Essa anistia não é sobre perdão: é sobre um
projeto de poder
A cruzada pela anistia aos golpista do 8 de
Janeiro, independentemente de seu desfecho, representa um sucesso estrondoso
para a extrema direita. E agora estamos vendo esse avanço se consolidar. O
debate público sobre anistiar ou não os envolvidos no 8 de janeiro, longe de
ser uma disputa jurídica legítima, vem sendo cuidadosamente armado como uma
operação psicológica de longo curso. Trata-se de um script que aposta no
desgaste institucional prolongado, na saturação cognitiva da opinião pública e,
sobretudo, na construção de um imaginário de perseguição política contra a
direita, ainda que essa “direita” tenha atentado frontalmente contra a ordem
democrática.
A questão central aqui não é a possibilidade
de Bolsonaro ou seus aliados serem anistiados. O que está em jogo não é o
veredito final, mas sim o percurso narrativo até ele. O bolsonarismo entendeu
perfeitamente a lógica da guerra híbrida: transformar cada espaço institucional
em uma arena de combate simbólico. A CPI dos atos de 8 de Janeiro, as denúncias
da PGR, os julgamentos no STF, os embates no Congresso, tudo é manipulado para
compor um roteiro de guerra psicológica onde o “cidadão de bem” é retratado como
vítima de um sistema repressivo, corrupto e injusto. Essa é a lógica da psyop,
e ela está operando com força total. O alvo é mais ambicioso: criar uma
atmosfera crônica de instabilidade institucional até 2026, tornando inviável
qualquer possibilidade de uma eleição democrática plena. Uma eleição marcada
por suspeitas, ruídos, desconfianças, sabotagens e paralisações, essa é a
vitória real do projeto autoritário. E não importa se Bolsonaro estará preso,
inelegível ou no Palácio do Planalto. O que importa é manter o país no caos
narrativo. O verdadeiro objetivo da extrema direita é garantir o controle
máximo sobre o poder legislativo, onde reside hoje o centro real de poder no
Brasil. É ali que se delibera sobre políticas públicas, se conduz o impeachment
de ministros do Supremo, se bloqueia ou impõe pautas de governo, e se torna
possível, com maioria regimental, inviabilizar por completo qualquer tentativa
de governar que não esteja alinhada aos interesses desse bloco autoritário. O
Executivo pode até ser ocupado por um adversário, mas se o Parlamento estiver
sitiado por extremistas, a democracia se transforma em teatro. Esse é o
projeto: instalar uma engrenagem institucional travada, disfuncional, incapaz
de promover qualquer avanço popular ou progressista, enquanto o discurso do
“governo comunista que não deixa o Brasil andar” é martelado diariamente nas
redes e nas tribunas. Uma estratégia de guerra por dentro da legalidade, onde a
aparência democrática serve para encobrir o colapso planejado das instituições.
Essa estratégia é mais velha do que andar pra
frente, mas ela se renova e segue o manual das novas direitas globais que
aprenderam a manipular algoritmos, criar bolhas de indignação permanente e
operar no limite entre legalidade e desordem. O Brasil, mais uma vez, se
consolida como um laboratório dessas táticas. E essa anistia, com todos os seus
absurdos e contradições, é o cavalo de Troia perfeito para infiltrar essa
instabilidade no coração do regime democrático.
>>> 1. O papel estratégico da
anistia como narrativa de guerra híbrida
A anistia não é apenas um dispositivo
jurídico debatido no Congresso. Ela é, antes de tudo, uma narrativa em disputa.
E, como toda narrativa mobilizada na guerra híbrida, sua função não está em
resolver um conflito institucional, mas em perpetuar o conflito no imaginário
coletivo. O que a extrema direita conseguiu fazer, com precisão estratégica,
foi transformar o debate sobre a responsabilização dos golpistas de 8 de
janeiro em um campo minado de tensões simbólicas: um suposto "perdão
cristão" contra um "sistema vingativo", uma "reconciliação
nacional" contra uma "justiça de exceção". É um roteiro escrito
para emocionar, vitimizar e cooptar.
Trata-se, portanto, de uma operação
psicológica de longo curso, com efeitos de saturação discursiva e corrosão
institucional. O simples fato de se debater uma anistia para criminosos
confessos, que atentaram contra as instituições da República, já é em si um
sintoma de que o campo democrático foi deslocado da ofensiva para a defensiva.
Cada dia em que o tema ocupa o centro da arena pública é um dia em que a
extrema direita vence, pois mantém viva a polarização, ativa sua base
radicalizada e transforma golpistas em mártires. É a lógica do lawfare às
avessas: se antes o sistema jurídico era usado para perseguir lideranças
populares com falsas acusações, agora é manipulado para proteger criminosos sob
o pretexto de pacificação.
