sábado, 26 de abril de 2025

Fraude no INSS: ONG do agro faturou com aposentadoria de indígenas

Uma das organizações envolvidas na fraude do INSS, esquema bilionário que descontou dinheiro indevidamente de aposentados no Brasil, é uma ONG que atua com indígenas – mas é presidida por um proeminente pecuarista ligado ao centrão. 

O empresário mineiro Carlos Roberto Ferreira Lopes é dono de uma empresa de melhoramento genético de gado e uma holding nos EUA, e tem na família também uma empresa de mineração. 

Mas a organização que preside, a Conafer, Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares do Brasil, foi fundada em 2011 com a pretensão de representar agricultores familiares sem “ideologias políticas”.

Hoje, essa entidade está presente em terras indígenas de todas as regiões do país, bancando atividades sociais e movimentos locais. A Conafer é um dos alvos da Operação Sem Desconto, deflagrada pela Polícia Federal e pela Controladoria-Geral da União em abril e que levou ao afastamento do diretor do Instituto Nacional de Seguridade Social, o INSS, Alessandro Stefanutto. 

A entidade e outras dez organizações investigadas eram parceiras do INSS com a justificativa de ajudar mais pessoas a acessar benefícios previdenciários. 

Com os convênios, podiam descontar valores diretamente dos benefícios de aposentados e pensionistas — muitas vezes sem autorização — sob pretexto de oferecer serviços como assistência jurídica e odontológica. O esquema começou em 2016, cresceu após uma normativa de 2022 e gerou R$ 6,3 bilhões em descontos sobre 6 milhões de beneficiários. 

Além do presidente do INSS, outros quatro servidores do Instituto foram afastados, além de um policial federal. Diante da investigação, o INSS suspendeu temporariamente os acordos com essas entidades e a autorização de novos descontos.

Em nota, o INSS informou que aposentados e pensionistas que tiveram desconto indevido terão o dinheiro devolvido na próxima folha de pagamento. “Esses descontos vinham ocorrendo em governos anteriores. Na atual gestão, ações imediatas foram tomadas”, afirmou o órgão.

A Conafer vem se expandindo nos territórios indígenas pelo menos desde 2018. Diferentemente de setores mais tradicionais do agro, a Conafer demonstra alinhamento com pautas dos povos indígenas, como na defesa do fim do marco temporal para assegurar a demarcação de terras dos povos originários. Mas, de acordo com líderes indígenas ouvidos pelo Intercept Brasil, o livre acesso da Conafer a comunidades é movido pelo poder financeiro.

“O modo operante deles é oferecer caminhonete locada e salário para as lideranças”, me disse um cacique do povo Pataxó, na Bahia, na condição de anonimato por temer represálias. 

As ações da Conafer em terras indígenas vão de entregas de cestas básicas a organização de campeonatos de futebol, passando pelo patrocínio de assembleias. Nas redes sociais, a entidade coleciona vídeos de indígenas declarando apoio à Conafer.

Em paralelo às alianças com lideranças indígenas, Carlos Lopes viu seus negócios pessoais prosperarem. Ele administra sua empresa de melhoramento genético de gado, a Concepto Vet, e seu filho toca uma empresa de mineração e agropecuária em Minas Gerais, a Lagoa Alta.

Nos últimos anos, Lopes ainda fundou uma holding nos Estados Unidos chamada Farmlands (terras agrícolas, na tradução livre) e a Jaguar, uma empresa de produtos artesanais indígenas, que tem uma unidade no Aeroporto Internacional de Brasília desde 2024 – e que já planeja expandir para os aeroportos de Madrid e Lisboa. 

·        Milhões de descontos no INSS – e milhares de reclamações por isso

A Conafer tem aval do próprio governo federal para fazer ações dentro dos territórios de promoção de aposentadorias, como uma espécie de assessoria para os indígenas conseguirem o benefício. 

Em 2022, por exemplo, a Conafer ajudou a organizar um mutirão com uma Unidade Móvel Flutuante da Previdência Social para comunidades indígenas na região de Barcelos, no Amazonas. 

Pelo menos parte do dinheiro da entidade vem dos descontos de aposentadorias dos associados. Para se ter uma noção, só em 2023 a Conafer recebeu R$ 202,3 milhões a partir de valores descontados de aposentadorias do INSS, segundo relatório do Tribunal de Contas da União, o TCU. 

O relatório chama a atenção para o importante aumento de associados em poucos anos, passando de 231 mil em 2021 para 641 mil em dois anos. Cada associado representa um desconto e um ganho a mais na conta da organização.

O INSS realiza acordos de cooperação técnica com entidades da sociedade civil desde 2014 com o objetivo de aumentar o acesso a benefícios previdenciários. A Conafer tem um acordo firmado com o órgão desde 2021, no governo Bolsonaro. A parceria começou a ser negociada em 2017, no governo Michel Temer, do MDB, e segue ativa no governo Lula.

