Paulo Kliass: Bolsa Família e Bolsa Banqueiro
A
verdadeira obsessão com que o Ministro da Fazenda (MF) veio abraçando a causa
da austeridade fiscal desde o início do terceiro mandato do Presidente Lula tem
provocado graves e danosas consequências para a grande maioria do povo
brasileiro. Além disso, as medidas de corte de gastos e de compressão da
capacidade de despesas orçamentárias operam como obstáculo para a retomada do
processo de desenvolvimento econômico, social e ambiental. Finalmente, as
próprias pesquisas de opinião têm revelado de forma inequívoca o impacto
negativo da política de cortes, cortes e mais cortes sobre a popularidade do
governo e do primeiro mandatário da República.
A
estratégia de não promover a simples revogação do Teto de Gastos de Temer, tal
como prometido por Lula durante a campanha eleitoral em 2022, foi uma trilha
sugerida por Haddad ao seu futuro chefe. Com isso, o professor do INSPER
buscava se credenciar junto à nata do financismo como um interlocutor confiável
– a velha mania de se travestir no suprassumo do bom mocismo. Ou seja,
coloca-se em prática uma traição vergonhosa às expectativas de mudança tão
somente para agradar às forças que eram, até pouco tempo antes, consideradas
adversárias de um projeto de governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores
(PT).
A
substituição da Emenda Constitucional 95/16 foi operada por meio da votação da
Lei Complementar 200/23. Assim, as regras de austeridade foram retiradas do
texto constitucional e transferidas automaticamente para o Novo Arcabouço
Fiscal (NAF). Apesar de mais branda, a nova modalidade austericida mantém a
essência de obtenção de superávit nas contas públicas a todo o custo, assim
como não altera em nenhum milímetro a lógica do resultado fiscal primário. Ou
seja, todo o esforço fiscal permanece centrado sobre a redução das despesas da
área social e dos investimentos. Isso significa que as despesas financeiras
continuam se mantendo fora de qualquer tipo de controle.
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Teto de Gastos do Temer e Teto do Haddad
A
arquitetura do Teto de Gastos do Haddad prevê que as despesas orçamentárias
não-financeiras só possam crescer a um ritmo equivalente a 70% do verificado na
elevação das receitas. Dessa forma, a busca de resultado primário positivo nas
contas públicas pressupõe a redução permanente dos valores relativos dos gastos
com as políticas sociais e com a recuperação das capacidades estatais. Este
cenário se vê ainda mais agravado pela disposição do responsável pela economia
em buscar metas irrealizáveis, tal como essa ideia absurda e equivocada de zerar
o déficit primário. O resultado é um conjunto amplo de propostas do governo que
afetam seriamente as condições de vida da grande maioria da população, em
especial aquelas camadas que foram essenciais para a vitória apertada de Lula
sobre Bolsonaro em outubro de 2022.
Por
outro lado, o titular do MF convenceu Lula a não cumprir outra promessa de
campanha, aquela relativa ao reajuste do salário-mínimo envolvendo a reposição
da inflação e um ganho equivalente ao crescimento do PIB. Como a equipe da
Fazenda opera com um conceito quase secreto chamado “PIB potencial”, nada pode
crescer mais do que os 2,5% presentes no próprio NAF. Ou seja, mesmo se a
economia brasileira crescesse a um ritmo anual de 4%, por exemplo, os gastos
orçamentários só poderiam aumentar 2,5%. Uma loucura! Em seguida vieram medidas
impressionantes e inimagináveis, como a redução paulatina do abono salarial e
regras para o cerceamento do acesso ao próprio Benefício de Prestação
Continuada (BPC). Ou seja, em nome do respeito sacrossanto às regras auto-impostas
da austeridade fiscal, o governo vai minando suas bases de apoio e de
sustentação política e eleitoral.
