quarta-feira, 16 de abril de 2025

Paulo Kliass: Bolsa Família e Bolsa Banqueiro

A verdadeira obsessão com que o Ministro da Fazenda (MF) veio abraçando a causa da austeridade fiscal desde o início do terceiro mandato do Presidente Lula tem provocado graves e danosas consequências para a grande maioria do povo brasileiro. Além disso, as medidas de corte de gastos e de compressão da capacidade de despesas orçamentárias operam como obstáculo para a retomada do processo de desenvolvimento econômico, social e ambiental. Finalmente, as próprias pesquisas de opinião têm revelado de forma inequívoca o impacto negativo da política de cortes, cortes e mais cortes sobre a popularidade do governo e do primeiro mandatário da República.

A estratégia de não promover a simples revogação do Teto de Gastos de Temer, tal como prometido por Lula durante a campanha eleitoral em 2022, foi uma trilha sugerida por Haddad ao seu futuro chefe. Com isso, o professor do INSPER buscava se credenciar junto à nata do financismo como um interlocutor confiável – a velha mania de se travestir no suprassumo do bom mocismo. Ou seja, coloca-se em prática uma traição vergonhosa às expectativas de mudança tão somente para agradar às forças que eram, até pouco tempo antes, consideradas adversárias de um projeto de governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

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A substituição da Emenda Constitucional 95/16 foi operada por meio da votação da Lei Complementar 200/23. Assim, as regras de austeridade foram retiradas do texto constitucional e transferidas automaticamente para o Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Apesar de mais branda, a nova modalidade austericida mantém a essência de obtenção de superávit nas contas públicas a todo o custo, assim como não altera em nenhum milímetro a lógica do resultado fiscal primário. Ou seja, todo o esforço fiscal permanece centrado sobre a redução das despesas da área social e dos investimentos. Isso significa que as despesas financeiras continuam se mantendo fora de qualquer tipo de controle.

<><> Teto de Gastos do Temer e Teto do Haddad

A arquitetura do Teto de Gastos do Haddad prevê que as despesas orçamentárias não-financeiras só possam crescer a um ritmo equivalente a 70% do verificado na elevação das receitas. Dessa forma, a busca de resultado primário positivo nas contas públicas pressupõe a redução permanente dos valores relativos dos gastos com as políticas sociais e com a recuperação das capacidades estatais. Este cenário se vê ainda mais agravado pela disposição do responsável pela economia em buscar metas irrealizáveis, tal como essa ideia absurda e equivocada de zerar o déficit primário. O resultado é um conjunto amplo de propostas do governo que afetam seriamente as condições de vida da grande maioria da população, em especial aquelas camadas que foram essenciais para a vitória apertada de Lula sobre Bolsonaro em outubro de 2022.

Por outro lado, o titular do MF convenceu Lula a não cumprir outra promessa de campanha, aquela relativa ao reajuste do salário-mínimo envolvendo a reposição da inflação e um ganho equivalente ao crescimento do PIB. Como a equipe da Fazenda opera com um conceito quase secreto chamado “PIB potencial”, nada pode crescer mais do que os 2,5% presentes no próprio NAF. Ou seja, mesmo se a economia brasileira crescesse a um ritmo anual de 4%, por exemplo, os gastos orçamentários só poderiam aumentar 2,5%. Uma loucura! Em seguida vieram medidas impressionantes e inimagináveis, como a redução paulatina do abono salarial e regras para o cerceamento do acesso ao próprio Benefício de Prestação Continuada (BPC). Ou seja, em nome do respeito sacrossanto às regras auto-impostas da austeridade fiscal, o governo vai minando suas bases de apoio e de sustentação política e eleitoral.

A maldade haddadiana mais recente refere-se ao Bolsa Família (BF). Trata-se de um programa muito relevante em termos de políticas públicas dirigidas à base da nossa pirâmide da desigualdade. Junto com a política de valorização do salário-mínimo, ele foi um dos principais fatores do sucesso observado ao longo dos dois primeiros mandatos de Lula, entre 2003 e 2010. Porém, no esforço generalizado para conter gastos orçamentários e cumprir as metas que o governo impôs para si mesmo, acaba sobrando até para penalizar um programa que é reconhecido internacionalmente como exemplo exitoso para implementação de políticas públicas inclusivas.

