Revolução
tributária: desafiando as correntes da desigualdade e do patrimonialismo no
Brasil
O
Brasil possui uma tradição tributária regressiva, alguns tributos que a Constituição
aspirava implementar jamais tornaram-se realidade, enquanto outros incidem de
maneira draconiana sobre os que mais necessitam. Alguns elementos são de
imprescindível observância para avaliar a justiça do Direito Tributário
Brasileiro, e dentre eles está à atenção a ser dedicada ao princípio da
capacidade contributiva.
Um
sistema tributário justo perpassa pela distinção entre justiça corretiva e
distributiva de Aristóteles. Enquanto a justiça corretiva apenas recoloca os
indivíduos em sua posição original, a distributiva faz escolhas acerca daqueles
que são merecedores de uma política decisória de alocação das riquezas na
sociedade. No Estado Democrático de Direito, para além de exercer violência
sobre a coletividade, inclusive para tributar, o Estado possui a missão de
satisfazer aspirações constitucionais de gerar uma sociedade livre, justa e
solidária. Assim, a recente emenda constitucional que introduziu o princípio
constitucional da simplicidade, age no sentido de proporcionar que os objetivos
constitucionais do país sejam alcançados. Tal busca está sempre a exigir um
confronto de forças nem sempre pacífico.
Enquanto
o mundo se insurge após a imposição de tarifas de importações de produtos
provindos de todo o globo para os Estados Unidos, o Brasil desde sempre impôs
impostos proibitivos à entrada de produtos estrangeiros no país. No entanto,
jamais se cogitou iniciar uma rebelião do chá para impedir que tal coisa
ocorresse. Os tributos diretos e indiretos sobre o consumo afetam em maior
proporção os mais pobres, que em termos absolutos gastam o mesmo valor que
aquelas que possuem renda superior em múltiplos, não fazendo distinção baseada
no poder aquisitivo. Os tributos que melhor observam a capacidade contributiva
são aqueles que incidem sobre a riqueza, seja de renda ou de patrimônio.
Na
mesma linha, o Brasil tributa os ganhos da pessoa jurídica com uma tarifa amena
e, à exceção de outros dois países no mundo, não tributa os lucros e dividendos
distribuído. Tal cenário irá ser afetado, ainda que maneira suave, pela
instituição de um novo imposto voltado à tributação de altas rendas. O projeto
de lei criando hipótese de incidência vem acompanhado de uma justificativa
baseada sobretudo na quantidade modesta de indivíduos que detêm substancial
parcela da riqueza nacional. Apesar de afetar poucos, o novo tributo desagrada
um contingente vocal e influente da sociedade que, pouco dispostos em alterar o
balanço de forças e ceder diante da necessidade em destinar-se a arrecadação
gerada para corrigir as disparidades da tributação de renda de pessoas que não
possuem capacidade contributiva, utilizam seu elevado efeito de reverberação e
resistência para evitarem ser atingidos. Os mecanismos utilizados para
escaparem à mudança serão os mais variados, de reorganização societária por
planejamento tributário a opor-se diretamente à aprovação da lei, a mobilização
das elites já teve início. Para sustentar a opulência e riqueza, no Brasil,
vale tudo!
O ponto
de inflexão de tais forças surge quando o Executivo, de modo ainda sobremaneira
tímido, propõe alterar o exercício de forças trazendo um tributo inédito no
país ao tempo em que amplia a isenção entre os estratos menos providos da
sociedade. A isenção do imposto de renda para indivíduos que possuem renda
mensal de até R$ 5.000,00 (cinco mil reais) vem acompanhada do imposto sobre a
renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM. A escolha de redistribuir com base em
tal critério atende regras de ouro do Direito Tributário e Financeiro de
destinar uma contrapartida da redução de receita, individualizando uma
injustiça tributária sem precedentes a nível global, qual seja, a ausência de
incidência tributária sobre dividendos. Já não era sem tempo que a fuga de
capitais do país não fosse acompanhada da tributação sobre a parcelas dos mais
ricos, a prescindir se pessoas físicas ou jurídicas.
Nesse
cenário, o PL 1.087/2025 objetiva isentar contribuintes com uma faixa de renda
de até R$ 5.000,00 mensais. Apesar de necessária ante os efeitos corrosivos da
inflação, a medida mostra-se insuficiente para a justiça tributária que se
espera dos que mais recebem no Brasil. No intuito de mitigar tal injustiça, o
projeto vem acompanhado da nova hipótese de incidência tributária do imposto
sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM.