A
maldade haddadiana mais recente refere-se ao Bolsa Família (BF). Trata-se de um
programa muito relevante em termos de políticas públicas dirigidas à base da
nossa pirâmide da desigualdade. Junto com a política de valorização do
salário-mínimo, ele foi um dos principais fatores do sucesso observado ao longo
dos dois primeiros mandatos de Lula, entre 2003 e 2010. Porém, no esforço
generalizado para conter gastos orçamentários e cumprir as metas que o governo
impôs para si mesmo, acaba sobrando até para penalizar um programa que é
reconhecido internacionalmente como exemplo exitoso para implementação de
políticas públicas inclusivas.
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Ataques ao Bolsa Família
A
equipe econômica já havia tentado eliminar as garantias constitucionais para os
programas de saúde e educação. Como ainda não conseguiram convencer Lula a
retirar os pisos para ambos previstos na Constituição, resta aprofundar as
maldades nas demais áreas. No caso do BF, as medidas pretendem retirar direitos
de as famílias prosseguirem recebendo por um certo período os benefícios
previstos no programa. Em nome de um suposto gesto de maior eficiência (quem
não se lembra do discurso da direita de que “não basta dar o peixe, é preciso
ensinar a pescar”?) o resultado para 2025 será um corte anunciado – com muita
pompa e orgulho – de R$ 7,7 bi no BF.
Ora,
apesar de todo o esforço empreendido nesta verdadeira cruzada contra os gastos
sociais, o que mais chama a atenção é que o governo nada faz quanto aos gastos
ditos “não-primários”. Sim, pois permanece intacta a herança nefasta que vem
ainda da época dos governos de Fernando Henrique Cardoso. A ideia de que o
esforço austericida deve se ater à dimensão não-financeira. Com isso, as
despesas com juros da dívida pública, por exemplo, ficam intocáveis. Por
oposição ao BF, deveriam ser chamadas de Bolsa Banqueiro.
O mais
recente Boletim das Estatísticas Fiscais
divulgado pelo Banco Central (BC) traz as informações consolidadas
até o mês de fevereiro passado. E ali se pode perceber que, apenas durante os
20 dias úteis daquele mês, o governo transferiu um pouco mais de R$ 78 bilhões
ao seleto grupo de detentores de títulos da dívida do Estado brasileiro. Ou
seja, a cada dia as contas governamentais direcionaram R$ 3,9 bi ao tipo de
despesa mais parasita que existe em nossas terras. E ainda mais trágico: em
apenas 2 dias foi gasto a esse título mais do que todo o esforço realizado sobre
o Bolsa Família ao longo de um ano inteiro. Uma completa inversão de valores
para qualquer tipo de governo que se pretenda minimamente progressista.
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Benefícios ao Bolsa Banqueiro
Considerando-se
os últimos 12 meses, o volume total das despesas com juros da dívida pública
atingiu o valor de R$ 924 bi. Esse montante equivale uma média mensal
igualmente de R$ 78 bi. Um verdadeiro escândalo! O total, por incrível que
pareça, ainda consegue ser menor do que o observado ao longo do ano de 2024.
Entre janeiro e dezembro do ano passado, a cifra atingiu seu recorde, com quase
um trilhão – R$ 950 bi. Isso significa que a rubrica “Juros pagos” continua
ocupando o lugar de conta mais deficitária do governo federal. O
interessante é que quando a imprensa conservadora escancara as suas manchetes
para criticar a suposta gastança da administração pública, nunca se vê nenhuma
menção a tal dispêndio.
Nem
mesmo a conta previdenciária consegue ser tão deficitária quanto a Bolsa
Banqueiro. Por mais que o INSS seja o saco de pancada preferido de onze a cada
dez “especialistas” em finanças públicas a soldo do financismo em nosso País, o
fato é que os maiores saldos negativos são dos juros. De acordo com as
informações do próprio Tesouro Nacional, em 2024 a diferença entre receitas e
despesas previdenciárias foi de R$ 304 bi. Isso porque o total da arrecadação
somou R$ 654 bi, enquanto os compromissos com o pagamento de benefícios
atingiram R$ 958 bi. Já a conta de juros, por definição, não apresenta receitas
– ela é absolutamente deficitária.