<><> Ataques ao Bolsa Família

A equipe econômica já havia tentado eliminar as garantias constitucionais para os programas de saúde e educação. Como ainda não conseguiram convencer Lula a retirar os pisos para ambos previstos na Constituição, resta aprofundar as maldades nas demais áreas. No caso do BF, as medidas pretendem retirar direitos de as famílias prosseguirem recebendo por um certo período os benefícios previstos no programa. Em nome de um suposto gesto de maior eficiência (quem não se lembra do discurso da direita de que “não basta dar o peixe, é preciso ensinar a pescar”?) o resultado para 2025 será um corte anunciado – com muita pompa e orgulho – de R$ 7,7 bi no BF.

Ora, apesar de todo o esforço empreendido nesta verdadeira cruzada contra os gastos sociais, o que mais chama a atenção é que o governo nada faz quanto aos gastos ditos “não-primários”. Sim, pois permanece intacta a herança nefasta que vem ainda da época dos governos de Fernando Henrique Cardoso. A ideia de que o esforço austericida deve se ater à dimensão não-financeira. Com isso, as despesas com juros da dívida pública, por exemplo, ficam intocáveis. Por oposição ao BF, deveriam ser chamadas de Bolsa Banqueiro.

O mais recente Boletim das Estatísticas Fiscais divulgado pelo Banco Central (BC) traz as informações consolidadas até o mês de fevereiro passado. E ali se pode perceber que, apenas durante os 20 dias úteis daquele mês, o governo transferiu um pouco mais de R$ 78 bilhões ao seleto grupo de detentores de títulos da dívida do Estado brasileiro. Ou seja, a cada dia as contas governamentais direcionaram R$ 3,9 bi ao tipo de despesa mais parasita que existe em nossas terras. E ainda mais trágico: em apenas 2 dias foi gasto a esse título mais do que todo o esforço realizado sobre o Bolsa Família ao longo de um ano inteiro. Uma completa inversão de valores para qualquer tipo de governo que se pretenda minimamente progressista.

<><> Benefícios ao Bolsa Banqueiro

Considerando-se os últimos 12 meses, o volume total das despesas com juros da dívida pública atingiu o valor de R$ 924 bi. Esse montante equivale uma média mensal igualmente de R$ 78 bi. Um verdadeiro escândalo! O total, por incrível que pareça, ainda consegue ser menor do que o observado ao longo do ano de 2024. Entre janeiro e dezembro do ano passado, a cifra atingiu seu recorde, com quase um trilhão – R$ 950 bi. Isso significa que a rubrica “Juros pagos” continua ocupando o lugar de conta mais deficitária do governo federal.  O interessante é que quando a imprensa conservadora escancara as suas manchetes para criticar a suposta gastança da administração pública, nunca se vê nenhuma menção a tal dispêndio.

Nem mesmo a conta previdenciária consegue ser tão deficitária quanto a Bolsa Banqueiro. Por mais que o INSS seja o saco de pancada preferido de onze a cada dez “especialistas” em finanças públicas a soldo do financismo em nosso País, o fato é que os maiores saldos negativos são dos juros. De acordo com as informações do próprio Tesouro Nacional, em 2024 a diferença entre receitas e despesas previdenciárias foi de R$ 304 bi. Isso porque o total da arrecadação somou R$ 654 bi, enquanto os compromissos com o pagamento de benefícios atingiram R$ 958 bi. Já a conta de juros, por definição, não apresenta receitas – ela é absolutamente deficitária.

A grande diferença refere-se ao impacto macroeconômico de tais despesas e os seus resultados em termos de redução da desigualdade social e econômica que nos assola. O próprio Boletim da Dívida Pública publicado pelo Tesouro Nacional aponta os principais detentores dos títulos do endividamento do Estado: bancos, instituições financeiras e fundos de investimento. Ou seja, trata-se de um gasto altamente regressivo, destinado a setores do topo de nossa sociedade.

Já os recursos previdenciários são distribuídos para mais de 40 milhões de indivíduos, a grande maioria da base de nossa sociedade. Segundo o Boletim divulgado pelo Ministério da Previdência, 70% dos benefícios previdenciários são iguais ou inferiores a um salário-mínimo, sendo que 86% deste total chega a atingir 2 salários-mínimos mensais. Ou seja, trata-se claramente de um gasto de natureza mais progressiva e que termina por retornar aos cofres públicos soba forma de tributos, pois a capacidade de poupança dessas faixas de renda é zero. Tudo é consumido e a nossa estrutura tributária é muito focada sobre o consumo.

