Para
dar corpo (e rostos) à luta decolonial
Para o
pensamento decolonial, a modernidade, o capitalismo e o território que hoje
denominamos de América Latina têm como marco histórico a expansão econômica e
religiosa da Europa iniciada em 1492, mas é no século XVII que o projeto
civilizador moderno, de forma mais consistente, fornecerá a cosmovisão que
passará a fundamentar a lógica de funcionamento do seu modelo econômico, o
sistema capitalista mundial: o dualismo cartesiano. Este é que vai passar a
orientar a produção metodológica de conhecimento científico e de produção e
reprodução da tecnologia moderna. A lógica do dualismo cartesiano, parte da
perspectiva de que o ser humano encontra-se apartado da natureza, que ambos se
encontram em polos opostos. Trata-se de um dualismo ontológico que separa forma
de vida humana de outras formas de vida (fauna e flora). Estas são entendidas
como objetos a serem apropriados pelo homem.
Na
cosmovisão da modernidade, o dualismo cartesiano é resultado do processo de
secularização da visão de mundo da cristandade em que se compreendia a
natureza, com suas forças indomáveis, como possuídas pela força do demônio e os
seres humanos como parte do séquito divino dos imperadores e monarcas (poder
temporal). Para cristandade, quem não era incorporado como pertencente ao
séquito divino dos imperadores e monarcas era considerado como ser pecador, um
herege cuja alma havia sido capturada pelo demônio. Acreditava-se que as
mulheres estavam mais próximas do reino da natureza do que do reino humano,
elas eram mais suscetíveis de cair nas tentações do demônio, como Eva, crença
alimentada pelo patriarcalismo (de gênero e sexualidade) da cristandade.
A
cristandade produziu um dualismo teológico antagônico entre as forças divinas e
as forças do demônio. Assim, quando intelectuais e cientistas tentaram
trabalhar e compreender as forças da natureza foram condenados como hereges,
como seres possuídos pelo demônio e queimados vivos na fogueira. Tais fenômenos
foram produzidos como parte do obscurantismo da Idade Média na Europa, que
passou a perder força a partir do século XVIII. Fora da Europa, as ciências
floresciam na China, no mundo islâmico, na Índia, na África e no Mundo Novo,
por que não havia uma visão dualista em suas cosmovisões, eram civilizações
holísticas, nas quais a vida era compreendida como um sistema de interações
entre todas as formas de existência. Nas cosmovisões holísticas a destruição de
um ser pelo outro implica no desequilíbrio do sistema.
O
processo de secularização do dualismo teológico da cristandade tem início com
Francis Bacon (método empirista moderno) e se completa com René Descartes
(método racionalismo moderno). Ao ser secularizado, o dualismo teológico da
cristandade perde a linguagem religiosa, mas mantém a sua cosmovisão: a
separação ontológica entre seres naturais e seres humanos. Com a secularização
a modernidade se afirma que não existe demônio na natureza, mas que a natureza
é selvagem e como selvagem deve ser domada pelo homem e submetida aos
interesses de suas necessidades, do progresso e do acúmulo de riquezas. O
corolário desta visão é que a natureza (fauna, flora, rios, mares, montanhas,
terra, minérios) viva deveria ser transformada em natureza morta (mercadoria e
capital) num processo constante e infinito.
A ideia
de conhecimento objetivo, o pressuposto de que um conhecimento produzido a
partir do rigor metodológico é verdadeiro e portador de valor universal, é um
pressuposto das epistemologias modernas. A ideia de que a ciência e a
tecnologia são axiologicamente neutras, são apenas meios, logo, a definição de
seu uso para o bem ou para o mal é definida por quem as usam é outro mito
moderno. Observando a história do desenvolvimento tecnológico na modernidade
podemos identificar que a pesquisa tecnológica mais avançada, a que hoje
chamamos de ponta, sempre foi orientada para produção de instrumentos de guerra
(espadas, armaduras, espingardas, revólveres, canhões, tanques de guerra,
navios, avião, bomba atômica, foguetes, armas químicas, internet, GPS, etc.), que
tem como sua finalidade primeira a destruição da vida humana e não humana.
O
sistema econômico da modernidade, o modo de produção capitalista, tem um dos
seus focos de produção de mercadorias – principalmente máquinas e equipamentos
eletrônicos e eletrodomésticos – que são fabricadas a partir de estudos e
pesquisas voltadas para tornar o seu ciclo de vida muito curto. A depreciação
das mercadorias é calculada para torná-las descartáveis, o que implica numa
necessidade constante de mais matéria-prima (natureza morta), alimentando uma
cultura de consumismo desenfreado e uma produção gigantesca de lixo comum e
eletrônico. Tal fenômeno é uma negação da ideia de desenvolvimento sustentável.
