Segurança: Por que defender a perícia autônoma?
Morto aos 38 anos na sede do Departamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) em São Paulo, em 1975, o jornalista e cineasta Vladimir Herzog trazia no corpo lesões de tortura. Um laudo médico produzido à época, no entanto, as ignorava e apontava como causa da morte “asfixia mecânica por enforcamento” — alegando suicídio.
Não há registro de um eventual sulco duplo no pescoço de Vlado, sinal característico de enforcamento. O laudo ignorava a altura da vítima e descrevia roupas diferentes das citadas em um outro documento, de perícia da cena da morte. Esse segundo laudo era também sucinto, sem fotos que elucidassem o local da morte. O trabalho pericial submisso ao próprio DOI-CODI escondia a verdade evidente: Herzog havia sido torturado e assassinado pela ditadura militar-empresarial instaurada em 1964.
“A perícia criminal pode ser um instrumento de impunidade se não tiver garantias de independência”, disse Rogério Sotilli, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog (IVH), ao relembrar o caso do patrono da entidade nesta quarta-feira (23/4).
A fala ocorreu durante o lançamento do dossiê “Perícia e Direitos Humanos: recomendações para o aperfeiçoamento da Perícia Criminal“, em Brasília — a Ponte esteve no evento a convite do IVH, que produziu o relatório junto com a Fundação Friedrich Ebert Brasil (FES).
O dossiê reúne quatro estudos temáticos que traçam um panorama da perícia criminal no contexto do sistema de Justiça e dos direitos humanos no Brasil. As entidades responsáveis pelo diagnóstico defendem que os órgãos de perícia oficial — como os institutos médicos legais (IMLs) e de criminalística — sejam desvinculados da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Civil de cada estado, já que, 50 anos depois do assassinato de Herzog, a promoção da verdade e da justiça segue ameaçada pela falta de autonomia do trabalho pericial, especialmente em casos de violência policial e de Estado.
”É necessário aprofundar o debate e o próprio conceito de autonomia, entendendo que uma perícia realmente autônoma não é aquela que tem apenas orçamento e estrutura administrativa independente, mas aquela que, sobretudo, está comprometida com os direitos humanos e com a verdade factual”, acrescentou Rogério durante uma mesa que inaugurou o evento de lançamento. “Esse dossiê pode contribuir para a formulação de políticas públicas mais justas, técnicas e alinhadas ao direitos humanos”, emendou Jan Souverein, representante da FES no Brasil.
• Peritos cobram autonomia na PEC da Segurança Pública
A cerimônia ocorreu em um auditório no Palácio da Justiça, sede do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP), que esteve representado na mesa inaugural pela diretora do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), Isabel Seixas de Figueiredo. Ela disse haver disposição da pasta em receber o dossiê e listou iniciativas dos governos petistas para aprimorar o trabalho pericial, como a criação da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG) e da primeira norma de cadeia de custódia.
Ela ponderou, ainda assim, reconhecer que a autonomia da perícia exige maiores esforços do governo Lula (PT): a recente Proposta de Emenda à Constituição 37/2022, a chamada PEC da Segurança Pública, foi entregue pelo ministro Ricardo Lewandowski ao Senado sem qualquer menção a um trabalho pericial autônomo. Uma outra PEC anterior, a 76/2019, que pretendia fixar na Constituição Federal a polícia científica como um órgão de segurança pública, também segue escanteada.
“A gente deve, por mais que trabalhe e trabalhe, o governo sempre deve. Dentre as coisas que a gente deve, talvez esteja a questão da autonomia da perícia. Eu consigo dizer que, ainda que por uma série de questões que não vêm ao caso não tenhamos incluído isso na PEC que saiu daqui, diferententemente de governos anteriores, o MJSP tem agora um posicionamento claro a respeito da PEC 76″, disse.
Lideranças de entidades de classe de peritos também presentes à mesa cobraram maior empenho do governo. “Infelizmente, às vezes as ações concretas ficam distantes dos discursos”, disse Marcos Camargo, que preside a Associação de Peritos Criminais Federais (APCF). “É complicado a gente ter uma discussão de modernização da segurança pública quando um dos elementos essenciais não está contemplado. Não dá para falar em melhoria sem valorizar um ramo tão importante quanto a Polícia Científica. Ela que dá cientificidade ao processo penal, possibilita políticas de segurança pública baseadas em evidências, dá robustez ao nosso conteúdo probatório.”
