‘Para inglês ver’: pecuaristas desmentem a
‘revolução verde’ da JBS
PARA
PECUARISTAS que fornecem gado para a JBS, a “revolução verde” anunciada
pela empresa é mera retórica. Ou, nas palavras deles, “para inglês ver”.
Produtores
rurais relatam que a promessa da companhia de eliminar o desmatamento da sua
cadeia produtiva até o fim deste ano está distante do que realmente acontece no
campo.
Em uma
parceria entre a Repórter Brasil, o jornal britânico The Guardian e a
Unearthed, braço de jornalismo investigativo do Greenpeace, a equipe ouviu mais
de 35 fazendeiros e profissionais do setor em três viagens pelas principais
regiões onde a JBS compra bois na Amazônia. Na lista de entrevistados estão
pecuaristas e líderes de associações de produtores de gado que representam
milhares de fazendas dos estados de Pará e Rondônia.
Com
naturalidade, muitos deles descrevem esquemas para burlar os controles. Alguns
afirmam que a empresa faz vista grossa para esses arranjos. E a grande maioria
não acredita que a JBS vá cumprir seu principal compromisso
ambiental:
limpar o desmatamento de sua cadeia de fornecedores. Para isso, seria
necessário cortar todos os fornecedores diretos ou indiretos que desmataram. O
prazo fixado pela própria empresa é dezembro de 2025.
A JBS
alardeia essa pretensão enquanto traça um plano ambicioso: entrar na listagem da
Bolsa de Nova York. A medida deve ampliar o número de investidores e engordar
ainda mais o seu faturamento, que bateu R$ 416 bilhões em 2024. Mas gera uma onda de
críticas,
dentro e fora dos Estados Unidos, pelo receio de acelerar o desmatamento na
Amazônia.
Por
isso, a empresa não tem economizado em promessas. “A revolução verde será
extraordinária”, exaltou o CEO Global
Gilberto Tomazoni em fórum da Federação das Indústrias do Estado de Santa
Catarina. Falta, porém, alinhar o discurso com os seus fornecedores.
Os
pecuaristas ouvidos pela reportagem confirmam que a empresa já começou a cortar
a maior parte das fazendas de quem não se adequou. Mas isso não significa que
elas deixaram de fornecer para a JBS. Os produtores detalham um sistema
concebido para burlar a origem do gado criado em áreas desmatadas.
Funciona
assim: quem tem problema ambiental busca alguém que não tem para servir de
intermediário na venda à JBS.
No
“greenwashing do gado”, o boi sai de áreas de proprietários que não cumprem as
regras ambientais, mas é vendido com documentos de fazendas com ficha ambiental
limpa. Em alguns casos, os animais até passam um tempo na fazenda que emite os
documentos. Em outros, essa fazenda só entra com os papéis, e o boi vai direto
da área desmatada para o abate na JBS.
As
práticas de “lavagem verde” do gado foram relatadas como algo comum, e até
banal, pelos pecuaristas e representantes do setor ouvidos pela reportagem.
Muitos admitiram usar, e pelo menos dois forneceram informações que puderam ser
comprovadas pela reportagem, a partir dos dados de trânsito dos animais entre
as fazendas e a JBS.
Ao
longo dos últimos anos, a Repórter Brasil publicou casos de
fornecedores indiretos que burlam os controles da JBS. A resposta da empresa é
sempre a mesma: a de que cortará as compras da fazenda denunciada. Dessa vez,
contudo, os nomes dos pecuaristas não serão revelados, pois as declarações
deles apontam uma falha estrutural.
Em um
caso ocorrido no Pará, um importante fornecedor da JBS conta que colocou suas
fazendas sem problemas de desmatamento no nome de um laranja e até de parente.
Desse modo, ele pode escoar seus animais criados em áreas com problemas
ambientais.
Isso
tudo é combinado com a JBS, ele relata à reportagem, pois o caminhão que leva
os animais para o abate carrega o gado “sujo” em propriedades distantes dos
locais indicados nos papéis como origem dos bois.
“O
endereço [no documento] é em uma cidade, mas as cargas são carregadas em outro
município. Eles do frigorífico sabem tudo”, afirma.
Em
outro esquema, o fazendeiro firmou um contrato com um pecuarista parceiro sem
restrições ambientais. “O gado tá saindo da terra do outro, mas só entre aspas,
né”, explica. Segundo ele, os representantes do frigorífico da JBS também têm
ciência do acordo: “já é combinado com eles”.
“Todo
mundo faz isso”, afirma, da ponta oeste da Amazônia brasileira, o presidente do
Sindicato dos Produtores Rurais de Pimenta Bueno, em Rondônia, José de Carvalho
Sobrinho. Ele se refere aos diversos esquemas criados no estado para “cumprir”
as exigências ambientais.
