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um futuro ancestral para a Amazônia
A
crença de que pode haver equilíbrio em uma monocultura é uma falácia. Onde não
há diversidade, não há movimento. E onde não há movimento, não há renovação,
nem evolução. A monocultura é monocórdica, repetitiva e tenta impor um passo
único e autoritário à natureza, seguindo uma lógica rígida, patriarcal, que
sufoca a pluralidade da vida. Ela parece viva porque produz toneladas de grãos
quase idênticos, mas, na verdade, impede a potência e bem-viver em sua forma
mais ampla. São sementes uniformizadas em laboratório, com pouca ou nenhuma
diversidade genética, que silenciam os ciclos da terra e cortam as relações
entre diferentes espécies. São essas interações que mantêm o equilíbrio dos
ecossistemas. A vida não se mede pelo volume da reprodução, mas pela fluidez da
teia de conexões e pela singularidade das trocas. Quando uma única espécie
domina, movida por uma lógica de controle e egoísmo, o solo empobrece, os
animais desaparecem, as águas secam, os ciclos se rompem. É isso que se pode
entender por paralisar a vida: impedir que ela se renove, se transforme, se
expresse em sua forma natural.
Essa
lógica de uniformidade se espalha para além do campo. Ela se infiltra nas
cidades, nas redes sociais, nas músicas, nas séries, nas escolas, quando tentam
impor uma única forma de ser, de pensar, de viver. É a monocultura das ideias,
marcada pela monotonia dos discursos, pelo monopólio das verdades e pela
monocracia do saber. A ilusão de uma cultura dominante (sustentada, em muitos
grupos, por uma elite autoeleita que se julga dona da verdade, quase sempre
composta por homens) é tão perigosa quanto qualquer lavoura de clones. Daí para
a ideia de um povo escolhido é um passo. E do povo escolhido para guerras,
exclusões e destruições, outro passo ainda menor. É uma fantasia alimentada por
uma amnésia biocultural. Um esquecimento que corta os fios da memória
ancestral, empobrece o presente e projeta um futuro sem chão, sem raízes e sem
sustentação (Toledo, 2015).
O ego
virou política de Estado. Como se o planeta fosse uma extensão do próprio
umbigo. Como se governar fosse acumular, competir, ganhar, explorar. O bem
comum cede lugar à vantagem privada. A escuta cede lugar ao comando, à
imposição. Patriarcado na essência mais grosseira. E tudo que é outro
(floresta, rio, povo, cultura) vira obstáculo a ser removido. Não há nós. Só
ele. Monotom.
É um
raciocínio viciado no individualismo, na vantagem pessoal, no lucro e na
competição. Um narcisismo disfarçado, que transforma vaidade em uma obstinação
por crescimento contínuo, em produção espelhada em escala, em consumo
inconsciente e inconsequente. Um acúmulo doentio que incha bolsos e estômagos
no mesmo ritmo em que esvazia o prato da maioria. Um estado mórbido do ego no
centro de um mundo cercado de carência, escassez e destruição. Exploração
humana, desperdício de recursos e colapso da natureza.
Às
vezes, é preciso escrever o óbvio: o problema da monocultura é a monocultura. A
falta de diversidade desequilibra o sistema inteiro.
Florestas
funcionam como um corpo vivo. Cada espécie tem uma função: algumas protegem o
solo, outras alimentam os animais, outras espalham sementes ou chamam a chuva.
É dessa troca que nasce o equilíbrio. A vida não acontece sozinha: uma planta
depende da outra, como quem dança em roda. O nome técnico disso é
complementaridade funcional. Quer dizer que onde há diversidade, há cooperação.
E onde há cooperação, há força. Mas quando essa diversidade desaparece (por
monoculturas, espécies invasoras, venenos, fragmentação, poluição etc), o
sistema perde sua harmonia. A floresta se torna frágil, como um corpo que perde
seus órgãos aos poucos (Lapola, 2023). A vida perde seu compasso. E tudo começa
a desabar. O ponto de não-retorno.