Lula precisa decidir qual prioridade deve ser concedida por seu governo no final de seu terceiro mandato. Bolsa Família ou Bolsa Banqueiro? Se ele continuar deixando que esse tipo de decisão estratégica permaneça em mãos de Fernando Haddad, nós sabemos qual o destino a ser dado aos recursos públicos.

¨      O consenso neoliberal. Por Gilberto Maringoni

No início de março, em evento na sede do BTG Pactual, Edinho Silva, ex-prefeito de Araraquara e candidato a presidente do Partido dos Trabalhadores, debateu a situação do país e do governo Lula com representantes do sistema financeiro. Em meio à defesa de maior aproximação da administração federal com o mercado, o petista enfatizou: “Com a polarização não há racionalidade, com a polarização não se concebe (…) uma agenda de unidade para o país, independentemente de divergências partidárias”.

A “polarização”, tida como grande mal da vida política, tem aparecido em editoriais, artigos de opinião e declarações de líderes políticos e intelectuais brasileiros com ênfase crescente. O que significa acabar com a polarização num dos países mais desiguais do mundo?

<><> Convergências na economia

A defesa do “fim da polarização”, da maneira como colocada pelo dirigente petista, aparenta ter grande contraste com a extrema-direita, mas revela o seu contrário quando o debate chega à economia. A pregação de Edinho Silva tem como meta resolver um problema de médio prazo – articular uma frente eleitoral que se oponha ao neofascismo em 2026 – e não realizar mudanças profundas na estrutura institucional do país. Deveria haver uma continuidade lógica entre as duas iniciativas – eleições e mudanças –, mas não é o que ocorre.

Ao mesmo tempo, ver a polarização com o maior dos males da Terra pode embutir um misto de ilusão, oportunismo e tergiversação diante de um quadro de riscos colocados para a democracia brasileira. Se raciocinarmos que as propostas da extrema-direita são incompatíveis com a institucionalidade, a polarização torna-se necessidade vital. É algo a ser acentuado – e não lamentado – para que a população tenha clareza do que está em jogo e possa fazer escolhas com clareza. A experiência do governo Bolsonaro mostra o caráter golpista, autoritário, elitista, negacionista, excludente e submisso ao imperialismo da extrema direita. Como não polarizar com um regime desses?

A visão de que a polarização deve ser evitada coloca na mesa pelo menos três problemas.

O primeiro denota que apesar de todas as tentativas de se encontrar diferenças na condução econômica entre as principais forças políticas do país, o que se percebe é o contrário. Há grande convergência – num arco que vai do centro à extrema direita – sobre a necessidade de um ajuste fiscal permanente e redentor, que submeta a ação do Estado à alta-finança.

O segundo problema reside no fato de os contrários à polarização não deixarem claras as bases para a construção de uma hipotética unidade de forças. Da parte da grande mídia e da direita, parece haver certo saudosismo dos tempos do chamado “pensamento único”, utopia neoliberal derivada da famosa frase da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, “Não há alternativa”.

O terceiro é que “polarização” não é algo ou alguém dotado de vontade própria, capaz de impor pontos de vista, como se fosse um ser racional. Reclamar da “polarização” é como lamentar “a briga”, “o desentendimento” ou a “falta de amor” entre as pessoas. “Polarização” é uma relação de oposição entre dois polos, dois pontos de vista, duas condutas.

Com base nesses três pontos, vale perguntar: existe essa oposição real no que interessa – nos projetos econômicos – entre a frente liderada pelo PT e as forças aglutinadas em torno de Jair Bolsonaro? Ambas têm como pedra de toque, em maior ou menor grau, políticas de austeridade.

<><> O consenso neoliberal

A fabricação do consenso neoliberal na sociedade é condição essencial para sua aplicação. Se pensarmos friamente, não é fácil convencer o eleitorado de que cortes em verbas de Educação e Saúde, venda de empresas públicas eficientes e perdas de direitos sociais representam vantagens para as maiorias. Não se trata de uma convergência à qual se chega pelo livre curso de ideias e debates públicos, mas através de uma sólida unidade entre diversos setores do grande capital (o que inclui a mídia e as big techs).

Essa coalizão tem como tarefa principal repetir num uníssono um conjunto de meias verdades e valores duvidosos sem contrapontos. Não falta o uso desmedido da força para sua imposição. Vozes dissonantes foram desqualificadas, ridicularizadas e até eliminadas para a fabricação do grande consenso, que ganhou ares de novo valor civilizatório.