A
prática é tão disseminada e aberta que os pecuaristas se ressentem por terem
que fazer o “trabalho sujo”, enquanto a JBS se anuncia para o mundo como
sustentável.
“Sou
criterioso demais com horário, com documento, com tudo. Agora eu tô passando
por essa humilhação”, afirma um outro fazendeiro, do sudeste do Pará. Ele
colocou fazendas no nome de laranjas para seguir vendendo à empresa.
“O
controle de fornecedores indiretos permanece um gargalo do setor. Não é uma
coisa que surgiu agora”, afirma Paulo Barreto, pesquisador associado do Imazon
(Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia). “As empresas poderiam ter
avançado num sistema privado, mas não se avançou”.
·
Empresa
admite o problema
Procurada
pela reportagem, a JBS admite que bloquear fazendas com desmatamento não é
suficiente para impedir que o gado dessas áreas entre em seus frigoríficos.
Embora não comente a denúncia de que seus frigoríficos estariam cientes dos
casos, a empresa assume que muitos produtores encontram formas de burlar os
sistemas de controle.
Para
tentar resolver esse problema estrutural, uma das estratégias anunciadas foi
criar uma rede de 20 “Escritórios Verdes” na Amazônia e no Cerrado, oferecendo
assistência técnica gratuita a produtores para ajudá-los a se regularizar.
“Mais de 15 mil propriedades já receberam apoio técnico da JBS desde 2021”, diz
a empresa.
A
companhia contestou ainda a metodologia da reportagem: “Tirar ‘inferências’ e
conclusões a partir de uma amostra limitada de 30 fazendeiros enquanto se
desconsidera que a JBS tem mais de 40 mil fornecedores registrados é totalmente
irresponsável”, afirmou em nota.
A
empresa alega ainda que já bloqueou “dezenas de milhares” de fazendas que
violaram sua política ambiental e que mais de 80% de suas compras anuais de
gado estão integradas a uma plataforma digital. .
·
Entre
a teoria e a prática
A JBS
está enraizada na Amazônia, onde opera 22 dos seus 34 frigoríficos de bovinos
no país, segundo levantamento da Repórter Brasil com base em dados da
JBS e da Abrafrigo (Associação Brasileira de Frigoríficos). Considerando que a
pecuária é a maior fonte de desmatamento do bioma, a empresa é a que mais oferece risco
de devastação,
segundo o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).
Pelo
mesmo motivo, a companhia tem o maior potencial de impacto para frear a
destruição. Por isso, suas promessas são valiosas para a proteção da floresta e
mudanças climáticas. O desafio é medir a distância entre o discurso e a
prática.
Desde
2014, a JBS afirma que consegue garantir “conformidade” de 100% dos seus
fornecedores diretos. Isso significaria que todas as fazendas que vendem para
os seus frigoríficos sem intermediários estariam com a ficha ambiental limpa.
Mas, mesmo neste patamar teoricamente já alcançado pela empresa, são muitos os
furos.
Um dos
últimos foi em outubro, quando o Ibama flagrou a JBS comprando diretamente de
uma fazenda onde houve desmatamento ilegal com uso de fogo na Amazônia. O gado
foi comprado de modo direto – sem intermediários – da fazenda Bom Futuro entre
2022 e 2023, período em que a fazenda tinha área embargada devido ao crime
ambiental.
O
frigorífico da JBS que recebeu gado desta fazenda, em Tucumã, foi embargado
pelo órgão ambiental na Operação Carne Fria 2. Além deste frigorífico, outras
23 unidades pertencentes a outros grupos foram autuadas no Pará e no Amazonas
devido a crimes ambientais.
Procurada
sobre o caso, a JBS afirma que não comprou de áreas embargadas. “Em resposta ao
Ibama, a empresa demonstrou que as propriedades estão de acordo com a
legislação e com a política de compras da empresa”.
O caso
flagrado pelo Ibama não é isolado. Ainda em 2024, a Repórter
Brasil também denunciou um caso no Mato Grosso, onde a JBS comprou de modo
direto de fazenda embargada devido a crime ambiental pelo Ibama. Neste caso, ao ser
procurada pela reportagem, a empresa disse que suspendeu o
fornecedor preventivamente.
·
De
leste a oeste
“É a
regra do jogo”, confirma Adélio Barofaldi, um dos maiores pecuaristas de
Rondônia, ao comentar os esquemas de “lavagem verde” do gado, que beneficiam
não só a JBS, como outros frigoríficos.