A Ponte apurou que, ao final do passado, as entidades de peritos criminais levaram ao ministro Lewandowski um pedido de inclusão da autonomia dos órgãos de perícia na PEC da Segurança Pública, o que acabou ignorado, embora a pasta tenha indicado não se opor à proposta. Os peritos entendem que existe um lobby de delegados, aos quais interessaria manter a perícia debaixo do guarda-chuva da Polícia Civil ou como mera linha auxiliar da investigação policial.
Presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), Marcos Secco reforçou a cobrança: “Há barreiras corporativas. Soa no Congresso como mais uma categoria que quer ser constitucionalizada, como se não houvesse benefício algum à sociedade. Esse relatório veio em um momento oportuno para nos auxiliar no Congresso, para que a gente possa ter isso o mais rápido possível.” Como lembra Marcos, “já se passaram 50 anos [do caso Herzog], com os modos quase parecidos.” Também estiveram no lançamento do dossiê Hamilton Pereira da Silva, coordenador-geral de Memória e Verdade e de Apoio à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e Clédisson Santos Junior, secretário de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
• Autonomia de perícia é tema-chave de sistema de Justiça
A desvinculação da perícia das pastas de segurança pública foi uma das 49 recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) ao Estado brasileiro em 2014 na ocasião em que analisou o caso de Vladimir Herzog. Para as entidades à frente do dossiê, a complacência da perícia naquele caso apareceu em episódios contemporâneos, como o da chacina do Jacarezinho, de 2021, em que a Polícia Civil assassinou 27 pessoas em uma favela do Rio de Janeiro.
Circularam na ocasião imagens de policiais carregando corpos sem qualquer atenção à necessidade de exame pericial. As perícias do caso acabaram inconclusivas, com laudos cadavéricos sem fotografias, ao terem sido dificultadas pela própria polícia à qual estavam vinculadas e que era parte interessada.
“Nossos esforços em apresentar um diagnóstico da situação da Perícia Criminal no país derivam do papel central que o trabalho pericial desempenha na prevenção de condenações injustas, na busca pela elucidação de homicídios e de desaparecimentos forçados, sendo um tema-chave para a construção de um sistema de justiça democrático e transparente, que respeite os direitos humanos”, aponta o dossiê.
O primeiro dos estudos que compõem o diagnóstico trata da autonomia da perícia oficial de natureza criminal. O segundo é sobre a formação dos peritos no país. O terceiro é dedicado à importância da cadeia de custódia na coleta e apresentação de provas. Já um último capítulo do dossiê aborda a expansão da identificação genética e as implicações disso para os direitos humanos.
Os trabalhos estão disponíveis para consulta desde outubro do ano passado. Antes disso, em 2020, o IVH havia publicado o relatório “Políticas de Perícia Criminal na Garantia dos Direitos Humanos”, que considerou um primeiro esforço sobre o tema. Três anos depois, o instituto havia lançado, junto da FES, o relatório “Fortalecimento da Democracia: Monitoramento das Recomendações da Comissão Nacional da Verdade”, no qual relatou ter ocorrido pouco avanço da desvinculação da perícia das polícias.
As duas entidades também estiveram juntas, entre 2021 e 2022, no Grupo de Trabalho Perícia Criminal (GT), no âmbito do projeto Núcleo Monitora CNV. A partir disso é que surgiu o dossiê mais recente.
• STF abriu mão de perícia fora dos marcos policiais
A defesa de uma perícia criminal fora dos marcos policiais também ganhou projeção recente em meio à tramitação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, no Supremo Tribunal Federal (STF).
Integrantes do Fórum Popular de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (FPOPSEG) trataram do tema em um artigo publicado pela Ponte, no qual defendem um modelo de perícia não apenas autônomo, mas fora dos marcos policiais — em alguns estados do país, os peritos não ficam abaixo da Polícia Civil, mas estão integrados a uma Polícia Científica e ainda respondem à pasta de segurança.
No início de abril, o STF chegou, no entanto, a um voto de consenso que não desvinculou a perícia das polícias, mesmo em casos de mortes cometidas pelo Estado. A ordem foi para que, em ocorrências com óbitos, os próprios policiais terão de preservar a cena até a chegada de um delegado e dos peritos.
