Étienne Balibar: Analisar o lugar do racismo
no nacionalismo é decisivo
As organizações racistas em geral recusam que
as denominem como tais, assumindo o nacionalismo e proclamando
a irredutibilidade das duas noções. Seria apenas uma tática de defesa ou o
sintoma de um medo das palavras inerente à atitude racista? Na realidade, os
discursos que falam da raça e da nação jamais estiveram muito distantes um do
outro, a não ser sob a forma de uma negação: assim, a presença de “imigrantes”
no solo nacional seria a causa de um “racismo antifrancês”. A própria oscilação
do vocabulário nos sugere, então, pelo menos em um Estado nacional que não tem
mais a obrigação de se constituir, que a organização do nacionalismo em
movimentos políticos particulares inevitavelmente encobre o racismo.
Pelo menos alguns historiadores se serviram
disso como prova para mostrar que esse — enquanto discurso teórico e como
fenômeno de massa — se desenvolve “no campo do nacionalismo” onipresente na
época moderna.1 Assim, o nacionalismo seria, se não a única causa
do racismo, de qualquer maneira a condição determinante de sua produção. Em
outras palavras, as explicações “econômicas” (devido a crises) ou
“psicológicas” (devido à ambivalência do sentimento de identidade pessoal e de
pertencimento coletivo) não teriam pertinência exceto à medida que
esclarecessem os pressupostos ou as repercussões do nacionalismo.
Essa tese, sem dúvida, confirma que o racismo
não tem nada a ver com a existência de “raças” biológicas objetivas.2 Ela mostra que o racismo é um produto histórico ou
cultural, escapando ao mesmo tempo do equívoco das explicações “culturalistas”
que, por outro viés, tendem também a fazer do racismo uma espécie de invariante
da natureza humana. Ela tem a vantagem de romper o círculo que remete a
psicologia do racismo a explicações que, na verdade, são exclusivamente
psicológicas. Enfim, ela preenche uma função crítica relativa às estratégias de
eufemização de outros historiadores que tomam muito cuidado para situar o racismo
fora do campo do nacionalismo enquanto tal, como se fosse possível defini-lo
sem nele incluir os movimentos racistas e, portanto, sem remontar às relações
sociais que os induzem e que são indissociáveis do nacionalismo contemporâneo
(particularmente, o imperialismo).3 Todavia, esse acúmulo de boas razões não implica
necessariamente que o racismo seja uma consequência inevitável do
nacionalismo nem a fortiori que, sem a existência de um racismo manifesto ou
latente, o próprio nacionalismo seria historicamente impossível.4 A falta de nitidez das
categorias e das articulações persiste. Não devemos temer pesquisar longamente
suas razões, que tornam inoperante qualquer “purismo” conceitual.
[…]
Por que é tão difícil definir o nacionalismo?
Em primeiro lugar, porque o conceito jamais funciona sozinho, mas sempre faz
parte de uma cadeia da qual ele é o elo central e, ao mesmo tempo, o elo mais
frágil. Essa cadeia é constantemente enriquecida (de acordo com as modalidades
que, aliás, variam de uma língua para outra) por novos termos intermediários ou
extremos: civismo, patriotismo, populismo, etnismo, etnocentrismo, xenofobia,
chauvinismo, imperialismo, jingoísmo… Desafio qualquer pessoa a fixar, de uma
vez por todas, de modo unívoco, esses diferenciais de significação. Mas me
parece que sua concepção geral pode ser interpretada de maneira muito simples.
