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que Alemanha está tomada por uma "enxurrada de cocaína"
Holger
Münch, presidente do Departamento Federal de Investigações (BKA), o escritório
central da polícia criminal alemã, alertou haver uma "enxurrada de
cocaína" no mercado de drogas da Alemanha, atribuindo isso à saturação do
mercado na América do Norte, fazendo o tráfico de drogas se "concentrar
mais na Europa". A cocaína já foi considerada uma droga de luxo. Mas isso
parece estar mudando.
O
comissário do governo alemão para Dependência Química e Drogas, Burkhard
Blienert, está preocupado: "Vivemos em tempos incertos e, nesses tempos,
se está cada vez mais recorrendo às drogas. Há mais do que o dobro de
consumidores de cocaína do que há apenas alguns anos. Isso a torna claramente a
droga ilegal número um na Alemanha."
Os
números dão razão a ambos os especialistas. De acordo com um relatório do BKA,
a quantidade total de cocaína apreendida na Alemanha em 2023 atingiu o recorde
de 43 toneladas, mais que o dobro do valor do ano anterior. A alfândega também
relata um rápido aumento nas apreensões de cocaína, de 21.549 quilos em 2021
para quase 40 mil em 2023.
• Produção de heroína caiu por causa do
Talibã
Münch
cita entre as razões para o aumento da disseminação da cocaína a mudança
radical do mercado de heroína: já que o Talibã interrompeu o cultivo de ópio no
Afeganistão", há uma escassez da droga derivada.
A
heroína é um opioide semissintético, quimicamente relacionado à morfina,
comumente usada na medicina. Sua matéria-prima geralmente vinha do Afeganistão:
em 2022, o cultivo de papoula para ópio representava um terço da produção
agrícola total do Afeganistão.
Desde
que o Talibã, que governa o país, proibiu o cultivo das papoulas em abril de
2022, a produção de ópio despencou, de acordo com as Nações Unidas. O órgão da
ONU que monitora o tráfico de drogas relata um declínio de 95%. A disseminação
do ópio e da heroína produzida a partir dele também diminuiu drasticamente na
Alemanha.
• Cocaína em vez de maconha?
O
governo do chanceler federal alemão, Olaf Scholz, implementou uma legalização
parcial da cânabis. Desde abril de 2024, é permitido o cultivo controlado para
uso privado. Adultos podem portar até 25 gramas em público.
O
fascínio pelo proibido desapareceu, avalia Jörn Memenga, da Federação de
Agentes da Polícia Criminal Alemã. É possível que hoje a cocaína não seja mais
uma "droga de luxo" hoje, "mas sim uma droga de massa".
Além
disso, "agora se pode fumar maconha em público sem se meter em encrenca,
portanto o consumo de cocaína talvez prometa uma sensação nova". E,
"quando uma carreira de cocaína custa apenas 5 euros, ela também se torna
acessível para muitos".
Um
grama de cocaína custa ao consumidor final na Alemanha cerca de 50 a 80 euros
(R$ 320 a 520) e rende cerca de 15 porções, assim, uma "carreira"
passa a custar só cerca de 5 euros (R$ 32), o mesmo que uma taça de vinho num
bar alemão.
• Equador é polo de distribuição
Em
2023, investigadores alemães conseguiram desferir o maior golpe até hoje contra
o tráfico de cocaína na Alemanha. No contexto de uma extensa investigação,
interceptaram no porto de Hamburgo um total de 35,5 toneladas, com um valor de
mercado de 2,6 bilhões de euros (R $ 16,8 bilhões).
Os
portos de Hamburgo (Alemanha), Roterdã (Holanda) e Antuérpia (Bélgica) no Mar
do Norte há muito se tornaram centros de contrabando. As investigações em
Hamburgo foram desencadeadas por denúncias de autoridades da Colômbia, onde as
áreas reservadas ao cultivo de cocaína estão crescendo.
No
entanto, os navios que transportam a cocaína geralmente vêm da cidade portuária
de Guayaquil, no Equador. O país antes seguro se tornou um centro de tráfico
internacional de drogas em apenas alguns anos – e também um dos mais perigosos
da América Latina, com 750 assassinatos só nos primeiros quatro meses de 2025.
"O
Equador fica exatamente entre o maior produtor mundial de cocaína, a Colômbia,
e os números dois e três, Peru e Bolívia. E Guayaquil, com seu porto, logística
e infraestrutura, é o ponto ideal para o trânsito de drogas", diz
especialista em segurança Carla Álvarez, do Instituto de Altos Estudos
Nacionais de Quito. "Além disso, a região amazônica perto da fronteira com
o Peru é uma enorme porta de entrada, com pouquíssimos postos de
controle."
Quando
mais de 2 mil contêineres partem do Equador para a Europa toda semana, muitas
vezes eles a cocaína viaja junto, geralmente escondida em carregamentos de
bananas, pois o país é um dos maiores exportadores de frutas tropicais do
mundo. Mas constantemente são necessárias novas rotas, um grande número de
funcionários e ideias cada vez mais criativas para transportar o "ouro
branco" aos consumidores europeus, diz Álvarez.
Às
vezes os navios cargueiros já estão no mar, e os traficantes os seguem em
lanchas para lhes entregar a cocaína. Há muita gente envolvida no tráfico de
drogas, desde os motoristas das áreas de cultivo de coca até os funcionários e
inspetores no porto, que recebem suborno para colocar o pó nas caixas de
banana.
• Enxugando gelo
De
acordo com o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC),
produtores e traficantes latino-americanos consideram relativamente baixo o
risco de ser pegos na Europa. A penalização não funciona tão bem quanto nos
EUA, por exemplo.
Segundo
o último relatório da agência da ONU, os traficantes corrompem o pessoal do
porto. Não só isso: na Alemanha, um promotor público está sendo julgado por um
tribunal em Hanover por vazar durante anos os resultados das investigações para
uma quadrilha de traficantes, em troca de dinheiro.
Nos
últimos anos, as autoridades belgas e holandesas aumentaram drasticamente seu
pessoal e equipamento na luta antidrogas. Já a Alemanha está atrasada em termos
de investimentos nas autoridades alfandegárias e policiais. O número de mortes
relacionadas às drogas vem aumentando há anos; em 2023, as autoridades alemãs
registraram 2.227 vítimas.
Isso
deixa o Comissário para Dependência Química e Drogas, Burkhard Blienert,
desanimado com a luta contra o tráfico: "Esses desafios não serão
superados apenas com recursos policiais e penalidades. É necessária uma
abordagem coordenada de todos os atores e instituições do sistema: da prevenção
e assistência ao combate rigoroso à criminalidade relacionada às drogas."
• Sob pressão de Trump, México veta
músicas exaltando tráfico
Com o
cerco de Donald Trump aos cartéis de drogas latino-americanos, autoridades do
México vêm tentando expurgar a cena cultural do país de músicas e outras formas
de expressão que glorifiquem o narcotráfico ou a figura do traficante.
De
acordo com reportagem do The New York Times, desde fevereiro pelo menos sete
cidades ou estados mexicanos baniram ou limitaram apresentações de artistas de
uma vertente cada vez mais popular: o narcocorrido, subgênero musical que fala
de questões ligadas ao tráfico e retrata traficantes como figuras admiráveis.
Com uma
temporada de festas populares à vista, a Secretaria de Segurança do estado do
México, por exemplo, alertou os municípios de Texcoco, Tejupilco e Metepec que
os envolvidos em shows musicais com apologia ao crime poderão ser punidos com
até seis meses de prisão.
Um dos
expoentes do narcocorrido, Luis R. Conriquez, até avisou aos fãs que iria, a
partir de então, pegar mais leve no repertório. "Tem muita gente que não
entende. Eles acham que somos nós que estamos estabelecendo as regras, mas a
verdade é que não haverá mais corridos nos eventos de agora em diante, para
nenhum artista", disse em vídeo postado nas redes sociais em 11 de abril.
Horas
depois, durante apresentação na Feira do Cavalo – evento agropecuário na cidade
de Texcoco, no estado do México – o cantor teve que fugir do palco se
esquivando de latas de cerveja, socos e chutes da plateia, em fúria por ele não
ter cantado nenhum narcocorrido.
A
discussão é semelhante à que ocorre no Brasil, com a chamada lei
anti-Oruam, aplicada em dezenas de
cidades para proibir a contratação com verba pública de artistas que fazem
apologia ao crime organizado e ao consumo de drogas.
O
rapper Oruam, que dá nome ao projeto, é filho de Marcinho VP, líder do Comando
Vermelho, preso há mais de 20 anos por homicídio e tráfico de drogas. Com
letras quase sempre machistas que falam de vivências pessoais, festas, drogas,
dinheiro fácil e ostentação, ele é um dos músicos mais ouvidos nas plataformas
de streaming de música no Brasil e tem defendido a liberdade de seu pai durante
shows.
O
projeto de lei foi encabeçado por grupos de direita, como o Movimento Brasil
Livre (MBL), e encontrou resistência de quem a vê como uma censura a estilos
ligados às periferias, como funk, hip-hop e rap.
No
México, a pressão sobre os políticos para conter a popularização da
narcocultura cresceu após os Estados Unidos declararem "guerra" a
grupos narcotraficantes, que estão inclusive por trás de artistas e festas
populares mexicanos.
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Sanções americanas
Luis R.
Conriquez é suspeito de ter vínculo com o cartel de Sinaloa, uma das oito
organizações narcotraficantes classificadas recentemente pelo governo americano
como "terroristas globais", por ameaçarem a "segurança
nacional".
O
tráfico de drogas e a crise de saúde pública causada sobretudo pelo fentanil –
opioide sintético muito mais potente e barato que morfina e heroína – foram
usados como justificativa por Trump também para impor tarifas e sanções contra
o México e o Canadá, os quais acusa de não terem feito o suficiente para conter
o problema.
O caldo
entornou para os músicos de narcocorrido após uma apresentação do grupo Los
Alegres del Barranco, num auditório da Universidade de Guadalajara, no fim de
março. Durante o show, eles dedicaram um corrido a Nemesio Oseguera Cervantes,
conhecido como "El Mencho", líder do Cartel de Jalisco Nova Geração
(CJNG), atualmente o maior do México. Ele nunca foi preso e é um dos homens
mais procurados pelos Estados Unidos.
Depois
da demonstração pública de apreço ao chefão do tráfico, o Departamento de
Estado americano revogou os vistos de trabalho e de turismo dos integrantes da
banda. "No governo Trump, levamos a sério nossa responsabilidade sobre o
acesso de estrangeiros ao nosso país. A última coisa de que precisamos é um
tapete de boas-vindas para quem exalta criminosos e terroristas", afirmou
Christopher Landau, vice-secretário de Estado dos EUA, em 1º de abril. "Acredito firmemente na liberdade de
expressão, mas isso não significa que essa expressão deva estar livre de
consequências."
Jesús
Eulogio Sosa, da banda Los Buitres de Culiacán Sinaloa, que tem vários
narcocorridos de sucesso, disse ao New York Times que sabia de outros músicos
que tiveram seus vistos para os EUA negados desde então.
O
governo do estado de Jalisco, berço do cartel CJNG, é um dos que apresentou
projeto de lei para coibir apologia ao crime. O texto dá "poderes aos
municípios para regulamentar e, se necessário, proibir e sancionar grupos
musicais que se envolvam em qualquer tipo de glorificação da violência".
De
acordo com investigação do jornal mexicano Milenio, a CJNG controla os lucros
da venda de cerveja em festas como touradas e celebrações de santos padroeiros
na maioria dos municípios de Jalisco. Os vendedores de cerveja são até
obrigados a usar aventais com o rosto impresso de "El Mencho", que
costuma premiar toureiros com dinheiro durante os eventos.
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Crônica social ou apologia do crime?
O
corrido mexicano é um estilo de música tradicional que narra em tom épico
acontecimentos políticos, injustiças sociais, amores trágicos e também atos de
delinquência. Sua disseminação ocorreu durante a Revolução Mexicana (1910 a
1920), quando era usado para informar o povo sobre feitos e celebrar
personagens políticos, como Emiliano Zapata e Pancho Villa.
Quando
o narcotráfico se estruturou e a violência disparou no México, entre as décadas
de 80 e 90, corridos que falavam de crime e ostentação se tornaram populares
nos Estados Unidos, levados por imigrantes mexicanos. Desde então, o som de
acordeão, trompete e guitarra tem acompanhado versos sobre carros caros,
crimes, drogas e mulheres sempre disponíveis e objetificadas.
O
narcocorrido é especialmente popular em regiões do México fortemente afetadas
pelo narcotráfico, como Sinaloa. Enquanto alguns o veem como um reflexo da
realidade social, outros criticam o estilo por fazer apologia ao crime.
"O
narcocorrido não é uma invenção recente. Já havia canções sobre contrabando de
álcool na década de 1920. E na década de 1990, houve uma grande explosão do
gênero com a figura de Chalino Sánchez", explica Elijah Wald, musicólogo e
autor do livro Narcocorrido: A journey into the music of drugs, guns and
guerrillas.
"O
culto ao narcotráfico se tornou uma narrativa de aspiração para setores
marginalizados. Ele representa poder, respeito e dinheiro. E isso vende. Em
músicas, em camisetas, em séries”, diz Wald.
Javier
Oliva Posada, professor da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da
Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), acredita que o fenômeno do
narcocorrido é perigoso e exige uma resposta firme do Estado: "É muito
problemático. Quando um cantor como Peso Pluma enche um estádio com letras que
fazem apologia ao crime e ao machismo, não podemos dizer que é apenas música. É
parte do crime organizado."
Oliva
alerta para o risco de uma geração que "não faz mais distinção entre o
herói trágico e o criminoso impune": "Se não agirmos agora, essas
expressões continuarão a ocupar espaços que deveriam ser de valores
democráticos e comunitários."
Em meio
à polêmica, a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, lançou em abril o
concurso musical México Canta, com o objetivo de promover músicas com
"valores positivos" e combater a apologia ao crime na cultura
popular.
Fonte:
DW Brasil

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