Esse é o coração da guerra híbrida
contemporânea: confundir, paralisar, dividir. A anistia é uma bomba-relógio
discursiva plantada no centro da democracia. E sua contagem regressiva é
ativada cada vez que o Congresso debate, a imprensa reproduz e a opinião
pública se contamina com o dilema moral fabricado. Não há dilema real aqui. Há
uma tentativa deliberada de reescrever os fatos, desfocar os crimes e inverter
a culpa. É a velha técnica da vitimização estratégica, que serve de base para o
retorno triunfal do bolsonarismo, não necessariamente pela presidência, mas
pelo poder legislativo e pelo controle narrativo da sociedade.
A realidade é que o bolsonarismo aprendeu com
seus aliados internacionais. Inspirou-se no trumpismo e no modelo húngaro de
Orban, aperfeiçoou sua guerra cultural, e passou a operar com a frieza de quem
sabe que a arena pública não é mais o lugar da verdade, mas da performance. E
nesse jogo, eles atuam com roteiro, direção, distribuição e elenco. A anistia é
só um episódio dentro de uma série longa e bem financiada. E a cada novo
capítulo, o sistema democrático vai sendo corroído por dentro, não pela força das
armas, mas pela astúcia da palavra.
>>> 2. A esquerda e o governo Lula
subestimam o campo de batalha
Enquanto a extrema direita opera com precisão
cirúrgica no campo da guerra informacional, da vitimização estratégica e da
mobilização emocional contínua, boa parte da esquerda e, em especial, setores
do governo, ainda acreditam que estão disputando eleições dentro das regras
convencionais da democracia liberal. Esse erro de diagnóstico é fatal. Não
estamos mais falando de política institucional nos moldes clássicos. Estamos
falando de guerra híbrida, de desestabilização emocional e cognitiva da
sociedade, de destruição da confiança nas instituições e de ocupação contínua
do imaginário público.
O bolsonarismo entendeu perfeitamente que o
poder hoje não está apenas no Planalto está, sobretudo, no Congresso, nas redes
sociais, nas igrejas, nas câmaras municipais, no TikTok, no WhatsApp, nos
influencers, nos think tanks e nas bancadas armadas do legislativo. A
presidência pode até ser uma vitrine, mas o verdadeiro motor da destruição
democrática está nos bastidores da máquina legislativa e no controle da opinião
pública. E eles já estão posicionados. Como o próprio Bolsonaro afirmou com
clareza no evento flopado em Copacabana neste ano: “Me deem 50% do parlamento”
e o restante da engrenagem entra em colapso. Com essa força institucional e
simbólica, conseguem pautar o debate nacional, travar as ações do Executivo,
chantagear o Judiciário e legislar em favor da barbárie, sem precisar derrubar
presidentes, basta paralisá-los.
O governo Lula, ao tentar buscar uma
governabilidade possível com um Congresso hostil, muitas vezes se vê obrigado a
recuar em frentes estratégicas, abandonando a disputa narrativa e simbólica em
nome de uma estabilidade artificial. O problema é que, do outro lado, a extrema
direita não está interessada em estabilidade, mas sim em manter o clima de
guerra permanente. Cada recuo do campo democrático, cada gesto conciliador,
cada silêncio diante das ameaças, é interpretado como fraqueza e, pior, como
autorização tácita para avançar mais.
Falta, muitas vezes, à esquerda
institucional, a compreensão de que estamos em um campo de batalha onde não
basta ter razão ou bons projetos. É preciso ter clareza estratégica,
resiliência discursiva e capacidade ofensiva no campo simbólico. O bolsonarismo
joga com o ódio, a mentira, o medo e a manipulação, e a resposta não pode ser
apenas nota de repúdio ou apelos à racionalidade. É preciso compreender, de
forma concreta, que o Brasil se tornou um dos maiores laboratórios de guerra
híbrida do mundo. E que, se a esquerda não ocupar os espaços onde a batalha
realmente acontece, redes, cultura, legislativo, mídia, subjetividade, a
extrema direita tomará conta de tudo com o sorriso cínico de quem nunca jogou
limpo, mas sempre jogou para vencer.
>>> 3. 2026 – o objetivo não é
vencer, é inviabilizar
A extrema direita já entendeu algo que o
campo progressista parece ainda não ter assimilado: a eleição de 2026 não
precisa ser vencida para ser vencida. O verdadeiro projeto em curso não é o de
retornar legitimamente ao poder pelas vias tradicionais do voto popular, é o de
sabotar previamente a legitimidade do processo eleitoral, minar a confiança nas
instituições e criar uma atmosfera de instabilidade tal que inviabilize
qualquer governo progressista ou minimamente democrático. O que está em jogo
não é apenas o próximo mandato presidencial, mas o funcionamento mínimo da
democracia como conhecemos.