A
grande diferença refere-se ao impacto macroeconômico de tais despesas e os seus
resultados em termos de redução da desigualdade social e econômica que nos
assola. O próprio Boletim da Dívida Pública publicado
pelo Tesouro Nacional aponta
os principais detentores dos títulos do endividamento do Estado: bancos,
instituições financeiras e fundos de investimento. Ou seja, trata-se de um
gasto altamente regressivo, destinado a setores do topo de nossa sociedade.
Já os
recursos previdenciários são distribuídos para mais de 40 milhões de
indivíduos, a grande maioria da base de nossa sociedade. Segundo o Boletim divulgado pelo Ministério da
Previdência,
70% dos benefícios previdenciários são iguais ou inferiores a um
salário-mínimo, sendo que 86% deste total chega a atingir 2 salários-mínimos
mensais. Ou seja, trata-se claramente de um gasto de natureza mais progressiva
e que termina por retornar aos cofres públicos soba forma de tributos, pois a
capacidade de poupança dessas faixas de renda é zero. Tudo é consumido e a
nossa estrutura tributária é muito focada sobre o consumo.
Lula
precisa decidir qual prioridade deve ser concedida por seu governo no final de
seu terceiro mandato. Bolsa Família ou Bolsa Banqueiro? Se ele continuar
deixando que esse tipo de decisão estratégica permaneça em mãos de Fernando
Haddad, nós sabemos qual o destino a ser dado aos recursos públicos.
¨
O consenso neoliberal. Por Gilberto Maringoni
No
início de março, em evento na sede do BTG Pactual, Edinho Silva, ex-prefeito de
Araraquara e candidato a presidente do Partido dos Trabalhadores, debateu a
situação do país e do governo Lula com representantes do sistema financeiro. Em
meio à defesa de maior aproximação da administração federal com o mercado, o
petista enfatizou: “Com a polarização não há racionalidade, com a polarização
não se concebe (…) uma agenda de unidade para o país, independentemente de
divergências partidárias”.
A
“polarização”, tida como grande mal da vida política, tem aparecido em
editoriais, artigos de opinião e declarações de líderes políticos e
intelectuais brasileiros com ênfase crescente. O que significa acabar com a
polarização num dos países mais desiguais do mundo?
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Convergências na economia
A
defesa do “fim da polarização”, da maneira como colocada pelo dirigente
petista, aparenta ter grande contraste com a extrema-direita, mas revela o seu
contrário quando o debate chega à economia. A pregação de Edinho Silva tem como
meta resolver um problema de médio prazo – articular uma frente eleitoral que
se oponha ao neofascismo em 2026 – e não realizar mudanças profundas na
estrutura institucional do país. Deveria haver uma continuidade lógica entre as
duas iniciativas – eleições e mudanças –, mas não é o que ocorre.
Ao
mesmo tempo, ver a polarização com o maior dos males da Terra pode embutir um
misto de ilusão, oportunismo e tergiversação diante de um quadro de riscos
colocados para a democracia brasileira. Se raciocinarmos que as propostas da
extrema-direita são incompatíveis com a institucionalidade, a polarização
torna-se necessidade vital. É algo a ser acentuado – e não lamentado – para que
a população tenha clareza do que está em jogo e possa fazer escolhas com
clareza. A experiência do governo Bolsonaro mostra o caráter golpista,
autoritário, elitista, negacionista, excludente e submisso ao imperialismo da
extrema direita. Como não polarizar com um regime desses?
A visão
de que a polarização deve ser evitada coloca na mesa pelo menos três problemas.
