Governo Tarcísio pressiona moradores de
Moinho atá a mentir renda para desocupar última favela do centro de SP
A renda
de Silvânia Machado, de 51 anos, vem do comércio informal que ela mantém na
favela do Moinho, a última existente no centro de São Paulo. A venda de bolos,
roupas íntimas e o serviço de cuidado de crianças mantidos por ela dependem da
existência do Moinho, onde a comerciante vive há 15 anos – uma realidade que
pode mudar a partir desta terça-feira, 15, quando o governo do estado de São
Paulo promete começar a demolir casas e comércios para extinguir a favela.
Os
negócios e a própria casa dela estão no caminho dos planos do governo de
Tarcísio de Freitas, do Republicanos, para o centro paulistano. Anunciada
como “maior intervenção urbana já feita” na região, a
proposta é levar a sede do governo para o centro, junto a um
shopping, um parque, um trem turístico, um espaço cultural e uma nova estação
de trem.
Tudo
isso com a ambição de valorização imobiliária da região e com um pré-requisito:
acabar com a Moinho. Na área da favela, o governo quer criar o Parque do Moinho
e a nova estação de trem Bom Retiro.
O
governo Tarcísio diz que vai dar, em troca, “lares dignos” aos moradores,
mas a prática é diferente. A estratégia usada pelo governador para viabilizar
essa ambição tem sido pressionar os moradores a abandonarem suas casas.
Segundo
relatos ouvidos na comunidade pelo Intercept Brasil, que acompanha desde
2024 a escalada da pressão feita por parte de funcionários da Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo, a CDHU, os
moradores têm sido orientados a mentir a renda para se enquadrar nas regras de
auxílio aluguel e carta de crédito para compra de imóveis em regiões mais
afastadas, algumas a mais de 20 km do centro.
Os
moradores relatam que a pressão da CDHU começou em agosto de 2024, após a
divulgação do projeto que pretende levar a sede do governo de São Paulo para o
centro da capital. O processo começou, coincidentemente, com uma megaoperação
policial para, segundo o governo, combater o tráfico de drogas na região.
Na
época, o terreno da Moinho havia sido transferido para a União, e o governo de
São Paulo havia formalizado um pedido de transferência da área para poder
remover as cerca de 1 mil famílias.
Silvânia
Machado diz que foi orientada por uma funcionária da CDHU a mentir que tem uma
renda de R$ 1,6 mil mensais para acessar uma carta de crédito. “Me foi dito que
senão, menos que isso, eu não conseguiria um apartamento”, disse.
No
entanto, a partir do momento que sair da Moinho, a comerciante não terá renda
nenhuma. “Quando chegar lá fora, eu vou correr atrás, não vou ficar de braço
cruzado, mas não é fácil a gente conseguir tudo do nada”, reclama.
Morador
do Moinho há 26 anos, o carroceiro Maurício da Silva também foi orientado a
dizer que ganha um salário mínimo por mês – R$ 1.518 –, embora não consiga
juntar mais de R$ 50 por dia catando materiais recicláveis.
“Eles
me forçaram, o meu salário não era o que eles falaram. Eu sou desempregado,
carroceiro, não tenho serviço fixo”, contou. Silva diz que se sentiu
pressionado e, por isso, assinou um o termo para se mudar para um imóvel que só
ficará pronto em novembro de 2026.
Um
ofício enviado no último dia 7 de abril à Secretaria do Patrimônio da União, a
SPU, pelas defensorias públicas da União e de São Paulo mostra que os órgãos
também receberam queixas de que os moradores estariam sendo orientados a
“declarar uma renda mínima de um salário mínimo, como autônomo, ainda que não
correspondesse à realidade, sob pena de não ser possível ter acesso ao
atendimento habitacional”.
O
ofício mostra ainda que em diagnósticos realizados em dois conjuntos
habitacionais em São José dos Campos as defensorias já haviam recebido relatos
de orientações semelhantes. O documento afirma que isso gera riscos. “A
declaração de renda superior à real pode ser apontada como um dos causadores de
uma situação generalizada de inadimplência”, cita o texto.
Um
documento obtido pelo Intercept mostra que a declaração assinada pelos
moradores informando uma renda irreal é explícita ao dizer que informar dados
falsos pode ser enquadrado como crime, além de ser motivo para a rescisão do
contrato de atendimento habitacional.
As
defensorias também questionam a rapidez com que a remoção está sendo
programada, bem como o destino dos comércios existentes no local. Há pelo menos
38 comércios e serviços na favela do Moinho. A CDHU afirma que irá demolir
todos.
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‘A
CDHU, durante os 30 anos praticamente de existência da comunidade, nunca foi
lá’.
As
queixas também chegaram aos advogados do Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo
Arns, da Faculdade de Direito da PUC-SP, que acompanham os moradores do Moinho.
“As pessoas disseram que estavam sendo coagidas a declarar uma renda superior.