No que diz respeito à relação nacionalismo-nação,
a ideia central contrasta uma “realidade”, a nação, com uma “ideologia”, o
nacionalismo. Todavia, essa relação é compreendida por uns e por outros de
diferentes maneiras, pois nela estão subentendidas várias questões obscuras:
será que a ideologia nacionalista é reflexo (necessário ou circunstancial) da
existência das nações? Ou são as nações que se constituem a partir de
ideologias nacionalistas (admitindo-se a possibilidade de que estas, ao
atingirem seu “objetivo”, sejam em seguida transformadas por ele)? Será que a
própria “nação” — e esta questão evidentemente não é independente das
anteriores — deve ser, antes de mais nada, considerada um “Estado” ou uma
“sociedade” (uma formação social)? No momento, deixemos de lado essas
discussões, assim como as variantes que podem delas surgir por meio da
introdução de termos como cidade, povo, nacionalidade…
No que se refere à relação entre nacionalismo
e racismo, a ideia central contrasta agora uma ideologia e uma política
“normais” (o nacionalismo) com uma ideologia e um comportamento “excessivos” (o
racismo), seja para opô-los, seja para fazer de um a verdade do outro. Aqui
também perguntas e outras diferenciações conceituais surgem imediatamente. Mais
que concentrar nossa reflexão no racismo, não seria conveniente privilegiar a
alternativa nacionalismo/imperialismo, mais “objetiva”? Mas esse confronto faz
emergirem outras possibilidades: por exemplo, que o próprio nacionalismo seja o
efeito ideológico-político do caráter imperialista das nações ou de sua
sobrevivência em uma época e um contexto imperialistas. Podemos também
complicar a cadeia nela introduzindo noções como fascismo e nazismo, com uma
rede de perguntas a eles relacionadas: tanto um quanto o outro são
nacionalismos? Imperialismos?
De fato, e é o que indicam todas essas
perguntas, a cadeia é inteiramente povoada por uma questão fundamental. Quando,
“em alguma parte” dessa cadeia histórico-política, entra em cena uma violência
intolerável, aparentemente “irracional”, onde é preciso
colocar essa entrada em cena? É preciso fazer um corte numa sequência em que,
mais uma vez, somente entram “realidades”? Ou junto aos conflitos
“ideológicos”? Aliás, será que é preciso considerar a violência como perversão
de uma situação normal, um desvio em relação à hipotética “linha reta” da
história humana, ou é preciso admitir que ela representa a verdade dos momentos
anteriores e, desse ponto de vista, desde o nacionalismo, e até mesmo desde a
existência de nações, o germe do racismo estaria no centro da política?
É evidente que, para todas essas questões,
existe, conforme o ponto de vista dos observadores e as situações que eles
refletem, uma enorme variedade de respostas. No entanto, considero que, em sua
própria dispersão, elas não fazem nada além de girar em torno de um mesmo
dilema: a noção de nacionalismo não para de se dividir. Há sempre
um “bom” e um “mau” nacionalismo: o que tende a construir um Estado ou uma
comunidade e o que tende a subjugar, a destruir; o que se refere aos direitos e
o que se refere ao poder; o que tolera os outros nacionalismos e até mesmo os
justifica, incluindo-os numa mesma perspectiva histórica (o grande sonho da
“primavera dos povos”), e o que os exclui radicalmente, numa perspectiva
imperialista e racista. O que concerne ao amor (até excessivo) e o que concerne
ao ódio. Em última análise, a divisão interna do nacionalismo parece tão
essencial e tão difícil de delimitar quanto a mudança de “morrer pela pátria”
para “matar por seu país”… A multiplicação de termos “vizinhos”, sinônimos ou
antônimos, é apenas a exteriorização disso. Acredito que ninguém escapou
formalmente dessa reinscrição do dilema no próprio conceito de nacionalismo (e,
quando foi expulsa da teoria, entrou de novo pela porta da prática), mas ela é
ainda mais visível na tradição liberal, o que provavelmente se explica pelo
equívoco muito profundo das relações do liberalismo e do nacionalismo há pelo
menos dois séculos.5 É preciso notar também que, ao avançar um pouco
essa discussão, as ideologias racistas podem, então, imitá-la e usá-la: não é
função de noções como a do “espaço vital” simplesmente suscitar a questão do
“lado bom” do imperialismo ou do racismo? E o neorracismo cuja proliferação
observamos hoje, por meio da antropologia “diferencialista” e da sociobiologia,
não se esforça constantemente para distinguir o que seria inevitável e, na
realidade, útil (certa “xenofobia” que incita os grupos a defenderem seu “território”,
sua “identidade cultural”, para preservar entre eles a “boa distância”) do que
seria inútil e nocivo em si (a violência direta, a passagem ao ato), ainda que
inevitável quando não se conhecem as exigências elementares da etnicidade?