Gaúcho
de origem, Barofaldi é CEO do grupo empresarial Rovema, que tem a maior cadeia
de concessionárias de caminhões e automóveis de Rondônia. É ainda presidente da
Associação PanAmazônia, formada por empresários locais e que publica
artigos defendendo Elon Musk.
O
empresário é crítico do modo como a JBS anunciou sua nova política. Para ele, a
empresa está tentando criar uma “vitrine bonita” para o mercado internacional,
sem de fato se comprometer em resolver os problemas estruturais do setor, como
apoiar pequenos produtores na busca da regularização fundiária.
Ele
compara a estratégia a um shopping center, onde o público vê apenas as vitrines
de lojas impecáveis, mas não os bastidores, com seus depósitos e áreas de carga
e descarga.
·
‘Só
eles vão ganhar dinheiro’
No
Pará, a JBS está financiando
um programa do
governo estadual que promete rastrear todo o gado desde o nascimento. A meta do
programa paraense coincide com a do frigorífico: a partir do ano que vem, todos
os animais que circularem pelo estado precisam ter um equipamento de
rastreabilidade individual, o que vai facilitar o esforço ambiental da JBS. Mas
a iniciativa também é vista com receio pelos produtores rurais.
“Sabe
pra que serve o rastreamento? Pra eles ganharem dinheiro”, afirma um pecuarista
que fornece gado considerado de alta qualidade para a JBS. “Eu vou ser
rastreado, mas pra mim não vão pagar nada [a mais]. E você, se não for, eles
vão pagar mais barato. Só eles vão ganhar dinheiro!”.
Não é
segredo que os irmãos Joesley e Wesley Batista, principais acionistas do grupo
que controla a JBS, sabem ganhar dinheiro. Segundo estimativa da Forbes, o
patrimônio acumulado dos irmãos em 2025 é de R$ 44 bilhões (7,6 bilhões de
dólares).
Também
não é a primeira vez que surgem denúncias sobre ilegalidades na empresa. Em
2017, a JBS foi alvo de duas grandes operações que revelaram pagamento de
propina a fiscais sanitários e compras de gado de
áreas desmatadas ilegalmente. Ambas as violações voltaram a ser flagradas
pelo Ibama e pela Polícia Federal em 2024.
Ainda
em 2017, enquanto a empresa respondia a outras quatro investigações por
suspeita de corrupção, o grupo assinou um acordo de delação premiada onde
admitiu uma série de subornos a políticos
e funcionários públicos, no âmbito da operação Lava Jato. A empresa recebeu a
maior multa por corrupção na história do Brasil: R$ 10,4 bilhões.
Os
irmãos admitiram terem corrompido diversos membros do governo e de partidos da
oposição. Hoje, eles contestam a validade da delação e já conseguiram uma decisão do Supremo
Tribunal Federal suspendendo
a multa.
Com a
volta do presidente Lula (PT) à Presidência, os irmãos Batista também
retornaram ao epicentro do poder. Os dois foram recebidos pelo petista no
Palácio do Planalto, integraram a comitiva presidencial em viagem à China
e receberam Lula em uma de suas
unidades, em Mato Grosso do Sul.
·
Um
outro colapso
Do modo
como o mercado da carne está organizado hoje, os pecuaristas de Rondônia e Pará
afirmam ser inviável para a JBS manter o tamanho de sua operação sem comprar de
fazendas que desmataram depois de 2008.
“Isso
vai afetar mais de 60% da produção estadual”, afirma Alex Guaitolini,
vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Rondônia. “Se isso de
fato acontecer, o nosso estado, e a Amazônia como um todo, vai entrar em
colapso”, acredita.
O termo
usado por Guaitolini é o mesmo usado por ambientalistas ao fazer alertas sobre
o ponto de não retorno da Amazônia.
Segundo os cientistas, a destruição da floresta pode abalar os seus sistemas de
regeneração. Neste caso, as áreas desmatadas se transformariam em uma espécie
de savana, sem possibilidade de reflorestamento.
Um dos
maiores obstáculos quando se busca soluções para a maior floresta tropical do
mundo é o seu histórico recente de ocupação. A vida de Guaitolini ajuda a
entender o tamanho da encrenca.
Paranaense,
ele chegou a Rondônia na década de 1980 com quatro anos. Como muitas outras,
sua família foi atraída pela promessa de terras e incentivos governamentais,
que visavam integrar a Amazônia ao restante do país. “Integrar para não
entregar” era o mote da campanha da ditadura militar.
O
pecuarista cresceu vendo Rondônia ser desmatada com incentivos do governo.