O
primeiro denota que apesar de todas as tentativas de se encontrar diferenças na
condução econômica entre as principais forças políticas do país, o que se
percebe é o contrário. Há grande convergência – num arco que vai do centro à
extrema direita – sobre a necessidade de um ajuste fiscal permanente e
redentor, que submeta a ação do Estado à alta-finança.
O
segundo problema reside no fato de os contrários à polarização não deixarem
claras as bases para a construção de uma hipotética unidade de forças. Da parte
da grande mídia e da direita, parece haver certo saudosismo dos tempos do
chamado “pensamento único”, utopia neoliberal derivada da famosa frase da ex-primeira-ministra
britânica Margaret Thatcher, “Não há alternativa”.
O
terceiro é que “polarização” não é algo ou alguém dotado de vontade própria,
capaz de impor pontos de vista, como se fosse um ser racional. Reclamar da
“polarização” é como lamentar “a briga”, “o desentendimento” ou a “falta de
amor” entre as pessoas. “Polarização” é uma relação de oposição entre dois
polos, dois pontos de vista, duas condutas.
Com
base nesses três pontos, vale perguntar: existe essa oposição real no que
interessa – nos projetos econômicos – entre a frente liderada pelo PT e as
forças aglutinadas em torno de Jair Bolsonaro? Ambas têm como pedra de toque,
em maior ou menor grau, políticas de austeridade.
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O consenso neoliberal
A
fabricação do consenso neoliberal na sociedade é condição essencial para sua
aplicação. Se pensarmos friamente, não é fácil convencer o eleitorado de que
cortes em verbas de Educação e Saúde, venda de empresas públicas eficientes e
perdas de direitos sociais representam vantagens para as maiorias. Não se trata
de uma convergência à qual se chega pelo livre curso de ideias e debates
públicos, mas através de uma sólida unidade entre diversos setores do grande
capital (o que inclui a mídia e as big techs).
Essa
coalizão tem como tarefa principal repetir num uníssono um conjunto de meias
verdades e valores duvidosos sem contrapontos. Não falta o uso desmedido da
força para sua imposição. Vozes dissonantes foram desqualificadas,
ridicularizadas e até eliminadas para a fabricação do grande consenso, que
ganhou ares de novo valor civilizatório.
A atual
hegemonia neoliberal foi alcançada através da adesão de parte significativa da
esquerda. Não nos esqueçamos do papel que tiveram o Partido Trabalhista
britânico, o Partido Socialista Operário Espanhol, os Partidos Socialistas
francês, italiano e chileno e o peronismo nos anos 1980-90. No caso brasileiro,
o modelo neoliberal foi imposto à sociedade a partir do primeiro governo de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), tido à época como progressista, e jamais
teve suas medidas contestadas na prática pelas administrações do Partido dos
Trabalhadores.
O
neoliberalismo foi implantado em boa parte do mundo nos anos 1980-90 e vive uma
segunda e mais agressiva fase a partir de crise de 2008. Novas modalidades de
golpes começaram a surgir na América Latina, através de instâncias do
Judiciário e do Legislativo, com auras de legalidade incontestes, como em
Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016). A articulação para a
deflagração do impeachment contra a ex-presidenta Dilma
Rousseff envolveu múltiplos atores no campo dos três Poderes e a nata do
capital financeiro e do agronegócio. Foi a famosa frente “com o Supremo e com
tudo”, como bem sintetizou o ex-senador Romero Jucá.
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A ponte ampla
Meses
antes do golpe, no final de outubro de 2015, a direita brasileira colocou na
rua sua síntese programática, centrada na pauta econômica. Apesar de Dilma ter
entregue quase todas as exigências do mundo financeiro, como um ajuste fiscal
que elevou a taxa de desemprego de 6,6% em dezembro de
2014 para 11,3%, em março de 2016 (IBGE), o topo da pirâmide social
queria mais. Esse “mais” ficou conhecido sob o título de “Uma ponte para o
futuro”.