Como sair desse círculo? Não basta demandar,
como alguns analistas nos últimos tempos, a recusa dos julgamentos de valor, ou
seja, a suspensão do julgamento sobre as consequências do nacionalismo em
conjunturas diferentes6 ou, ainda, considerar o próprio nacionalismo
estritamente como efeito ideológico do processo “objetivo” de constituição das
nações (e dos Estados-nações).7 Na verdade, a ambivalência dos efeitos faz parte da
própria história de todos os nacionalismos, e é precisamente isso que se deve
explicar. Desse ponto de vista, a análise do lugar do racismo no nacionalismo é
decisiva: mesmo que o racismo não seja visível da mesma maneira em todos os
nacionalismos ou em todos os momentos da história, ele sempre representa, no
entanto, uma tendência necessária a sua constituição. Em última análise, essa
imbricação remete às circunstâncias nas quais os Estados-nações, estabelecidos
em territórios historicamente contestados, se esforçaram para
controlar os movimentos de população e para a própria produção
do “povo” como comunidade política superior às divisões de classes.
¨
O real sentido da
política revolucionária negra. Por Marcos Queiroz
O século XX foi celeiro da práxis
revolucionária anticolonial, em que as lutas por libertação africana se
associavam ao antirracismo nas Américas e às reivindicações de soberania
política de outros povos ao redor do mundo. No entanto, a repressão
sistematizada pelas potências ocidentais, o assassinato de lideranças, a
capitulação de políticos do Sul global e a emergência da ordem neoliberal
enterraram o sopro transformador vindo da Conferência de Bandung em 1955.
Para concretizar sua vitória, a lógica neocolonial do capital silenciou essa
tradição rebelde, seja pelo apagamento das suas bases marxistas, seja pela bajulação
da descolonização de gabinete, descolada do destino das maiorias planetárias.
Em África Vermelha, Kevin
Ochieng Okoth vasculha as ruínas dessa experiência em busca de
alternativas teóricas e organizativas para construir o futuro. Em um primeiro
momento, é apresentado um panorama do deslocamento neoliberal da crítica ao
colonialismo. As teorizações da decolonialidade, do afropessimismo e de certo
pensamento negro produzidas nas instituições do Atlântico Norte são analisadas
em seu pano de fundo comum: o antiuniversalismo, as dificuldades em tecer laços
de solidariedade, a identitarização romântica dos subalternizados e a
transformação da ação política no ato de “retirar-se” do combate em detrimento
da organização programática e coletiva. Ao secundarizar a crítica da economia
política, o novo campo da descolonização priorizou as questões do “saber” e da
moral. Os vínculos entre soberania e liberdade saem de cena para dar lugar às
disputas por museus, postos acadêmicos, bolsas de pesquisa e fontes de
financiamento — de preferência, nas metrópoles imperiais.
Para enfrentar o rebaixamento teórico e
estratégico, Kevin resgata a tradição socialista e comunista da libertação
nacional africana. Amílcar Cabral, Andrée Blouin, Mario Pinto de Andrade,
Maryse Condé, Eduadro Mondlane e outros formam um legado afromarxista que nos
ajuda a lidar com os becos sem saída contemporâneos, em especial quando a
crítica anticolonial é reduzida a reflexões solipsistas, atrativas a um mercado
editorial mais preocupado com os lucros da “pedagogia branca” do que com a
destruição dos fundamentos racistas do capitalismo. Num momento em que o
antirracismo se encontra em uma encruzilhada entre sua acomodação liberal e a
perseguição aberta do fascismo, o passado-presente da África
Vermelha ilumina os reais sentidos da política revolucionária negra —
e por que ela ainda é e deve ser temida pelo imperialismo.
Fonte: Blog da Boitempo

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