E, claro, isso assusta muito uma população carente, com menos instrução”,
afirmou Ieda Souza, advogada do Escritório Modelo.
Os
advogados questionaram a CDHU, que negou a prática e garantiu que iria revisar
as declarações de pessoas que, eventualmente, tenham se sentido coagidas. Esses
casos ficariam sob análise.
“As
pessoas têm medo de ficar sem nada, sem a casa que tem e sem uma unidade
habitacional. As pessoas sentem essa pressão quando sentam naquele escritório
[da CDHU]”, ressaltou Souza.
Procurada
pelo Intercept, a CDHU afirmou que “mantém tratativas com as famílias que hoje
moram na área para oferecer moradias dignas e seguras”. A CDHU afirma que
cadastrou todas as residências da favela e realizou reuniões individuais para
apresentar opções de moradia já disponíveis.
“Até
agora, 86% das famílias já iniciaram adesão para o atendimento habitacional e
531 já foram habilitadas, ou seja, estão prontas para assinar contrato. Destas,
444 já têm um imóvel de destino”, disse o órgão em nota. Estão sendo oferecidos
aos moradores um auxílio mudança de R$ 2,4 mil, além de auxílio moradia de R$
800.
A CDHU
alegou ainda que foi realizado um chamamento público para empreendimentos no
centro expandido da capital e que foram prospectados imóveis suficientes para
atender à demanda. “Quem quiser, poderá ser destinado a unidades também em
outras regiões”, disse.
O
governo, entretanto, não respondeu sobre a pressão feita aos moradores nem às
alegações de que tem orientado as pessoas a mentir a renda para acessar os
imóveis.
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Vitrine
do governo de Tarcísio
A
favela do Moinho é a última a permanecer no centro de São Paulo. Ela surgiu no início da década de 1990 onde antes
havia o Moinho Matarazzo, uma indústria de processamento de farinha e rações
para animais desativada no fim da década de 1980. O terreno é alvo de disputa
há pelo menos 16 anos.
“A
Moinho é uma panela de pressão. A primeira pressão que acontece é que essas
pessoas não tinham direito à dignidade delas, não tinham acesso a saneamento
básico, não tinham acesso à água”, lembrou Vitor Nery, advogado do Escritório
Modelo da PUC-SP.
A
ameaça de remoção se intensificou quando Tarcísio de Freitas chegou ao governo
com a promessa de campanha de transferir a
sede administrativa do governo para o centro de São Paulo. O projeto contempla
uma parceria público-privada, PPP, com investimento de R$ 4 bilhões, para
erguer imóveis para 28 secretarias e 36 órgãos estaduais.
Por
trás do projeto, está a ambição de “revitalizar o centro”, acabar com o fluxo
da Cracolândia e, assim, solidificar ações em torno da área da segurança, uma
importante vitrine do governo de Tarcísio. Em 2024, o governo chegou inclusive
a associar a favela do Moinho a um possível bunker do crime organizado.
Os
planos do governo não são novos, já que propostas semelhantes foram ventiladas
no passado. Em 2017, o então prefeito João Doria, do PSDB, prometeu acabar com
a Cracolândia e revitalizar o bairro de Campos Elíseos, onde está inserida a
Moinho. Não funcionou.
Desta
vez, entretanto, há um decreto de utilidade pública para fins de desapropriação
da área, acompanhado da concessão das duas linhas de trem da Companhia Paulista de Trens
Metropolitanos, a CPTM, que cercam a comunidade.
“A
CDHU, durante os 30 anos praticamente de existência da comunidade, nunca foi
lá. A prefeitura, quando teve os incêndios em 2011, ofertou moradia para essas
pessoas. Aquelas que resolveram sair estão recebendo as unidades este ano”,
acrescentou Nery.
O leilão da PPP do
projeto de mobilidade urbana, que prevê 25 anos de concessão e a construção da
estação Bom Retiro, ocupando parte da Moinho, foi realizado no fim de março de
2025.
O governo já anunciou que em julho ou
agosto deste ano deve divulgar o leilão para que construtoras e investidores
interessados em explorar o comércio nos arredores da nova sede administrativa
enviem suas propostas. O projeto da nova sede prevê ainda um shopping e a transferência
dos comandos das polícias civil e militar para a região.
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‘De
graça não tem graça’, diz CDHU aos moradores da favela
A área
onde está a favela do Moinho pertence à União, mas o governo de São Paulo
solicitou a cessão do terreno à SPU. O órgão federal, entretanto, condicionou a
cessão ao encontro de soluções de moradia para os atuais residentes da Moinho,
o que deveria estar presente num plano de reassentamento.
Em uma
reunião realizada em janeiro de 2025, registrada pelo Intercept, a diretora de
Atendimento Habitacional da CDHU, Ticiane D’Aloia, chegou a dizer que o governo
não quer dar casas aos moradores.
