As pessoas que 'enxergam' línguas
estrangeiras
O nome da minha mãe é da cor do leite. As
cordas de uma guitarra acústica, quando dedilhadas, tocam o amarelo forte do
favo de mel.
O som é plano, duro ou macio. E segunda-feira
é cor-de-rosa.
Estas sensações são sempre as mesmas e estão
sempre presentes. Trata-se da sinestesia – no meu caso, sinestesia grafema-cor,
sinestesia som-cor e sinestesia auditiva-tátil.
Como ocorre com muitas pessoas sinestésicas,
descobri ainda jovem que eu tinha talento para a música e os idiomas.
Na música, eu não me destacava no ato físico
de me apresentar, mas sim na composição. Eu me tornei compositora para filmes
curtos e dança teatral, além de editora de sons para televisão.
Para mim, escrever música se parecia muito
com um idioma, já que eu "via" as cores dos sons de forma parecida.
Também estudei francês, alemão, espanhol e linguística – e a cor dos idiomas me
ajuda a lembrar as palavras e os padrões gramaticais.
A sinestesia é um fenômeno neurológico que
faz com que cerca de 4,4% das pessoas vivenciem o mundo como uma cacofonia de
sensações.
Foram identificados cerca de 60 tipos
diferentes de sinestesia, mas pode haver mais de 100 e alguns tipos são
vivenciados de forma conjunta.
Acredita-se que esta condição seja causada
por características genéticas hereditárias que afetam o desenvolvimento
estrutural e funcional do cérebro.
O aumento da comunicação entre regiões
sensoriais do cérebro significa, por exemplo, que as palavras podem estimular o
paladar, sequências de números podem ser percebidas em disposições espaciais ou
a sensação das texturas pode desencadear emoções.
A sinestesia não é considerada um distúrbio
neurológico. Ela está relacionada a condições de saúde mental e desenvolvimento
neurológico, incluindo autismo, ansiedade e esquizofrenia. Mas ela é descrita
como "realidade perceptiva alternativa", geralmente considerada
benéfica.
"Quando eu era mais jovem, sabia que
observava o mundo de um jeito diferente e minha forma de descrever aquilo para
os outros era 'colorida'", conta Smadar Frisch.
Frisch tem sinestesia grafema-cor, sinestesia
som-cor e sinestesia léxico-gustativa, que faz as palavras terem sabor. Ela
explora o mundo dos sentidos no seu podcast, Chromatic Minds ("Mentes
cromáticas", em tradução livre). E, no momento, está escrevendo seu
primeiro livro sobre o tema.
"Aprender na escola era demais para mim,
em termos sensoriais", ela conta. "É muito difícil tentar solucionar
uma equação quando toda a coloração de uma série de números era uma explosão
psicodélica."
Este jato de cores, segundo Frisch, pode
fazer com que ela perca o foco e esqueça o que está fazendo.
"[Era o] mesmo com a linguagem",
ela conta. "As cores, músicas e sensações de paladar das palavras me
inflamavam e eu queria tanto me expressar, que perdia o foco."
Somente quando havia quase terminado o ensino
médio, ela conheceu o livro de Richard Cytowic e David Eagleman, Wednesday is
Indigo Blue ("Quarta-feira é azul índigo", em tradução livre).
"Minha ideia inicial era que
quarta-feira, na verdade, é laranja", conta Frisch. "E eu precisava
conseguir este livro." Para ela, foi uma reviravolta.
"Finalmente compreendi como o meu
cérebro sinestésico é ligado e conectado. E pensei comigo mesma como este
fenômeno é incrível. Posso usar as cores para me ajudar a aprender, em vez de
me confundir."
Frisch desenvolveu um sistema de codificação
por cores para ajudá-la a aprender novos idiomas de forma rápida e fluente.
Estudar idiomas não parecia mais algo confuso, mas sim "organizado",
segundo ela.
"E funcionou! Meu mundo inteiro mudou.
Fui aprender aquilo em que o meu cérebro estava destinado a se destacar:
idiomas."