A atual hegemonia neoliberal foi alcançada através da adesão de parte significativa da esquerda. Não nos esqueçamos do papel que tiveram o Partido Trabalhista britânico, o Partido Socialista Operário Espanhol, os Partidos Socialistas francês, italiano e chileno e o peronismo nos anos 1980-90. No caso brasileiro, o modelo neoliberal foi imposto à sociedade a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), tido à época como progressista, e jamais teve suas medidas contestadas na prática pelas administrações do Partido dos Trabalhadores.

O neoliberalismo foi implantado em boa parte do mundo nos anos 1980-90 e vive uma segunda e mais agressiva fase a partir de crise de 2008. Novas modalidades de golpes começaram a surgir na América Latina, através de instâncias do Judiciário e do Legislativo, com auras de legalidade incontestes, como em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016). A articulação para a deflagração do impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff envolveu múltiplos atores no campo dos três Poderes e a nata do capital financeiro e do agronegócio. Foi a famosa frente “com o Supremo e com tudo”, como bem sintetizou o ex-senador Romero Jucá.

<><> A ponte ampla

Meses antes do golpe, no final de outubro de 2015, a direita brasileira colocou na rua sua síntese programática, centrada na pauta econômica. Apesar de Dilma ter entregue quase todas as exigências do mundo financeiro, como um ajuste fiscal que elevou a taxa de desemprego de 6,6% em dezembro de 2014 para 11,3%, em março de 2016 (IBGE), o topo da pirâmide social queria mais. Esse “mais” ficou conhecido sob o título de “Uma ponte para o futuro”.

Embalado num livreto de 20 páginas, seu texto resumia um agressivo programa ortodoxo, que compreendia, entre outras coisas, o seguinte: “É necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação. (p. 9) (…) Outro elemento para o novo orçamento tem que ser o fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais. (p. 10) (…)

“O primeiro objetivo de uma política de equilíbrio fiscal é interromper o crescimento da dívida pública, para, em seguida, iniciar o processo de sua redução como porcentagem do PIB. O instrumento normal para isso é a obtenção de um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o crescimento do próprio PIB. (p. 13) (…) [Será preciso] executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência”.

O “Ponte para o futuro” é uma formulação programática, cujos limites não deveriam ser desrespeitados por governo algum. O arrazoado apresentado pelo PMDB, elaborado por alguns dos melhores cérebros do mundo do dinheiro, funcionou como uma espécie de projeto de constituinte financeira para a reestruturação do Estado brasileiro. É uma obra em andamento, que não admite retrocessos nas medidas adotadas.

<><> Baliza para reformas regressivas

O documento se constituiu na baliza para as reformas trabalhista e previdenciária, o teto de gastos e o arcabouço fiscal, as privatizações da Eletrobrás, da BR Distribuidora, do saneamento, das parcerias público-privadas (PPPs), dos programas de parcerias de investimento (PPIs), das concessões de infraestrutura (portos, aeroportos e estradas), da autonomia do Banco Central etc. São alterações para subordinar o poder público às dinâmicas do mercado financeiro e da agroeconomia de exportação.

A ministra Simone Tebet, do Planejamento, em entrevista à jornalista Míriam Leitão no último 12 de março, mostrou a rota do consenso pretendido para os próximos anos: “Em 2027, seja quem for o próximo presidente, ele não governa com esse arcabouço fiscal sem gerar inflação, dívida pública e detonar a economia. Então nós temos uma janela de oportunidade, que não é agora e nem às vésperas das eleições de 2026”, pois ninguém quer tratar disso às vésperas da disputa, afirma a ministra.

A janela de oportunidade, segundo ela, virá após o pleito, “seja o presidente Lula candidato, seja outro candidato, [a tarefa é] fazer o dever fiscal, cortar gastos, (…) fazer um arcabouço mais rigoroso, que não mate o paciente, mas que garanta sustentabilidade para baixar a dívida, os juros, a inflação e faça a economia crescer”.

Seja qual for o governo eleito, a condução econômica deve permanecer intocada, como se opções de investimentos e alocações de recursos públicos fossem realizadas a partir de obscuras diretrizes “técnicas”, a exemplo do que propagam operadores de mercado e membros da área econômica do governo.

Vale sempre perguntar “Técnicas em favor de quem?”, como observou o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019), num pequeno e profético livro intitulado Quem dará o golpe no Brasil?, lançado em 1962. Simone Tebet na prática propõe um golpe consensual entre as grandes forças políticas com representação parlamentar, para engessar a próxima administração.