O
presente texto pretende trazer à discussão o cerne dos problemas de justiça
distributiva no Brasil, uma vez que reformas pontuais mantêm o país em posição
de desigualdade, tributando sobremaneira o consumo sem, contudo, atacar os
grandes detentores de renda. A transmissão de bens e renda de geração em
geração aumenta o vácuo entre os mais ricos e os desprovidos. Tal realidade se
faz evidente ao constatar que o patrimônio gerado pelos mais ricos se
multiplica enquanto entre os mais pobres se dissipa. O abismo que pervade as
classes sociais no Brasil impedem a mobilidade e ascensão social, perpetuando a
desigualdade social.
Apenas
a título ilustrativo, vale trazer a voracidade com que os entes federativos
tributam o consumo quando deveriam tributar a propriedade e a renda, tributos
cuja competência constitucional foi alocada aos estados federados e municípios,
respectivamente. Tal característica define um país desigual que impõe idêntico
sacrifício aos mais ricos e o os mais humildes, uma vez que para ter acesso a
um bem de consumo irão despender o mesmo valor a despeito da proporção que tal
produto custe a cada indivíduo. Alguns desses problemas estão na esfera
constitucional e exigirão um rearranjo total da sociedade e da federação,
outros necessitam da vontade popular e representativa em alterar a vocação
tributária do país.
• A origem do atraso: de colônia
geográfica à colônia geopolítica
A
herança colonial do país é sintetizada em algumas expressões idiomáticas como
“vá para o quinto dos infernos”, que refletem a ojeriza que o brasileiro possui
à tributação. O quinto que a Coroa exigia como tributo da mineração foi desde
sempre percebido como a usurpação do soberano de parcela que deveria ser
inteiramente direcionada à elite nacional. Aqueles que detinham um capital
criado por monopólio real julgavam-se ungidos por atributos que os distanciavam
do resto da população.
O
progresso advindo da independência e da república pouco alteraram o
patrimonialismo que marcava a economia nacional. O instituto da escravidão, que
extraía o que viria a se tornar, no sistema capitalista, de produção a
mais-valor, apropriava-se de toda a produção de riqueza sem qualquer
contrapartida, normalizando a ideia de retirar do trabalhador tudo que poderia
ser espoliado sem que com isso sobreviesse o resultado morte. Passaram-se
séculos, porém o estigma que acompanha a exploração do trabalho permanece
inalterado.
Um país
fundado na longa dicotomia de extração do trabalho escravo sem qualquer
contrapartida à dignidade humana, convivendo com a tentativa de obter ganhos
máximos pelas elites coloniais que se encontravam no território pátrio, trouxe
como resultado o desprezo pela remuneração justa e, por parte do Estado, um
apetite desmedido em arrecadar de quem não poderia nem sequer contribuir. A
noção de tributação como denominador comum de distribuição de serviços e
melhoria das condições de vida sempre foram vistas com suspeição e
desconfiança.
Segundo
o DIEESE, o salário mínimo necessário para fazer frente às pressões
inflacionárias do país corresponde a um valor superior aos R$ 7.000,00 (sete
mil reais). Portanto, a proposta de isenção de contribuintes que ganham menos
de R$ 5.000,0 (cinco mil reais) mensais visa a atender uma capacidade
contributiva inexistente. Se considerado nos cálculos os impostos sobre consumo
e serviços, além de todos os tributos indiretos, resta indubitável que a
isenção é o mínimo de política pública que tem por destinatário contribuintes
indiretos que oneram uma substancial parte da renda pagando tributos.
Acrescente-se a tal cenário a constante privatização de serviços, do público ao
privado, e obtém-se como resultado um salário esmagado pela redução do poder de
compra acompanhada pela corrosão do valor dos ganhos pela inflação.
O
trabalhador brasileiro encontra-se refém dos juros que achatam o orçamento, ao
mesmo tempo em que se endivida para fazer frente às necessidades básicas diante
da pressão de viver uma vida a crédito. Através de uma política pública
fomentada pelo próprio Estado, o sistema aprofunda as desigualdades e lança
milhões à pobreza. Contra isso, a reforma tributária consiste em um passo
decisivo à emancipação das parcelas mais vulneráveis da classe trabalhadora.
