de emprego formal entre motoristas de aplicativos de transportes e as empresas responsáveis pelas plataformas (Tema 1291).

 

Fonte: Por Henrique Amorim e Guilherme Henrique Guilherm, em A Terra é Redonda/Agencia Brasil

 

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