Ainda nessas ocasiões, o Ministério Público estadual (MP-RJ) terá de ser comunicado, conforme definir um protocolo próprio a ser elaborado junto à Secretaria de Segurança Pública do Rio (SSP-RJ). À Ponte, especialistas relataram que a decisão do STF não contemplava a necessidade de uma perícia autônoma.
• Moradores do Moinho foram fotografados pela PM sem consentimento
Moradores da favela do Moinho, submetidos a uma política de remoção do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) no centro de São Paulo, foram fotografados sem consentimento por policiais militares na última terça-feira (22/3), quando davam entrevista à imprensa no local. A Ponte registrou o momento em que um dos agentes enviou imagens dessas pessoas, contrárias à saída da comunidade nos moldes atuais, para um grupo no WhatsApp intitulado “Olho de Águia — Operações”.
O nome do grupo remete a um sistema de vigilância da Polícia Militar paulista (PM-SP) que, conforme revelou a Ponte em 2017, incluía o armazenamento de fotos de manifestantes. A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) se ela mantém esse tipo de banco de dados, mas não obteve retorno. A falta de transparência do programa é criticada por especialistas.
O programa “Olho de Águia”, de nome semelhante ao do grupo de WhatsApp flagrado agora pela Ponte, surgiu a partir da diretriz PM3-001/02/11, editada pela PM-SP em 2011. O documento era ocultado pelo governo até ser revelado de forma exclusiva pela Ponte. Nele, a iniciativa é descrita como um “conjunto de tecnologias dispostas em subsistemas que possibilitam a captação, transmissão, gravação e gerenciamento de imagens e áudios de interesse da segurança pública”.
Na prática, o programa dá sinal verde para que os policiais filmem e fotografem situações que não envolvam a ocorrência de crimes — como foi o caso no Moinho. Entre as condições para o acionamento estão descritas “incidentes que causem grandes transtornos à ordem pública”, “grandes concentrações e ou manifestações populares” e “em ocorrências que provoquem grande repercussão na mídia”.
A gravação de imagens e áudios se dá de três maneiras. Uma delas pelos “kits aéreos”, em que os equipamentos de filmagens são acoplados a helicópteros. Também são usadas viaturas que funcionam como base de apoio operacional que conseguem gravar e transmitir em tempo real imagens geradas pelo sistema. Já os “kits táticos” são compostos por câmeras e microfones a serem utilizados por policiais militares em serviço.
As imagens capturadas pelos policiais são enviadas ao Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) — que também é responsável pelas comunicações de rádio entre os agentes.
Há previsão também de armazenamento dessas imagens, já que a diretriz define que cabe ao Copom o “gerenciamento, difusão e arquivo das imagens e áudios gerados pelo Sistema”. Diferente de outros sistemas que reúnem dados relacionados a práticas de crimes, o Olho de Água armazena informações de qualquer pessoa, mesmo que ela não tenha cometido prática ilegal.
A reportagem questionou a SSP-SP se o sistema segue em funcionamento, mas não obteve retorno. Publicações feitas pela própria Polícia Militar, no entanto, demonstram que o sistema segue operacional.
No perfil do Copom no Instagram, há uma postagem de abril do ano passado em que há a apresentação do Olho de Águia. A mensagem que acompanha um vídeo diz que o sistema proporciona “monitoramento constante de pontos críticos, como eventos públicos, áreas de grande circulação e locais com histórico de crimes”. No vídeo, policiais aparecem usando drones e até uma câmera profissional.
O uso de drones no Olho de Águia já havia sido anunciado durante o governo de João Dória (PSDB). Em abril de 2019, o então governador prometeu a compra de 208 equipamentos para a implementação do sistema, que já contava com 250 itens.
Um texto do Portal do Governo que anunciava a compra corroborava o uso do sistema de forma indiscriminada ao dizer que ele poderia ser usado “monitoramento de grandes eventos, reintegrações de posse, controle de distúrbios civis e manifestações”.
<><> Diferença de tratamento
A diretriz não esclarece por quanto tempo os dados serão armazenados e nem a forma como isso acontece. Também não é dito quem tem acesso aos dados captados pelo Olho de Águia. O documento cita que pedidos para recuperação de imagens armazenadas pelo sistema devem ser analisados pelo Centro de Inteligência da Polícia Militar (CIPM). Já se as imagens forem requisitadas pela imprensa, a avaliação cabe ao Centro de Comunicação Social (CComSoc).
A Ponte solicitou as imagens feitas pelo policial militar flagrado pela reportagem e também outras que possam ter sido feitas durante a retirada de moradores do Moinho. Não houve retorno até a publicação desta reportagem.
A coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19 — organização não-governamental de direitos humanos que defende e promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação —, Raquel da Cruz Lima, observa no flagrante feito pela Ponte uma diferença no tratamento da polícia a tipos de manifestação. Mesmo autorizados a gravar quem participa de atos públicos, os agentes não tendem a ter esse tipo de comportamento quando os protestos são ligados à extrema-direita.
“Quando nós vimos outro tipo de ocupação de espaços públicos por pautas de extrema-direita, a conduta [policial] foi muito mais alinhada ao que se espera, que é a regra do respeito de manifestação, liberdade de expressão, a excepcionalidade de qualquer tipo de intervenção e a não criminalização de manifestantes pelo simples fato de se manifestar”, afirma Raquel.
No caso do Moinho, a comunidade estava cercada por policiais há quatro dias quando foi iniciada a remoção de moradores na última terça-feira (22/4). A demolição da última favela do Centro de São Paulo está nos planos do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) no contexto da mudança da sede do governo para aquela região.
Na sexta-feira (18/4), durante o feriado de Páscoa, os moradores foram alvo de uma ação da Polícia Militar. Segundo relatos, os agentes entraram na favela disparando bombas de gás contra pessoas que estavam em um bar. Os policiais também teriam dito que haveria ali uma reintegração de posse, gerando pânico na comunidade.
<><> Medo no Moinho
Localizada na região dos Campos Elísios, a favela do Moinho abriga cerca de 800 famílias, dispostas sobre um terreno da União — a comunidade hoje se espreme entre trilhos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), embaixo do Viaduto Engenheiro Orlando Murgel e na divisa com o bairro do Bom Retiro.
A remoção dos moradores se insere no contexto da alegada revitalização da região central pelo governador: a comunidade está a menos de um quilômetro da Praça Princesa Isabel, para onde Tarcísio pretende levar parte da sede administrativa do governo. A gestão Tarcísio diz que os moradores vivem sob risco e em condições insalubres. Além disso, ela pleiteia a cessão do terreno pela União, onde prevê construir um parque e uma estação de trem.
A Secretaria Nacional do Patrimônio (SPU), submetida ao Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos, emitiu uma nota técnica no último dia 14 de abril desautorizando demolições das casas e negando haver certeza de cessão do espaço ao Estado — um dos entraves ao processo é justamente a necessidade de ajuste no plano de reassentamento das famílias.
Apesar da indefinição, o governo Tarcísio deu início na terça-feira (22/4) às saídas de quem aceitou a proposta de remoção, sob presença da PM-SP no local. Por volta das 5h, moradores montaram uma estrutura na entrada da comunidade em protesto. Um helicóptero da Polícia Militar passou a sobrevoá-la no mesmo horário, despertando um clima de tensão.
Em negociação com a associação de moradores, o tenente-coronel Fábio Teodoro chegou a dizer que a presença da polícia e do CDHU se tratava de uma “ação humanitária”. Uma tropa também se manteve em solo próximo à entrada da favela, mas sem interagir com a população, enquanto técnicos da CDHU se colocaram à frente para negociar as primeiras saídas. Caminhões de mudança ali estacionados deram apoio aos trabalhos.
<><> Crescimento do vigilantismo
Sistemas como o Olho de Águia se disseminaram nos últimos anos, provocando o crescimento do vigilantismo. Estes, inclusive, são importantes para a falta de transparência do programa. Raquel da Cruz Lima diz que, além da integração de câmeras particulares a sistemas públicos, os modelos adotados têm cada vez mais optado pelo uso de reconhecimento facial — tecnologia que apresenta problemas ligados a garantias de direitos.
A pesquisadora lembra que os dados biométricos captados por esses sistemas são imutáveis. Disso decorre a necessidade ainda mais urgente de regras claras sobre a captura, tratamento e armazenamento dessas informações. Em São Paulo, a Smart Sampa e o Muralha Paulista adotam esse tipo de tecnologia, sem que haja transparência sobre as informações levantadas.
“E é por isso que aqui a preocupação com transparência, clareza das regras é tão grande. Não é pouca coisa não saber onde estão esses dados únicos. É muito importante saber onde eles estão e por quanto tempo vão ser armazenados, quem está cuidando disso, para quem isso pode ser passado, entre que autoridades circula”, afirma.
Fonte: Ponte Jornalismo

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