Outro fenômeno que podemos identificar é a falácia da chamada transição
energética, na qual podemos constatar com dados quantitativos que a expansão da
exploração de novas formas de energias é somada às antigas, sem que ocorra a
substituição de uma por outra.
O
sistema econômico da modernidade opera a partir dos fundamentos da cosmologia
do Iluminismo moderno, logo não existe tecnologia sem cosmologia. Se
observarmos de forma atenta as propagandas de carros 4X4, das empresas
transnacionais, disponibilizadas em nossos aparelhos de televisão, podemos
identificar que as máquinas sempre aparecem fazendo manobras danosas e
predatórias na natureza, são máquinas manobradas por homens em ações que passam
a ideia de que estão domando a natureza selvagem, numa ostentação de força e
potência fálica contrária aos apelos de proteção ambiental. São propagandas
voltadas para um pequeno público que tem um poder aquisitivo que falta a
maioria da população empobrecida pelos mecanismos de dominação e exploração do
trabalho dentro da lógica do capital.
Há
algum tempo, a cosmovisão moderna vem orientando estudos e pesquisas em
tecnologias para tornar o seu modo de produção independente, o máximo possível
da força de trabalho, ou seja, que o trabalho humano possa ser descartado do
processo produtivo. Esse fenômeno é uma prova evidente de que o projeto
civilizador moderno é um projeto de morte e não um projeto emancipador voltado
para a vida. O destino reservado aos homens e mulheres desnecessários como
força de trabalho vai ser a exclusão, a privação e a morte. Não é por acaso que
foi na modernidade que aconteceram os maiores genocídios da história do
planeta, o maior volume de guerras com o maior potencial destrutivo, o
fascismo, o nazismo, o stalinismo, as ditaduras. Não é por acaso que hoje,
diante da crise do projeto civilizador moderno e do seu sistema econômico,
estamos vivendo o avanço da extrema direita fascista, portadora de uma
ideologia de morte que vem encontrando, de forma contraditória, eco nas mentes
eurocentradas de jovens, negros, comunidade LGBTQIAPN+, mulheres e homens de
todas as classes sociais.
A
partir da terceira revolução industrial, principalmente agora, quando temos em
curso a quarta revolução industrial, uma assombrosa profusão de novidades
tecnológicas envolvendo a inteligência artificial (AI), a robótica, veículos
autônomos, impressão em 3D, inteligência artificial, internet das coisas (IoT),
nanotecnologia, biotecnologia, ciências dos materiais, armazenamento de energia
e computação quântica, numa fundição de conhecimentos científicos e
tecnológicos dos mundos físico, biológico e digital, o projeto civilizador
moderno não só pretende descartar a maior parte dos seres humanos do processo
produtivo, como pretende fazer a transição da natureza orgânica – por ele
depredada, transformada em coisa e mercadoria, esgotada – para uma outra natureza:
inorgânica, transgênica e artificial.
Ampliando
o foco do raciocínio dos economistas, afirmamos que não vivemos apenas numa
sociedade sob a crise do capitalismo, mas numa crise civilizacional cuja
cosmovisão orienta o modo de produção capitalista. Dessa premissa podemos
auferir que centrar toda nossa potência e vontade transformadora apenas no
sistema econômico e suas crises, esquecendo a civilização moderna, limitamos em
muito nossa capacidade de transformação do mundo, pois ficamos presos a
pequenas reformas no campo da política e da economia num ciclo de fluxo e
refluxos conjunturais e não enfrentamos o lado obscuro da modernidade, a
colonialidade, que alimenta uma crise bem mais ampla e que não se resolve
apenas por meio de uma alternativa econômica. Aliás, a cosmovisão moderna impõe
a ideia de que o neoliberalismo é a única e nova razão econômica do mundo e que
chegamos ao fim da história, o fim do sujeito politico e o fim das utopias.
Na
modernidade ocidental, a colonialidade, como parte constituinte se seu ser, é
constituída de três componentes imbricados em si: a Colonialidade do Poder, a
Colonialidade do Ser e a Colonialidade do Saber. O Estado-nação moderno, como
administração do sistema de dominação, de gestão do ordenamento jurídico, do
comando da violência denominada de legítima e dos interesses do mercado, é o
espaço da efetivação e reprodução da Colonialidade do Poder. No sistema mundo
moderno/colonial cada época um Estado-nação assume a função de poder imperial.