Esse movimento não começou agora. Ele se
articula desde 2014, foi testado com sucesso em 2018, elevado à máxima potência
em 2022, e agora ganha novo fôlego com a narrativa da anistia. Ao transformar
criminosos em perseguidos políticos e golpistas em vítimas da “ditadura do
STF”, o bolsonarismo prepara o terreno para 2026: o cenário ideal é aquele em
que, qualquer que seja o resultado das urnas, o país esteja mergulhado num
colapso institucional que permita ou um novo 8 de janeiro, mais organizado, ou
um Congresso tão radicalizado que paralise qualquer ação governamental.
Eles podem muito bem aceitar a reeleição de
Lula, desde que isso venha acompanhado de uma maioria legislativa bolsonarista
que promova o impeachment de ministros, bloqueie pautas sociais, desmonte
políticas públicas e transforme o Executivo num refém. A imagem de um
presidente popular, reeleito democraticamente, mas travado por um Congresso que
age como milícia institucional, é o símbolo perfeito da distopia bolsonarista:
o governo existe, mas não governa; o povo vota, mas não decide; as instituições
funcionam, mas não servem.
Essa lógica já está em operação, e Fortaleza
foi o exemplo mais claro disso. Na capital cearense a extrema direita perdeu a
eleição por menos de 1% dos votos, em um ensaio para 2026. As eleições
municipais de 2024 serviram como ensaio geral para o ano que vem, e os
bolsonaristas sabem que têm todas as ferramentas necessárias para capturar
corações e mentes em larga escala: redes sociais desreguladas, financiamento
oculto, comunicação emocional de massa, bancadas parlamentares articuladas e um
Judiciário acuado por pressões e chantagens. Em outras palavras: a máquina está
montada e o que falta é apenas o estopim narrativo. E é aí que entram em cena a
anistia, o vitimismo, o “sistema contra nós” e o colapso programado.
O campo democrático precisa compreender, com
urgência, que o jogo em 2026 será jogado antes do apito inicial. Ele já está
sendo jogado agora nas CPIs, nas fake news, no TikTok, nas câmaras municipais,
nas lives de domingo, e até mesmo nas sessões do STF. Quem chegar às eleições
achando que basta ter voto, programa de governo e apoio popular, estará
entrando no campo minado de uma guerra que se trava em outras esferas. Porque,
para eles, a vitória não está na urna. Está no caos.
>>> 4. Não entender a guerra é
perder sem lutar
A maior tragédia da esquerda institucional e
dos setores democráticos do Brasil, neste momento histórico, não é a ausência
de força eleitoral ou de propostas concretas. É a incapacidade de compreender
que estão inseridos em uma guerra, e não em um debate democrático tradicional.
Essa guerra não é feita com tanques ou fuzis, embora não se deva duvidar de que
o bolsonarismo tenha essa carta na manga, mas com narrativas, símbolos,
algoritmos, chantagens institucionais e manipulação afetiva em escala industrial.
E, nesse tipo de guerra, quem não entende o campo de batalha, perde antes mesmo
de começar a lutar.
A anistia, essa anistia, é apenas a face mais
visível de um projeto maior: a desconstrução contínua do pacto democrático por
dentro de suas próprias regras. A extrema direita aprendeu a dominar o tempo da
comunicação, o ritmo das emoções públicas, a viralização do absurdo e a
mobilização constante da indignação seletiva. Enquanto isso, o campo
progressista muitas vezes se limita à defesa jurídica dos fatos, às notas
técnicas e aos apelos pela racionalidade, como se fosse possível vencer uma
guerra de emoções com estatísticas frias e diplomacia parlamentar.
Não há mais tempo para ingenuidade. O
bolsonarismo não quer vencer democraticamente, ele quer destruir a
possibilidade de qualquer democracia que não o contemple. E essa destruição se
dá por etapas: primeiro o caos discursivo, depois a erosão institucional, e por
fim a imposição de uma nova ordem baseada na força simbólica e legislativa de
quem domina o medo, o ressentimento e o desejo de vingança como poucos.Se o
campo democrático quiser sobreviver a 2026 com algo além da faixa presidencial
simbólica, terá que operar em outro nível: compreender o jogo da guerra
híbrida, enfrentar o bolsonarismo como um projeto organizado de sabotagem do
Estado, e agir com inteligência estratégica, presença simbólica constante e
ofensiva comunicacional em todos os campos. Porque, como já dissemos, não
importa se Bolsonaro estará preso, inelegível ou no Palácio do Planalto, o que
importa é o caos como método e o controle do Legislativo como poder real. E a
extrema direita entendeu isso com anos de vantagem. Não entender essa guerra
agora é assinar, em câmera lenta, a ata da derrota futura. E não haverá anistia
para quem cruzar os braços.
Fonte: Por Reynaldo Aragon e Sara Goes, no
Brasil 247

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