Contudo, sem que seja abandonado o ajuste fiscal e orçamentário de maneira
abrangente, não será possível alcançar os resultados almejados com as mudanças
legislativas que se aproximam.
Um dos
pilares dos instrumentos monetários à disposição da autoridade do Banco Central
consiste na política dos juros. O discurso comumente adotado pelo clássico da
economia ortodoxa está em reduzir a oferta de dinheiro que circula na economia
para conter os efeitos da inflação. Como efeito colateral, tem-se um aumento da
taxa de desocupação e uma perda de acesso ao crédito por parte do trabalhador.
O problema se põe quando a inflação afeta a população, não obstante as
políticas de juros restritivos e uma política de austeridade que age em
detrimento da classe trabalhadora.
Apesar
de positiva, a presente política de tributação não altera algumas premissas de
índole neoliberal adotadas pelo governo. A reforma tributária vem
desacompanhada de uma expansão do crédito. O argumento utilizado para alterar
apenas o aspecto tributário, porém não o de macroeconomia monetária, está em
insistir que a expansão da arrecadação e o corte de gastos públicos sejam a
única via para estabilizar a economia do país. O que, porém, se evidencia a
cada dia com maior nitidez é que metas de inflação irreais, acompanhadas de
políticas monetárias e fiscais austeras, geram como efeito final um sistema
que, não obstante todo o sacrifício imposto à classe trabalhadora, encontra-se
sempre refém do capital especulativo financeiro. Enquanto a submissão desmedida
a tais interesses não for harmonizada com um reajuste de forças que priorize a
classe trabalhadora, todo o desgaste político em aprovar uma reforma tributária
não altera a carência que a ausência de Estado gera.
Caso o
governo não abandone a política de austeridade a qualquer custo, nem mesmo uma
iniciativa legislativa tão positiva quanto tributar dividendos e os mais
abastados será capaz de modificar a dinâmica de encolhimento de uma ideia de
Estado Social. Os preços públicos ou preços que o Estado pode controlar, porque
atua diretamente na prestação do serviço ou exerce poder decisivo de como os
serviços serão prestados, são o melhor termômetro para controlar preços e
mitigar os efeitos nefastos produzidos pela corrosão do poder de compra causado
por períodos inflacionários.
• Conclusão e excertos sobre uma
necessária redução da desigualdade
A
desigualdade do país remonta à mesma razão de sua existência, a de conferir
privilégios à nobreza lusitana. Os privilegiados mudam, porém, resta inalterada
a ideia mesma de brasilidade, acompanhada da usurpação, do patrimonialismo e da
extração da riqueza tornando bens comuns em privados. O compromisso instituído
através da Constituição de 1988 encontra-se justamente em abandonar o sistema
tributário que remonta à ditadura e estabelecer um parâmetro que atenda a uma
aspiração de bem-estar coletivo. Encontrando-se o Código Tributário Nacional
ainda em vigor, a questão que fica é se a aliança oligopolizada ali formada não
foi mantida, não obstante a Constituição.
Uma
melhor compreensão do fenômeno tributário e da intercambialidade de prestações
sociais e tributárias nos conduz ao entendimento de que o Estado do Bem-estar
Social perpassa a tributação e uma correlação de forças que busque não apenas
corrigir desigualdades, mas efetivamente realizar uma redistribuição. As
prestações sociais distribuídas através do benefício básico de prestação
continuada (BPC), dos serviços públicos distribuídos à população e do acesso ao
crédito constituem parte do mesmo processo de elevação das condições de vida da
classe trabalhadora. A discussão acerca da ampliação da isenção do Imposto de
Renda e da tributação dos dividendos eram medidas imprescindíveis para iniciar
o debate acerca da desigualdade que permeia a sociedade brasileira. Contudo, o
discurso inaugura, sem que se encerre o enfrentamento de questões prementes
tais como o de conter o apetite das elites financeiras e do capital
internacional sobre a pilhagem de porção significativa do orçamento ao
pagamento de interesses da dívida. Ampliar a isenção tributária sem mexer na
austeridade mostrar-se-á placebo no futuro, pois apenas o deslocamento de
serviços na esfera estatal poderá funcionar como instrumento eficaz no controle
de preços e da inflação, permitindo que a classe trabalhadora ostente poder de
compra do salário não obstante as oscilações que o mercado constantemente
impõe.
Fonte:
Por Mariella Pittari, no Le Monde
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