Diante dessa abrangente somatória de pressões, esforços, consentimentos e concordâncias na aplicação do programa que embalou o golpe contra Dilma, como se pode falar que o traço principal da vida brasileira seja uma “polarização” que não se revela na política econômica?

<><> Grandes interesses intocados

O consenso – e não a polarização – resulta de escolhas feitas para não se colocarem em risco interesses seculares. Em maior ou menor grau, todas elas, nos últimos 30 anos, aprofundaram medidas liberalizantes, enfraqueceram estruturas de Estado nas áreas sociais e de promoção do desenvolvimento.

Ao mesmo tempo, o consenso pela austeridade fiscal é um gerador de tensões e instabilidades, pois implica a sobreposição dos interesses de uma minoria abastada sobre os da maioria da população. Mais do que tudo, sua imposição acima de orientações partidárias geralmente leva governos eleitos com grande expectativa popular a frustrarem suas bases sociais, contribuindo para o senso comum de que “políticos são todos iguais”.

O terceiro governo Lula é resultado da constituição de uma ampla frente política entre contrários, foi essencial para se derrotar a extrema direita, numa situação delicada da vida nacional. Embora a face visível dessa coalizão seja marcada pela presença de lideranças conservadoras, a convergência real envolveu fatia considerável do PIB brasileiro, um amplo espectro partidário, da esquerda à direita tradicional, passando por golpistas de 2016 e setores desgarrados da extrema direita.

No entanto, ao longo do primeiro ano de gestão, ficou claro que a ampla frente tinha como amálgama unificador um severo programa de cortes de gastos, que se aproxima do “Ponte para o futuro”. Embora o governo seja tomado por interesses privados, em especial no Ministério da Educação, que existam compromissos de não se tocar em setores como Forças Armadas, ou em concessões na área de infraestrutura, que sua política externa seja errática e que a política de comunicação siga priorizando relações com a mídia tradicional, com destaque para a Rede Globo, entre outras iniciativas, o governo Lula tem marcadas diferenças com a gestão Bolsonaro, na esfera política. No que toca à democracia, a gestão petista busca se colocar em terreno oposto ao do ex-capitão.

<><> O golpe como ameaça real

Não se podem minimizar as ameaças que rondam o país, desde a tentativa golpista de 8 de janeiro de 2023, até a permanente presença da extrema direita como fenômeno de massas na sociedade. A vitória de Norte a Sul do reacionarismo radical nas eleições municipais de 2024 é expressão desse enraizamento.

Se a polarização não é estrutural nas disputas, qual o motivo da disseminação do ódio e da ameaça autoritária na sociedade? Tudo indica existir uma espécie de briga de torcidas eleitorais nas redes e nas ruas, estimulada e fortalecida por cúpulas partidárias que buscam a todo custo despolitizar as eleições de 2026, tirando de cena uma real disputa de rumos. O confronto entre o que se pode chamar de neoliberalismo progressista e a extrema-direita é uma disputa para se ver quem aplica de forma mais eficiente e com menos conflito social o programa do financismo.

Diante desse dilema, vem a clássica pergunta: o que fazer? Vale destacar que o presidente Lula – como constata com grande apuro o ex-ministro José Dirceu – comanda um governo de centrodireita, sem qualquer expectativa de transformação da estrutura social brasileira. Ainda assim, para a maioria da população, o atual governo é de esquerda e seus principais oponentes estão na direita. É muito difícil que uma candidatura nucleada pelo lulismo seja ultrapassada pela esquerda, tendência de reduzida expressão na sociedade e nos partidos com representação no Congresso.

O enfrentamento eleitoral de 2026, embalado por inteligência artificial, jogo bruto das big techs e tiktoquização programática se dará no terreno da baixaria, das fake news, das pautas carolas, moralistas e repleta de ataques pessoais. É pouco provável que a política esteja no posto de comando das grandes candidaturas. Ao mesmo tempo, há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia.

Apesar disso, se a desaceleração planejada pela equipe econômica não sair do controle e se for ampliado algum tipo de alívio material na base da sociedade, será possível enfrentar com chances a extrema direita. Há dois anos havia condições de mudança e o presente poderia ser diferente, mesmo com o crescimento do neofascismo pelo mundo. Antes de 2026 há que se disputar os dias que correm.

 

Fonte: Jornal GGN/A Terra é Redonda

 

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