Frisch conta que conseguiu aprender francês e
espanhol até chegar ao nível avançado em apenas dois meses. "Tive nota 90+
em cada exame [de francês e espanhol]", afirma ela.
Estes exames fizeram parte do seu Te'udat
Bagrut, a qualificação obtida em Israel ao término do ensino médio. Frisch
conta que, atualmente, sabe falar sete idiomas com fluência – e que pode
aprender qualquer idioma que quiser, "sem dificuldade e em pouco
tempo".
Julia Simner é diretora do laboratório de
Pesquisa sobre Sinestesia Multissensorial da Universidade de Sussex, no Reino
Unido. Ela e sua equipe examinaram cerca de 6 mil crianças com seis a 10 anos
de idade.
"Selecionamos cada um individualmente
para determinar a sinestesia e, em seguida, oferecemos [a eles] uma bateria de
testes para determinar quais técnicas são favorecidas por esta
particularidade", explica ela.
O estudo concluiu que as crianças com
sinestesia obtiveram melhores resultados em uma série de técnicas do que as
crianças que não vivenciam o fenômeno. E estas técnicas, segundo Simner,
"certamente auxiliam o aprendizado do primeiro e segundo idiomas".
"Especificamente, elas apresentaram
desempenho significativamente melhor em vocabulário receptivo (quantas palavras
elas conseguiam entender), vocabulário produtivo (quantas palavras elas sabiam
dizer), armazenamento de memória de curto prazo, atenção aos detalhes e
criatividade", afirma ela.
"Estas técnicas relacionadas à
sinestesia indicam que podemos esperar que o aprendizado de um segundo idioma
seja mais fácil para alguém com sinestesia."
Simner explica que ter cores sinestésicas
torna as letras mais fáceis de serem memorizadas. E as cores da sinestesia
podem passar de um idioma para outro, fazendo com que as palavras no segundo
idioma também sejam memorizadas com mais facilidade.
"Essas cores podem migrar entre os
idiomas pela aparência ou pelo som das letras", explica Simner. "É
como se a cor se transferisse de um idioma para outro."
• Caleidoscópio
de palavras
Em 2019, outro experimento liderado pelos
psicólogos da Universidade de Toronto, no Canadá, descobriu a sinestesia
grafema-cor. Nela, cada letra ou número possui sua própria cor distinta,
fornecendo uma vantagem significativa de aprendizado estatístico – a
possibilidade de que a pessoa "veja" padrões, o que é uma capacidade
fundamental para o aprendizado de idiomas.
Os pesquisadores pediram aos participantes
que ouvissem um conjunto de palavras sem sentido, como "mucá" e
"beô". Elas representavam um idioma "artificial".
Em seguida, eles ouviram um segundo conjunto
de palavras, que incluía as palavras artificiais originais e novas palavras
artificiais que representavam um idioma "estrangeiro". E foi pedido
aos participantes que diferenciassem as "palavras" de cada um dos
dois idiomas artificiais.
"Não havia significado", explica a
psicóloga Amy Finn, diretora do laboratório de desenvolvimento e neurociências
cognitivas da Universidade de Toronto, Finn Land Lab.
"Ele foi elaborado para observar a
'segmentação' – ou como você usa as regularidades para selecionar quais são os
segmentos de linguagem. Esta é uma questão muito primitiva, mas superimportante
no início do aprendizado de um idioma."
Os resultados demonstraram que as pessoas
sinestésicas grafema-cor possuem mais capacidade de diferenciar entre os dois
"idiomas" do que os participantes que não têm sinestesia.
"Achamos que [a sinestesia] pode ajudar
a analisar as partes do idioma com mais facilidade", afirma Finn.
Quando as pessoas sinestésicas vivenciam os
mesmos padrões com mais de um sentido – por exemplo, oral e visualmente – sua
mente forma uma nova indicação secundária, que pode ajudá-los a reconhecer ou
relembrar o padrão.