Agora,
embalado em discursos de solução climática, o agronegócio das monoculturas
promete sequestrar milhões de toneladas de moléculas invisíveis do ar. Parece
brincadeira, mas o mundo acredita. Faria isso, supostamente, capturando mais do
que a própria indústria poluidora subestima emitir. Para tanto, manipula
cálculos que permitem que o pagamento seja feito por florestas que já existem,
ou por plantações de árvores clonadas em laboratório, voltadas para a produção
de papel e celulose, no lugar de restabelecer florestas de verdade.
Mesmo
roucos, cientistas de saberes diversos, vindos de todos os cantos e línguas,
continuam alertando em linda sinfonia: a harmonia climática vai muito além do
carbono estocado no solo ou em quaisquer novas plantações de eucalipto. O
equilíbrio está na manutenção da floresta tropical viva em toda a sua
complexidade.
• Eco, eco, eco
A
floresta não é um conjunto de árvores da mesma espécie que guarda carbono. A
floresta é um ecossistema. Ela é casa de milhares de espécies da flora e da
fauna, mas também abriga uma microvida invisível que sustenta tudo: fungos,
bactérias, protozoários e pequenos invertebrados que vivem no solo e garantem a
fertilidade da terra. É dessa rede subterrânea, silenciosa e pulsante, que a
floresta tira seu fôlego mais profundo. Ela faz chover, modula ventos, remove
gases tóxicos e mantém o planeta respirando. Como explica o climatologista
Antonio Donato Nobre, a Amazônia transpira diariamente até 20 bilhões de
toneladas de vapor d’água, um volume suado muito maior que o do próprio rio
Amazonas. Esse “rio voador” é possível graças a superpoderes da floresta nativa:
(1) o vapor d’água emitido pelas folhas durante a transpiração e a
fotossíntese, que é muito maior que a liberação de oxigênio ou o sequestro de
carbono; (2) os compostos orgânicos voláteis (VOCS) liberados por árvores
biodiversas, que atuam como núcleos de condensação de nuvens. Esses “pós de
pirlimpimpim”, como Nobre chama, são condensadores de nuvens e ajudam a formar
chuva e resfriam a atmosfera; (3) esse sistema reduz a pressão atmosférica
sobre a floresta e suga a umidade do oceano para dentro do continente, num
fenômeno conhecido como bomba biótica de umidade. Essa engrenagem invisível que
mantém o ciclo hidrológico pulsando sobre a Amazônia e além (Nobre, 2014, 2015,
2016… 2025!).
Já as
monoculturas são versões empobrecidas da vida. Repetem uma única espécie, sem
conversa. Emitindo pouco “pó de pirlimpimpim”, essas plantações quase não
promovem a formação de nuvens, não impulsionam a bomba biótica e, assim,
enfraquecem os rios voadores, quebrando o ciclo das águas. Resultado: mais
seca, mais mudanças climáticas. Com gosto bastante duvidoso, a indústria da
silvicultura chama essas monoculturas de árvores de “floresta pura” — que nome
sombrio! Mas não passam de simulacros: imagens estáticas vestidas de único
verde, que não abrigam, não trocam, não devolvem. Coincidência nenhuma, essas
caricaturas de floresta estão sob os domínios do Ministério da Agricultura, não
do Meio Ambiente.
E, ao
contrário do que prometem, tampouco aliviam a pressão sobre as florestas
nativas. Muitas vezes, fazem o oposto: intensificam o desmatamento e a
degradação. A ciência tem mostrado (e segue mostrando) que monoculturas secam o
solo, empobrecem os ecossistemas e não substituem o que é vivo por inteiro.
Este mês, o IPAM divulgou um estudo que escancara a gravidade do erro:
transformar floresta em monocultura empobrece o solo mais do que queimá-la.