No século XVI o posto foi assumido pela Espanha que perdeu o lugar para
Inglaterra. No pós-guerra a Inglaterra perdeu o posto para os Estados Unidos,
hoje alguns afirmam que a posição imperial estadunidense vem sendo ameaçada
pela China.
A
colonialidade do ser diz respeito ao ethos cultural, ou seja, a maneira de ser
e de estar no mundo. A colonialidade do ser é a universalização do ethos
cultural do homem branco, europeu-norteamericano, cristão, patriarcal,
heteronormativo, racista, capitalista, imperialista e epistemicída. É por meio
da colonialidade do ser que o modo de vida da civilização moderna eurocêntrica
torna-se o modelo de vida de povos colonizados e eurocentrados, ou seja,
torna-se possível que os desejos e a visão de mundo dos colonizados e dominados
sejam iguais a dos seus opressores. Assim, tanto governos de direita como de
esquerda dos países que foram colonizados e ainda se mantêm na condição de
países periféricos do Sul global e sob uma dinâmica de dependência do Norte Global
têm como modelo de desenvolvimento países imperiais que compõem o G7, modelo
que só se mantém pelo controle e dependência dos países periféricos.
No
Brasil, nos dois primeiros mandatos do governo do PT, Lula de forma
entusiástica afirmava que o Brasil estava saindo da condição de país emergente
para se tornar um país de primeiro mundo e reivindicava um assento no Conselho
de Segurança da ONU, ou seja, queria tornar o Brasil um país imperial ao lado
do G7, chegou mesmo a propor e contribuir para organização do G20. Na cabeça de
nossas lideranças de esquerda eurocentradas é isso que significa deixar de ser
vira-lata para pensar grande. Pensar grande é deixar de ser dominado, explorado
e subalternizado, para ser dominador, explorador e subalternizador.
A
colonialidade do ser está em nós, nos nossos desejos e no nosso comportamento,
pelo qual reproduzimos as hierarquias de dominação do processo de civilizador
moderno. No livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, Kehinde, a
protagonista da obra, que nasceu em Savalu, reino de Daomé, na África, foi
raptada e escravizada, violentada pelo seu senhor, escrava de ganho e viveu no
Brasil, mas que ao conseguir sua liberdade, montou vários negócios, virou
empresária e passou a ter escravos lhe servindo.
A
colonialidade do saber é o mecanismo por meio do qual o projeto civilizador
moderno coloniza nosso imaginário, modelando nossa subjetividade e nossas
relações intersubjetivas, definindo nossa forma de pensar, de produzir e
reproduzir conhecimento. É a colonialidade do saber que desqualifica,
inferioriza e trata como senso comum, saber prático e sem valor os saberes e
epistemologias das civilizações não modernas e dos povos colonizados, também
trata de forma preconceituosa a cultura dos povos colonizados, classificando-a
como manifestação folclórica, ou seja, algo de valor inferior à cultura. É por
meio da colonialidade do saber que os saberes, as epistemologias, as
filosofias, a produção científica e tecnológica dos povos colonizados e de
outras civilizações são invisibilizados e desvalorizados e muitas vezes
apropriados e divulgados como seus.
É por
meio da colonialidade do saber que o conteúdo dos ensinos em nossas escolas e
universidades é eurocentrado, ou seja, é focado em estudos, conhecimentos,
pesquisas e autores europeus e norte-americanos que produzem conhecimentos a
partir da sua realidade e não da realidade de nossos países. A colonialidade do
saber é promotora do epistemicídio. Daí porque a necessidade de decolonizar
nossas escolas e universidades valorizando as Epistemologias do Sul e criando
uma ecologia de saberes para romper com o império cognitivo eurocêntrico, como
diz Walter Mignolo, é preciso que ponhamos em prática uma desobediência
epistêmica a partir de um pensamento outro.
Ao
falarmos de pensamento decolonial e agir decolonial, estamos nos referindo não
ao processo de colonização territorial, mas à colonialidade como parte
constituinte da Modernidade. Decolonial refere-se ao processo de
descolonialidade do poder, do ser e do saber. Assim, ao falarmos de
descolonialidade precisamos saber do que estamos falando com certa precisão.
Quando falamos que decolonizar é preciso, estamos nos referindo à
descolonialidade das hierarquias de dominação, exploração, violência, racialização
e subalternização. O pensamento decolonial não é um pensamento identitário, mas
um pensamento antirracista, antipatriarcal, anticapitalista, anti-imperialista,
transmoderno e pluriversal.
Fonte:
Por Uribam Xavier, em Outras Palavras

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