Isso me faz lembrar de quando eu tinha 11
anos de idade e fui colocada em uma situação difícil na minha primeira semana
do ensino médio.
"Como se diz 'trabalho'?", pergunta
meu professor de francês.
A classe fica em silêncio. Eu sei que a
palavra é azul e ela vem à minha mente. "Travail", respondo eu.
Às vezes, não consigo me lembrar de uma
palavra, mas sim da cor. Isso pode ser frustrante porque, se eu disser "é
rosa", ninguém pode me ajudar, já que as cores são exclusivas da minha
mente.
Por outro lado, a cor serve de lembrete adicional,
um bônus que posso usar quando aprendo novos idiomas.
Você talvez imagine que a sinestesia é mais
comum em crianças bilíngues. Mas as pesquisas indicam que as pessoas que
aprendem um segundo idioma depois da primeira infância têm mais probabilidade
de apresentar esta capacidade de alteração sensorial do que aquelas que são
bilíngues nativas. Isso reforça a teoria de que a sinestesia se desenvolve como
ferramenta de aprendizado.
A sinestesia surge na infância, quando a
criança começa a absorver o mundo à sua volta e aprende a falar, ler e
escrever.
Um estudo realizado em 2016 por pesquisadores
do Canadá, Estados Unidos e República Checa concluiu que as crianças aprendem a
classificar cores entre as idades de quatro e sete anos, mais ou menos na época
em que elas começam a ler e escrever. E a sinestesia começa a surgir a partir
dos seis anos de idade.
Os autores do estudo concluíram que "as
crianças usam sua capacidade recém-adquirida para classificar a cor como um
auxílio não ortodoxo para dominar o conhecimento das letras e palavras".
Mas a sinestesia, em alguns casos, pode
dificultar a comunicação. E a noção de que ela pode funcionar como estratégia
para facilitar o aprendizado "permanece tema de debate", afirma a
psicóloga Lucie Bouvet, da Universidade de Toulouse, na França.
"Na sinestesia fonema-cor, todos os
fonemas – a menor unidade falada – evocam a percepção de cores
específicas", afirma Bouvet.
Esta é a experiência de uma mulher
identificada como "VA" em um estudo de 2023. Bouvet é uma das autoras
do trabalho.
Sempre que VA ouve um som "a"
forte, por exemplo, ela vê um tom verde-azulado luminoso. E, sempre que ela
ouve "k", ela observa vermelho.
"VA descreve uma forma de pensar em
imagens, em que as palavras funcionam como segundo idioma", explica
Bouvet. "As cores evocadas pelos fonemas a ajudam a ter acesso ao
significado."
O processo de comunicação de VA consiste em
ouvir os sons, ver as cores e traduzir o significado daquelas cores. Este
esforço de dupla tradução pode fazer com que VA não consiga acompanhar as
conversas.
"Em casos raros, os indivíduos podem
ficar sobrecarregados pela sinestesia, com a sensação de que suas experiências
internas interferem na sua percepção do mundo exterior", explica Bouvet.
Sejam elas úteis ou não para os sinestésicos,
as pesquisas sobre a sinestesia podem nos ajudar a compreender os processos
cognitivos da linguagem e percepção.
"A sinestesia, por si só, é um fenômeno
interessante", afirma Bouvet. "Mas as pesquisas recentes indicam que
ela faz parte de um perfil cognitivo específico mais amplo. Identificar esse
perfil cognitivo único pode ser fundamental para obter conhecimento mais
profundo da sinestesia."
Para mim, viver com uma miscelânea de
sensações é motivo de alegria.
Ouvir música é uma experiência totalmente
imersiva. Eu mergulho em um oceano de texturas, como se estivesse embaixo de um
edredom macio ou submersa em água fria.
As palavras de um livro não são apenas tinta
inerte sobre uma página. Elas trazem a história para a vida, rodopiando à minha
volta.
E a linguagem preenche o ar com as cores de
um caleidoscópio.
Fonte: BBC Future

Nenhum comentário:
Postar um comentário