Embalado
num livreto de 20 páginas, seu texto resumia um agressivo programa ortodoxo,
que compreendia, entre outras coisas, o seguinte: “É necessário em primeiro
lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos
gastos com saúde e com educação. (p. 9) (…) Outro elemento para o novo
orçamento tem que ser o fim de todas as indexações, seja para salários,
benefícios previdenciários e tudo o mais. (p. 10) (…)
“O
primeiro objetivo de uma política de equilíbrio fiscal é interromper o
crescimento da dívida pública, para, em seguida, iniciar o processo de sua
redução como porcentagem do PIB. O instrumento normal para isso é a obtenção de
um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o crescimento
do próprio PIB. (p. 13) (…) [Será preciso] executar uma política de
desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de
ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de
logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços
públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo,
dando-se a Petrobras o direito de preferência”.
O
“Ponte para o futuro” é uma formulação programática, cujos limites não deveriam
ser desrespeitados por governo algum. O arrazoado apresentado pelo PMDB,
elaborado por alguns dos melhores cérebros do mundo do dinheiro, funcionou como
uma espécie de projeto de constituinte financeira para a reestruturação do
Estado brasileiro. É uma obra em andamento, que não admite retrocessos nas
medidas adotadas.
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Baliza para reformas regressivas
O
documento se constituiu na baliza para as reformas trabalhista e
previdenciária, o teto de gastos e o arcabouço fiscal, as privatizações da
Eletrobrás, da BR Distribuidora, do saneamento, das parcerias público-privadas
(PPPs), dos programas de parcerias de investimento (PPIs), das concessões de
infraestrutura (portos, aeroportos e estradas), da autonomia do Banco Central
etc. São alterações para subordinar o poder público às dinâmicas do mercado
financeiro e da agroeconomia de exportação.
A
ministra Simone Tebet, do Planejamento, em entrevista à jornalista Míriam
Leitão no último 12 de março, mostrou a rota do consenso pretendido para os
próximos anos: “Em 2027, seja quem for o próximo presidente, ele não governa
com esse arcabouço fiscal sem gerar inflação, dívida pública e detonar a
economia. Então nós temos uma janela de oportunidade, que não é agora e nem às
vésperas das eleições de 2026”, pois ninguém quer tratar disso às vésperas da
disputa, afirma a ministra.
A
janela de oportunidade, segundo ela, virá após o pleito, “seja o presidente
Lula candidato, seja outro candidato, [a tarefa é] fazer o dever fiscal, cortar
gastos, (…) fazer um arcabouço mais rigoroso, que não mate o paciente, mas que
garanta sustentabilidade para baixar a dívida, os juros, a inflação e faça a
economia crescer”.
Seja
qual for o governo eleito, a condução econômica deve permanecer intocada, como
se opções de investimentos e alocações de recursos públicos fossem realizadas a
partir de obscuras diretrizes “técnicas”, a exemplo do que propagam operadores
de mercado e membros da área econômica do governo.
Vale
sempre perguntar “Técnicas em favor de quem?”, como observou o cientista
político Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019), num pequeno e profético
livro intitulado Quem dará o golpe no Brasil?, lançado em 1962.
Simone Tebet na prática propõe um golpe consensual entre as grandes forças
políticas com representação parlamentar, para engessar a próxima administração.
Diante
dessa abrangente somatória de pressões, esforços, consentimentos e
concordâncias na aplicação do programa que embalou o golpe contra Dilma, como
se pode falar que o traço principal da vida brasileira seja uma “polarização”
que não se revela na política econômica?
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Grandes interesses intocados
O
consenso – e não a polarização – resulta de escolhas feitas para não se
colocarem em risco interesses seculares. Em maior ou menor grau, todas elas,
nos últimos 30 anos, aprofundaram medidas liberalizantes, enfraqueceram
estruturas de Estado nas áreas sociais e de promoção do desenvolvimento.