Publicado na Science of the Total Environment, o artigo mostra que essas áreas
têm três vezes menos carbono do que florestas intactas; e até duas vezes menos
que florestas que queimam todos os anos (Naval, 2025). O solo perde vida,
fertilidade e capacidade de capturar carbono ao entrar no regime repetitivo das
monoculturas.
Para
entender a escala das monoculturas no Brasil: a área plantada de soja chegou a
47,36 milhões de hectares em 2024/25, quase metade do total de cereais,
leguminosas e oleaginosas do país. A área plantada de eucalipto alcançou 7,6
milhões de hectares em 2023, representando 78,1% das florestas plantadas no
Brasil. Em comparação, o país tem cerca de 58,2 milhões de hectares de terras
aráveis.
Esse é
o ponto cego de muitos projetos de “economia verde” em larga escala: plantar
grãos ou árvores da mesma espécie não é recuperação ambiental. Mas o estudo
também aponta caminhos. A agricultura regenerativa pode conter essa perda e
reverter o empobrecimento do solo.
• Agrofloresta é o futuro. E o futuro é
ancestral
Como
diz Nêgo Bispo: “Por que usam a palavra agroecologia e não usam agricultura
quilombola, ou roça indígena, ou agricultura de aldeia, de quebradeira de coco?
A academia vive de transformar o saber (dos povos tradicionais) em mercadoria.
Fomos nós que inventamos isso. Daí mudam o nome, chamam de agroecologia, e
ficam nos vendendo curso de agroecologia!”. E ele está certo.
No
coração da Amazônia, seria natural imaginar uma formação em Engenharia
Florestal que reconhecesse os mestres da floresta. Mas o saber indígena não se
deixa capturar por títulos individuais. O saber é aldeia. É coletivo. É bio.
Bio
porque nasce do chão, da escuta, da prática.
Bio
porque se compartilha, não se acumula.
Bio
porque é vida em relação.
Mas a
universidade exige CPF para reconhecer o saber. Pede diploma para ouvir quem
aprendeu na floresta. Quer enquadrar a memória viva em formulário digital. E o
que não se adapta, vira invisível.
A
crítica de Nêgo Bispo escancara essa contradição: o saber ancestral, que
sustenta práticas sustentáveis há séculos, é muitas vezes ignorado ou
apropriado pela academia. E isso não é um lapso. É o sintoma de um sistema que
separa o conhecimento da vida, e transforma tudo em mercadoria. Bill não é bio.
Bill não é saber com raiz, saber que pulsa junto com o território.
Hoje, a
agroecologia é mais que uma técnica. É ciência, prática e movimento. Um corpo
coletivo que resiste ao sistema dos ultraprocessados. Que combate a doença dos
corpos e dos territórios. Que cultiva comida de verdade e rompe com o ciclo do
veneno, da dependência e da mentira embalada a vácuo.
E os
Sistemas Agroflorestais, os chamados SAFs? Podemos chamá-los de florestas de
alimento. De sistemas vivos. De bioarquiteturas do cuidado. Segundo a Rede
Brasileira Agroflorestal, os SAFs combinam, de forma intencional, espécies
florestais com cultivos agrícolas, com ou sem a presença de animais, em uma
mesma área. É o manejo da convivência. O cultivo da cooperação. O desenho de
ecossistemas produtivos que oferecem bens e serviços sem esgotar o solo, a água
ou a alma da terra.
• Milênios de manejo: a floresta foi sendo
cultivada, não descoberta
A
floresta que hoje chamamos de Amazônia nunca foi intocada. Foi tocada, sim —
com sabedoria, com intenção, com cuidado. Arqueólogos que estudam as ocupações
humanas da região mostram que, desde muito antes da invasão europeia, a
floresta era pomar, farmácia, escola. Uma floresta de alimentos.
“O legado indígena na formação de sistemas
agroflorestais é considerado, hoje, como possibilidade para sustentabilidade em
atividades agrícolas de pequena escala na Amazônia”, escrevem Mirtle Pearl
Shock e Claide de Paula Moraes, professores da UFOPA.