O acordo permite o desconto direto na aposentadoria de associados da entidade, desde que autorizado pelo aposentado. Mas não é isso que vem acontecendo, de acordo com as investigações da Polícia Federal e processos judiciais consultados pelo Intercept.

A Conafer é a organização que mais recebe reclamações por descontos sem autorização, segundo auditoria-geral do INSS do ano passado.

O levantamento do TCU mostra ainda que, em apenas um ano, foram registradas 3.726 reclamações contra a Conafer no site Reclame Aqui, sendo que a maioria (67,9%) é por cobrança indevida. A PF investiga a possibilidade de falsificação de documentos de filiação e autorização.

A relação entre o governo federal e a Conafer não se limita ao INSS. Em dezembro de 2024, o Ministério das Comunicações, então chefiado pelo ministro Juscelino Filho, do União Brasil, fechou um acordo de cooperação com a Conafer para realizar cursos profissionalizantes com trabalhadores da agricultura – o que, na visão da Conafer, inclui os indígenas. 

Só no ano passado, a Conafer conseguiu 31 reuniões oficiais com representantes do governo federal, a maioria com os ministérios da Agricultura e das Comunicações. Também no final do ano passado, a Conafer assinou um protocolo de intenções com o Incra chamado “Aliança Pelo Campos”.

·        Entidades não reconhecem Lopes como liderança indígena

Carlos Roberto Ferreira Lopes se diz filho e neto de indígenas. Em eventos, costuma usar cocar e adereços indígenas. Embora não tenha nenhuma relação com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a APIB, o empresário, segundo indígenas, costuma usar as alianças da Conafer com lideranças para ele mesmo se colocar como uma.

“Todo apoio à Conafer fica condicionado ao compromisso de divulgação da Conafer e de associação a ela”, explicou ao Intercept um indigenista que vive com o povo Kaingang, no Rio Grande do Sul, onde a organização também está presente – seu nome não será divulgado porque ele teme represálias.

O presidente da Conafer chegou a ser convocado como representante dos indígenas para participar de uma audiência no Senado sobre a concessão da Rodovia BR-163 no Pará. Lopes ainda participou de outra reunião na Funai, fazendo reivindicações em nome dos indígenas. 

Na cerimônia em que Lopes recebeu o título de cidadania sergipana na Assembleia Legislativa de Sergipe, o deputado estadual Luiz Fonseca, do PP, disse que o presidente da Conafer é “reconhecido como liderança indígena de Xingu, Yanomami e Pindorama”. 

A Conafer defende uma visão mais ampla do pequeno agricultor, incluindo indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Dessa maneira, a organização tem uma possibilidade maior de associados. Apesar do nome de “confederação”, a entidade não é ligada a sindicatos, a CUT ou à Contag.

Um dos principais aliados do presidente da Conafer, a quem ele chama de “amigo e orientador”, é o senador Chico Rodrigues, do PSB de Roraima. 

O parlamentar já foi flagrado com dinheiro na cueca em uma operação da PF e defendeu o garimpo em terras indígenas. Além disso, teve um avião de sua propriedade flagrado circulando em garimpo ilegal em terra Yanomami, em 2018. 

Nada disso foi empecilho para, no ano passado, Rodrigues e Lopes lançarem juntos uma frente parlamentar mista em defesa do empreendedorismo rural.

Lopes defende uma autonomia dos indígenas em explorar seu próprio território, sem explicitar claramente em quais modalidades. Em sua fala no lançamento da frente parlamentar, ele associa seu programa de melhoramento genético com o empreendedorismo rural e cita os indígenas como um público-alvo.

“Fizemos o maior programa de melhoramento genético do mundo, acontecendo simultaneamente em 4.500 municípios. Hoje, com mais de 37 mil bezerros nascidos, com mais de 92 mil vacas prenhas confirmadas. Esses animais irão empreender essas propriedades. Empreender é criativizar e realizar. Hoje temos povos indígenas que têm a total capacidade de se assumir e se representar economicamente no mundo”, declarou.

Em fevereiro deste ano, uma ex-funcionária da Conafer, Maria Cícera Salustriano Caeteano, da aldeia Xukuru do Ororuba, lançou a Embaixada dos Povos Indígenas, em Brasília. 

A entidade se coloca como uma organização de defesa dos indígenas em contraponto à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a APIB, que tem como uma de suas fundadoras a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. 

Na ocasião do lançamento da Embaixada, a APIB divulgou uma nota informando não ter relação com a nova organização: “Não temos nenhum vínculo com a mesma, nem de seus reais propósitos”.