Ao
mesmo tempo, o consenso pela austeridade fiscal é um gerador de tensões e
instabilidades, pois implica a sobreposição dos interesses de uma minoria
abastada sobre os da maioria da população. Mais do que tudo, sua imposição
acima de orientações partidárias geralmente leva governos eleitos com grande
expectativa popular a frustrarem suas bases sociais, contribuindo para o senso
comum de que “políticos são todos iguais”.
O
terceiro governo Lula é resultado da constituição de uma ampla frente política
entre contrários, foi essencial para se derrotar a extrema direita, numa
situação delicada da vida nacional. Embora a face visível dessa coalizão seja
marcada pela presença de lideranças conservadoras, a convergência real envolveu
fatia considerável do PIB brasileiro, um amplo espectro partidário, da esquerda
à direita tradicional, passando por golpistas de 2016 e setores desgarrados da
extrema direita.
No
entanto, ao longo do primeiro ano de gestão, ficou claro que a ampla frente
tinha como amálgama unificador um severo programa de cortes de gastos, que se
aproxima do “Ponte para o futuro”. Embora o governo seja tomado por interesses
privados, em especial no Ministério da Educação, que existam compromissos de
não se tocar em setores como Forças Armadas, ou em concessões na área de
infraestrutura, que sua política externa seja errática e que a política de
comunicação siga priorizando relações com a mídia tradicional, com destaque
para a Rede Globo, entre outras iniciativas, o governo Lula tem
marcadas diferenças com a gestão Bolsonaro, na esfera política. No que toca à
democracia, a gestão petista busca se colocar em terreno oposto ao do
ex-capitão.
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O golpe como ameaça real
Não se
podem minimizar as ameaças que rondam o país, desde a tentativa golpista de 8
de janeiro de 2023, até a permanente presença da extrema direita como fenômeno
de massas na sociedade. A vitória de Norte a Sul do reacionarismo radical nas
eleições municipais de 2024 é expressão desse enraizamento.
Se a
polarização não é estrutural nas disputas, qual o motivo da disseminação do
ódio e da ameaça autoritária na sociedade? Tudo indica existir uma espécie de
briga de torcidas eleitorais nas redes e nas ruas, estimulada e fortalecida por
cúpulas partidárias que buscam a todo custo despolitizar as eleições de 2026,
tirando de cena uma real disputa de rumos. O confronto entre o que se pode
chamar de neoliberalismo progressista e a extrema-direita é uma disputa para se
ver quem aplica de forma mais eficiente e com menos conflito social o programa
do financismo.
Diante
desse dilema, vem a clássica pergunta: o que fazer? Vale destacar que o
presidente Lula – como constata com grande apuro o ex-ministro José Dirceu –
comanda um governo de centrodireita, sem qualquer expectativa de transformação
da estrutura social brasileira. Ainda assim, para a maioria da população, o
atual governo é de esquerda e seus principais oponentes estão na direita. É
muito difícil que uma candidatura nucleada pelo lulismo seja ultrapassada pela
esquerda, tendência de reduzida expressão na sociedade e nos partidos com
representação no Congresso.
O
enfrentamento eleitoral de 2026, embalado por inteligência artificial, jogo
bruto das big techs e tiktoquização programática se dará no
terreno da baixaria, das fake news, das pautas carolas, moralistas
e repleta de ataques pessoais. É pouco provável que a política esteja no posto
de comando das grandes candidaturas. Ao mesmo tempo, há chances mínimas do
governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de
mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia.
Apesar
disso, se a desaceleração planejada pela equipe econômica não sair do controle
e se for ampliado algum tipo de alívio material na base da sociedade, será
possível enfrentar com chances a extrema direita. Há dois anos havia condições
de mudança e o presente poderia ser diferente, mesmo com o crescimento do
neofascismo pelo mundo. Antes de 2026 há que se disputar os dias que correm.
Fonte: Jornal GGN/A Terra é Redonda

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