Há
sítios arqueológicos no Pará que datam de 12 mil anos. Em cada camada de terra,
um testemunho de manejo: a Terra Preta de Índio, rica em carbono e fertilidade;
os quintais florestais cheios de remédio vivo; os bosques culturais criados a
partir de clareiras naturais, transformadas pelas mãos humanas em espaços de
abundância e diversidade. Como descrevem
Shock e Moraes, essas formações vegetais não nasceram por acaso. Mesmo quando
uma árvore cai por força do tempo, há sempre alguém que cuida, que planta, que
escolhe o que deixar crescer. A floresta, aqui, é também obra.
Esse
reconhecimento da floresta como construção histórica, e não relíquia natural,
começa a ganhar força também na ciência global.Um artigo publicado neste mês na
revista Science, liderado por Carolina Levis e Justino Sarmento Resende, do
povo Tukano, afirma: é hora de indigenizar a ciência da conservação. Proteger a
Amazônia exige caminhar com os povos que a cultivaram por milênios. Exige
reconhecer que a biodiversidade que hoje celebramos foi semeada por mãos
humanas. Mãos que conhecem o tempo da floresta.
• Oeste do Pará, no coração da Amazônia
Mil
anos antes da invasão, já havia cidade grande em Santarém. Os sítios
arqueológicos Aldeia e Porto, escavados onde hoje é o centro antigo, mostram
povos que dominavam técnicas sofisticadas de manejo. Produziam alimentos,
utensílios, medicinas.
No
livreto “Uma Santarém mais antiga sob o olhar da arqueologia”, publicado em
parceria da UFOPA com o Museu Goeldi, a arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel escreve
que “os recursos alimentícios eram diversificados, incluindo um grande número
de frutas”. Ou seja: havia abundância. E essa abundância não nascia da
uniformização, mas da diversidade cuidadosamente manejada. É nesse legado que
os sistemas agroflorestais contemporâneos encontram raízes profundas.
E essa
relação com a biodiversidade não ficou no passado. Está viva. Em Belterra,
município vizinho a Santarém, pesquisadores da UFOPA mapearam 48 sistemas
agroflorestais mantidos por 17 famílias agricultoras. São 68 espécies
diferentes em arranjos consorciados que incluem cumaru, cupuaçu, mandioca,
banana, pimenta-de-cheiro. Um ecossistema cultivado.
Como
escrevem Pauletto et al. (2024), os SAFs são práticas agrícolas biodiversas que
aumentam a segurança alimentar, fortalecem a identidade cultural e melhoram as
condições de vida rural. Mesmo com pouca assistência técnica, esses arranjos
resistem. São herança viva da floresta cultivada por quem conhece o tempo da
terra.
E se
falta poesia nisso tudo, que falem os números: um estudo recente do Instituto
Escolhas mostra que recuperar as Áreas de Preservação Permanente (APPs) nos
assentamentos da reforma agrária no Pará pode render mais de 15 milhões de
toneladas de alimentos, gerar R$ 44,8 bilhões em receita líquida e criar 69 mil
empregos em 30 anos.
Ou
seja: restaurar a floresta não significa abrir mão da produção. Significa
produzir melhor. Com biodiversidade, com comida de verdade, com justiça social.
Em vez da cerca que exclui, floresta viva que alimenta. Em vez de monocultura
de grãos ou árvores clonadas, agrofloresta para a vida. Cultivada com açaí,
cupuaçu, andiroba, cumaru, plantas medicinais e memórias que brotam do chão.
A
ecologia é subversiva, sim.
Ela
recusa o acúmulo e o egoísmo.
E com
sabedoria, aposta na força da colaboração, na ciclagem de nutrientes e no
impacto mínimo.
Fonte:
Por Patricia Kalil, em Outras Palavras

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