Segundo ele, a maioria dos pequenos produtores possui algum tipo de infração
ambiental em suas propriedades. Ele mesmo já recebeu três multas do Ibama por
desmatamento de área nativa, resultando em duas propriedades com 163 hectares
em áreas embargadas.
Como
muitos outros, ele teme que a mudança da política da JBS, sem apoio para a
regularização fundiária e ambiental, inviabilize a produção de carne em
Rondônia.
O
estado tem o sexto maior rebanho bovino do Brasil, com um total de 18,2 milhões
de cabeças. Com R$ 6,8 bilhões exportados em
2024 (1,16 bilhão de dólares), o setor da carne respondeu por 40% das
exportações totais, segundo dados do Idaron, a agência sanitária local.
·
Pressão
sobre os produtores
Quando
a reportagem esteve em Rondônia, em outubro, o céu estava cinza. A combinação
da seca extrema e das queimadas sufocou a população e levou Porto Velho ao
posto de capital mais devastada pelo fogo do país.
Um dos
quatro frigoríficos locais da JBS fica em Pimenta Bueno, no sul do estado. São
abatidos de 700 a 1.500 bois por dia, segundo estimativas do Imazon e do
presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Pimenta Bueno, José de
Carvalho Sobrinho.
O
representante avalia que a alta demanda da JBS coloca pressão sobre os
pecuaristas. Ao exigir garantias de origem do gado, a empresa estaria impondo
um fardo pesado a um setor que, na visão dele, carece de apoio e
orientação.
“Ninguém
orientou o produtor a preservar. Agora querem punir duas vezes: multa e ainda
tem que recuperar”, desabafa o mineiro de 78 anos, que chegou a Rondônia quando
tinha 32, depois de viver no Paraná e em Mato Grosso.
Sobrinho
argumenta que a promessa da JBS – de rastrear o gado de fornecedores indiretos
até o fim deste ano – é inviável. Para ele, a falta de regularização fundiária
em grande parte do estado é um dos obstáculos para o controle. “Cerca de 40%
das áreas de Rondônia ainda não estão legalizadas”, aponta.
Outro
pecuarista importante de Rondônia e que vocaliza os pensamentos do setor é o
coordenador da Câmara Setorial da Carne, Edson Afonso Rodrigues. Ele afirma que
os planos da JBS são inviáveis e insustentáveis, principalmente para os
pequenos produtores.
Rodrigues
argumenta que a rastreabilidade proposta pela JBS, baseada no CPF do produtor e
nas Guias de Transporte Animal, é limitada e ineficaz.
Na
visão dele, a gigante da carne deveria acompanhar o animal desde o nascimento
até o abate. Ele entende, porém, que a implementação desse sistema exigiria
investimentos que muitos produtores, especialmente os pequenos, não têm
condições de arcar.
“O
produtor já teve prejuízos enormes com essas exigências no passado. Eu mesmo
perdi vários mil reais com rastreabilidade que foi imposta lá atrás. Hoje, o
entendimento da CNA [Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil] é de que
a rastreabilidade não deve ser obrigatória e que deve haver um prazo longo para
a adequação, até que essas questões jurídicas sejam resolvidas”, lembra o
pecuarista.
Rodrigues
reconhece a existência de produtores que desmatam ilegalmente e causam
incêndios florestais, mas afirma que não se pode generalizar e criminalizar
todos os pecuaristas da região. Ele defende a necessidade de diferenciar os
infratores daqueles que produzem de forma legal e sustentável.
Casos
recorrentes envolvendo a JBS, porém, sugerem que a empresa não está fazendo
essa distinção. A Repórter Brasil revelou que, entre 2018 e
2022, a JBS comprou quase
9 mil bois de
fazendas ligadas a uma quadrilha de desmatadores em Rondônia. Quando procurada,
a empresa admitiu a conivência de seus funcionários no esquema.
Em um
caso mais recente, a reportagem denunciou em 2024 um esquema de grilagem de
terras dentro do Parque Estadual de Guajará-Mirim, em Rondônia, que envolvia
uma quadrilha acusada de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e outros crimes.
A investigação revelou que o grupo invadiu e devastou a área protegida para
criar gado, e que parte desses animais foi vendida para grandes
frigoríficos, como JBS, Marfrig e Frigon.
Esses
episódios e as declarações dos pecuaristas revelam o tamanho do desafio para a
“revolução verde” da JBS. A política ambiental da empresa, contudo, evolui
lentamente, avalia o procurador Ricardo Negrini, do Ministério Público Federal
(MPF) no Pará. “A JBS deveria ter os melhores sistemas, os melhores controles,
as melhores práticas, mas ela vem deixando a desejar.”
Fonte: Repórter Brasil

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