O Intercept entrou em contato com a Conafer e com o senador Chico Rodrigues, mas não houve um retorno 

¨      Fraude no INSS: meu nome foi para gerar manchete com "irmão do Lula", diz Frei Chico

Vice-presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi), José Ferreira da Silva, conhecido como Frei Chico, afirmou em entrevista à TVT nesta sexta-feira (25) que o nome da entidade foi incluída na Operação Sem Desconto, desencadeada nesta quarta-feira (23) a partir de uma investigação da Polícia Federal (PF) para combater um esquema nacional de descontos associativos não autorizados em aposentadorias e pensões, para gerar manchetes na mídia liberal com "irmão de Lula".

"O que existe são denúncias feitas a partir de 2017. Em 2019 liberaram para que o INSS aceitasse esse tipo de entidade [outras associações] e a gente já tinha denunciado. Agora colocaram os principais, que somos nós e a Contag. E não somos nós que estamos sendo investigados. Agora meu caso é simplesmente pelo fato do Lula ser meu irmão. Eu sou irmão do Lula. Ai eu apareço lá e não tenho nada de investigado, nosso sindicato não está nesse rolo. Alguém está interessado nisso. Vamos para luta", afirmou Frei Chico, responsável por levar o irmão ao movimento sindical, ainda nos anos 1970, que o alçou à carreira política.

"Nós não temos nada com isso. Ai você pega uma manchete - acho que foi a CNN -, o cara faz uma puta matéria ai quando chega lá embaixo, coloca no rodapé: 'Frei Chico não é investigado'. Então porque fez a matéria?", emendou.

O sindicalista ainda vê uma conotação eleitoreira, antecipando a disputa presidencial de 2026 e faz um alerta à família.

"O Lula é a pessoa mais importante para o futuro do país em termos de eleição para Presidente da República. Então, todos os parentes vão ter que se preparar pois vão ter denúncias em alguns setores da imprensa. Há maldade nisso, há sacanagem", disparou.

Frei Chico ainda lembrou que foi o próprio Sindinapi quem pediu, por diversas vezes, investigações sobre o que estaria acontecendo no INSS, mas foi ignorado pelos governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).

"Nós estamos denunciando desde 2017, 2018, 2019: tem coisa acontecendo no INSS. E só foi apurado o ano passado, esse governo que está apurando. Tem um monte de picaretagem ai e a Polícia Federal tem que investigar. O que fico chateado é que nos colocaram nesse meio", disse.

<><> Desmonte

Segundo a PF, o esquema começou em 2019 e operou, em grande parte, durante o governo Jair Bolsonaro (PL) - que tinha como "super" ministro da Justiça, o ex-juiz Sergio Moro (União-PR).

Em entrevista coletiva, o Controlador-Geral da União (CGU), Vinícius Carvalho, destacou que as fraudes vinham desde 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, e começaram a ser investigadas em 2023, primeiro ano do governo Lula.

Outro fator extremamente importante é que 9 das 11 associações investigadas foram criadas após a reforma trabalhista feita pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), que desmontou a estrutura sindical e permitiu a pulverização de entidades representativas sem compromisso algum com os trabalhadores.

Na prática, com o fim da contribuição sindical, que era direcionada para um sindicato representativo de determinada categoria de trabalhador, a nova legislação deu aval para criação de "concorrentes" na esfera sindical, fazendo com que oportunistas vissem a representação trabalhista como negócio.

Das 11 associações investigadas, duas foram criadas em 2017, logo após a reforma de Temer, e outras 7 durante o governo Jair Bolsonaro (PL), depois que o então super ministro da economia, Paulo Guedes, liberou a farra dos empréstimos consignados vinculados às aposentadorias e pensões, em 2020, na esteira da Reforma da Previdência.

Apenas duas foram criadas antes da reforma e são vinculadas ao movimento sindical: a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), fundada em 1963, e o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi), ligado à Força Sindical.

"Desde o primeiro momento soltamos uma nota apoiando a ação da PF pois há um bom tempo já falávamos disso e queríamos que tomassem providências. Houve essa ação, o Sindnapi, em nenhum momento, recebeu ou foi investigado pela PF, pois não houve apreensão de documentos, nós temos mais de 80 sedes pelo país e não foram em nenhuma subsede, não apreenderam nenhum material nosso. Então, não podemos dizer que fomos alvo de uma operação", afirmou Milton Cavalo, presidente do sindicato, ao Fórum Onze e Meia.

Cavalo ainda levanta suspeitas sobre organizações que foram criadas na esteira das medidas de Temer e de Bolsonaro.

"É difícil compreender, e nós já estamos há 25 anos trabalhando, associações que se dizem em defesa de aposentados que em 3 meses aumentou em 300 mil, 600 mil, o número de associados. A gente sabe o quanto é difícil aumentar o número de associados", afirmou.

 

Fonte: Por Thalys Alcântara, em The Intercept/Fórum

 

Nenhum comentário: