A
criminalização que cortou nossas raízes
A
relação histórica entre as populações negras e periféricas no Brasil e seus
saberes medicinais é marcada por processos de exclusão, criminalização e
violência, muitas vezes impulsionados por políticas que visavam apagar e
suprimir as culturas e práticas dessas populações, impondo a cultura
cristã-europeia com o objetivo de garantir a estrutura colonial. Esse processo
teve continuidade durante os diferentes períodos republicanos, mas não impediu
a forte contribuição da população afro-brasileira para a cultura do país.
No caso
específico dos saberes medicinais, a história é repleta de práticas que, por
séculos, foram não apenas ‘deslegitimadas’, mas também proibidas por uma série
de medidas que afugentaram a população negra e periférica de sua conexão com a
natureza, seus conhecimentos e os próprios sistemas de saúde.
Os
invasores portugueses do território, chamado Pindorama, trataram de silenciar e
exterminar as culturas africanas e as práticas de cura tradicionais trazidas
pelos negros, assim como as práticas dos povos indígenas, desde os primórdios
da colonização. A proibição do pito do pango, em 1830 na cidade do Rio de
Janeiro, é um exemplo dessa repressão. O pito do pango era uma prática cultural
da população africana, que consistia em fumar maconha em um cachimbo, muitas
vezes como parte de rituais de cura e proteção espiritual. A proibição de fumar
a erva não se deu pela crença de que ela possuía poderes místicos e causava um
mal social, mas pelo fato de ser associada à cultura e resistência das
populações negras. As autoridades coloniais, preocupadas com qualquer tipo de
autonomia ou organização da população escravizada e das comunidades negras,
agiram pela proibição da maconha, assim como pela proibição de todo tipo de
expressão cultural que não estivesse alinhada aos preceitos da branquitude
masculina europeia.
Além
disso, a maconha e outras ervas utilizadas por curandeiros e rezadeiras eram
parte de uma medicina popular que se baseava no conhecimento ancestral
transmitido de geração em geração. Essa medicina, transmitida por pessoas como
as rezadeiras, curandeiras etc., tinha um profundo vínculo com a natureza e com
o entendimento das propriedades das plantas e ervas. As mulheres negras, em
particular, desempenhavam um papel central nesse processo, não apenas como
curandeiras, mas como detentoras do saber popular sobre o uso das plantas. Ao
criminalizar a utilização dessas ervas, o Estado não só cerceava o direito de
cura dessas populações, mas também intencionalmente atentava contra suas
tradições e sua própria identidade cultural.
Esse
processo de criminalização do curandeirismo não pode ser dissociado das
dinâmicas de poder que permeavam a formação do Estado republicano no Brasil. A
busca por centralizar o conhecimento em saúde dentro das instituições oficiais
e a necessidade da Igreja Católica de reafirmar sua influência contribuíram
para a construção de um discurso que associava práticas populares de cura à
ignorância e ao atraso, e as demonizava. Assim, a legislação penal de 1890 não
apenas criminalizou o curandeirismo, mas serviu como instrumento de exclusão e
repressão às práticas tradicionais de saúde, muitas delas enraizadas em saberes
afro-indígenas. Dessa forma, a interdição legal dessas práticas não foi apenas
uma questão de regulação sanitária, mas um reflexo da disputa por poder e
legitimidade no campo da medicina e da religião na virada do século XIX para o
XX.
As
curandeiras, que muitas vezes estavam mais próximas das populações de baixa
renda, especialmente negras e periféricas, enfrentaram não apenas um combate à
sua prática, mas também um ataque sistemático à sua existência. Elas foram
vistas como uma ameaça às instituições médicas da época, que eram dominadas por
um grupo de médicos com formação acadêmica europeia e viam a saúde como
mercado. Naquele momento, médicos da “elite”, com suas práticas científicas e
estigmatizantes, viam as curandeiras como concorrentes que “roubavam” clientes,
sem ter a mesma formação acadêmica ou o reconhecimento das instituições
“oficiais”.
Esse
processo de marginalização e criminalização das curandeiras e do uso de ervas
foi tanto uma questão cultural quanto econômica, pois as práticas de cura
baseadas nas ervas representavam uma forma de resistência não só à opressão
social e racial, mas também ao monopólio do mercado farmacêutico e médico. As
curandeiras, especialmente aquelas que trabalhavam em comunidades negras e
periféricas, eram frequentemente mais prestigiadas do que os próprios médicos,
até mesmo pelas classes mais abastadas. Elas estavam mais próximas das
necessidades da população e ofereciam alternativas acessíveis, baseadas em
conhecimentos ancestrais e das plantas, que não dependiam de grandes
investimentos ou da indústria farmacêutica dos comprimidos.
A Lei
de Terras de 1850, sancionada por Dom Pedro II, representou um marco na
regulamentação fundiária no Brasil ao estabelecer a compra como única forma de
acesso às terras públicas. Essa medida inviabilizou práticas anteriores de
posse e doação, consolidando a propriedade privada como base da estrutura
agrária nacional. Promulgada em um contexto de transição, logo após a proibição
do tráfico negreiro, a legislação tinha, oficialmente, o falso objetivo de
dinamizar a economia agrícola e incentivar a imigração europeia. No entanto, ao
restringir o acesso à terra apenas àqueles que possuíam recursos financeiros, a
lei excluiu ex-escravos, escravizados e camponeses pobres, que, sem condições
de aquisição, foram forçados a se submeter ao trabalho assalariado insuficiente
e a formas precárias de ocupação, como os cortiços e favelas, no caso do Rio de
Janeiro. No sentido mais cru da coisa, o povo que mais trabalhou e ainda
trabalha nesta terra, sendo a espinha dorsal desta nação, como dizia Abdias
Nascimento, é o que menos tem acesso à terra, à propriedade, a qualquer coisa.
Com a
Lei de Terras, muitas dessas populações foram forçadas a viver em áreas sem
condições mínimas de cultivo ou de acesso à natureza, dificultando ainda mais o
acesso às plantas medicinais que fizeram parte do seu cotidiano. As terras eram
tomadas por grandes latifundiários ou pela especulação imobiliária nos centros
urbanos, que privaram as populações negras e periféricas do direito de cultivar
suas próprias ervas e plantas, de ter acesso não só a moradia, mas também a uma
habitação digna, com direito a tudo que era destinado ao bem-estar do restante
da população.
Ao
longo dos séculos XIX e XX, com o aumento da industrialização e o
fortalecimento do mercado farmacêutico, a prática de curandeirismo e o uso de
ervas foram cada vez mais criminalizados. A medicina que se apresentava como
oficial, com seu enfoque ocidental e científico, se distanciava dos saberes
populares, em um movimento de desvalorização e estigmatização das práticas de
cura tradicionais. Além disso, a indústria farmacêutica, à medida que avançava,
se apropriou desses conhecimentos e os confinou nos laboratórios,
comprimindo-os em produtos patenteados e controlados, de modo que os saberes
tradicionais, que antes eram de uso comum e livre, passaram a ser controlados
por grandes empresas. Esse tipo de saque segue acontecendo ainda hoje em
diversos cantos do Brasil, como com as populações ribeirinhas da Amazônia. Todo
conhecimento é roubado, transformado em remédio ou cosméticos e vendido ao
grande público. Sem pagar patente, sem licença. Nada.
A
relação entre a indústria farmacêutica e o Estado, ao longo da história, foi
marcada por um processo de exclusão das práticas de cura populares. Esse
sistema não apenas monopolizou o mercado da saúde, mas também alimentou um
ciclo de desinformação, impedindo as novas gerações de conhecerem as
propriedades das plantas e das ervas, conhecendo apenas a medicina
farmacêutica. Os processos populares para lidar com a saúde e as doenças, que
antes eram uma fonte de cura e resistência, foram sendo apagados, enquanto a
indústria farmacêutica ganhou prestígio e poder, consolidando-se como a
principal forma de tratamento da população. Em geral, se um jovem sente dor de
cabeça nos dias de hoje, é mais fácil tomar algum comprimido analgésico do que
um chá de camomila, por exemplo.
Durante
e a partir da Primeira República (1889- 1930), com o gradativo crescimento
urbano e surgimento das favelas, mocambos, cidades satélites etc., a população
negra e a periférica foram ainda mais marginalizadas. Desde a Lei de Terras, e
através dos diferentes códigos de obras e planos urbanos, o direito à moradia
foi constantemente negado a essas populações, que se viram forçadas a viver em
condições precárias, nas encostas e morros ou em áreas afastadas do centro das
cidades. As políticas urbanas de caráter higienista, que visavam “limpar” a
cidade das classes populares, levaram a população a viver em locais sem
infraestrutura, sem acesso a serviços básicos e, muitas vezes, sem contato com
áreas verdes ou com a natureza.
As
favelas, ao longo do tempo, se transformaram em verdadeiros “desertos de
concreto”, onde o acesso à terra e às plantas é praticamente inexistente. Essa
exclusão das áreas urbanas e a falta de infraestrutura contribuíram para o
afastamento das populações de suas práticas de cura tradicionais, tornando-se
cada vez mais difícil a utilização de ervas e plantas medicinais, que eram
essenciais para a manutenção da saúde dentro dessas comunidades. O próprio
espaço urbano, sem árvores e com escassez de verde, tornou-se um reflexo da
exclusão social e cultural vivida por milhares de pessoas.
A
indústria cultural e a farmacêutica têm um papel fundamental nesse processo de
apagamento e substituição dos saberes tradicionais. Acredita-se, por influência
da mídia e da propaganda, que a cura está nos comprimidos e na medicina de
consultório e jaleco, associando as práticas tradicionais a algo obsoleto e
ineficaz. Ao mesmo tempo, a indústria farmacêutica lucra com a desinformação e
a exclusão dos saberes populares, ao sequestrar esses conhecimentos e
confiná-los nos laboratórios, onde são patenteados e transformados em produtos
caros e inacessíveis à maioria da população — sem querer aqui mencionar que
essa indústria da cura é a mesma que produz veneno e câncer no mundo. É um
contrassenso ou apenas capitalismo que uma empresa como a Bayer atue no mercado
da cura medicamentosa e do venenoso agronegócio?
Podemos
analisar a desigualdade no acesso ao uso terapêutico da maconha no Brasil, por
exemplo, como um reflexo direto de décadas de políticas proibicionistas que
historicamente criminalizam e marginalizam a população negra e pobre. Enquanto
famílias de classe média —- não antes de muita luta para descriminalizar por
parte das mães — têm acesso a derivados da cannabis por meio de prescrições
médicas e autorizações judiciais, moradores de favelas enfrentam barreiras que
vão desde a falta de assistência médica até o risco de criminalização e
repressão durante operações policiais. Mesmo que legal, as famílias possuem
profundo medo de serem pegas com o medicamento. Muda-se a lei, permanece a
cultura.
Como
destaca o relatório Plantando Saúde e Reparação, “as favelas ficam com a
repressão e a violência gerada pela guerra às drogas, enquanto o ‘asfalto’ tem
acesso a tratamentos e substâncias com controle de qualidade” (MOVIMENTOS,
2023). Esse contraste é de dominação, mas também econômico e de mercado. Eles
não conseguiram, mas causaram estragos.
A falta
de acesso à terra, o crescimento das favelas e a negação de direitos básicos,
como moradia, educação e saúde, também contribuíram para esse afastamento,
criando um cenário em que as ervas e as plantas, que um dia foram fontes de
cura, hoje estejam desaparecendo dessas localidades, enquanto a indústria
farmacêutica lucra com a doença e a miséria. Atualmente há mais farmácias e
igrejas nas favelas do que plantas e expressões de outras matrizes religiosas.
Plante!
Fonte:
Por Aristênio Gomes dos Santos, no Le Monde

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