“De
graça não tem graça. O que vale é trabalhar sim, ser digno de pagar sua parcela
e ser digno de ser proprietário da sua unidade. Todo mundo trabalha, todo mundo
paga suas casas aqui, ninguém aqui ganhou nada de graça”, disse.
Nunca
houve consenso entre o governo e os moradores em relação ao plano. Mesmo assim,
a proposta começou a ser colocada em prática no dia 26 de março deste ano,
antes mesmo da conclusão da cessão do terreno por parte da SPU, e o início da
retirada das casas está previsto para começar ainda em abril.
A CDHU
deu algumas opções aos moradores. Uma delas é uma carta de crédito individual
para que a pessoa possa adquirir um imóvel já existente no mercado ou
pré-selecionado pelo órgão. O valor do financiamento, entretanto, não pode
passar de R$ 250 mil se o imóvel estiver localizado no centro.
Para
aderir ao financiamento, a família deve comprometer até 20% da renda com as
parcelas. O problema é que a média salarial da Moinho não passa de um salário
mínimo. Um levantamento da própria CDHU mostra que 47% das pessoas que moram na
favela são trabalhadores informais e que 61% das famílias têm renda variável
entre um a dois salários mínimos.
É por
isso que os moradores estariam sendo orientados a mentir para aderir ao modelo.
Muitos deles temem assumir dívidas que não poderão pagar. Os moradores precisam
assinar dois documentos: um é o contrato que indica a unidade habitacional
escolhida, e o outro é o do auxílio aluguel. Enquanto a pessoa não se mudar
para o apartamento, ela recebe o auxílio. Depois, para de ter acesso ao valor e
inicia o pagamento das parcelas do imóvel.
·
‘Não
adianta eu chegar lá, assinar e não ter para onde ir’.
Alguns
moradores, com dívidas prévias, sequer poderiam comprometer a renda com um
financiamento, ou seja, uma segunda dívida. Imagens captadas pelo Intercept
mostram, entretanto, funcionários da CDHU sugerindo aos moradores com dívidas
que eles se mudem para a casa de parentes e usem um auxílio aluguel de R$ 800 –
previsto até a mudança definitiva – para pagar os débitos.
O valor
do auxílio tampouco é suficiente para arcar com um aluguel nas redondezas. “Se
eu pego um bolsa aluguel de R$ 800, eu vou ter que colocar do meu bolso [o
resto]. Os donos de onde eu vou alugar não vão esperar”, diz Silvânia Machado,
que se recusou a assinar o termo de auxílio moradia, mas já recebeu pelo menos
duas mensagens a orientando a procurar a CDHU.
O
ofício enviado à SPU pelas defensorias públicas da União e de São Paulo mostra
que a própria CDHU chegou a mostrar que havia disponibilidade de ao menos 102
unidades habitacionais já concluídas para ceder aos moradores, numa política
chave por chave, na qual o morador já sai do imóvel com a chave para entrar em
outro.
O
documento relata, porém, que a única opção dada aos moradores para permanecer
no centro é um conjunto habitacional que só ficará pronto em abril de 2027.
Quem já
assinou o termo, como o carroceiro Maurício da Silva, está com dificuldades
para encontrar um aluguel em um valor abaixo do auxílio ofertado na região – o
que freia a adesão de outros moradores. “Não adianta eu chegar lá, assinar e
não ter para onde ir”, pontuou Silvânia Machado. Para ela, foram oferecidas
opções de imóveis em Itaquera, Cachoeirinha e Vila Carrão, a uma distância de
33 km, 10 km e 16 km do Moinho, respectivamente.
A
pressão aumenta porque a CDHU estabeleceu como prazo para iniciar a retirada
das casas do Moinho terça-feira, 15 de abril. Um documento entregue aos
moradores e obtido pelo Intercept mostra que o órgão afirmou que iria demolir
também os comércios e ainda trouxe um lembrete: “quem aderir primeiro [ao
termo] terá mais opções de escolha de conjuntos habitacionais, andar e
apartamento”.
Moradora
há três anos da Moinho, Ivania Coutinho diz que funcionários do órgão teriam
começado a coagir os moradores a procurar outros imóveis antes mesmo da
assinatura de qualquer documentação.
Para
ela, foram dadas opções nas zonas norte e oeste de São Paulo, em imóveis que só
ficariam prontos em dois a três anos. Coutinho recusou as ofertas e diz ter
optado por carta de crédito, para ter acesso a um apartamento já pronto, onde
poderia entrar de imediato com a filha de três anos.
Entretanto,
até a data limite dada pelo governo, 15 de abril, não encontrou nada no centro
pelo valor de R$ 800 por mês. “Eles estão nessa opressão, estão mandando todos
os moradores saírem da comunidade, arrumar um endereço e levar para eles de
todo jeito. Eu fui lá e perguntei, inclusive: ‘vocês vão derrubar minha casa
comigo dentro’?”, contou.
A
promessa feita aos moradores é que até junho, prazo que antecede o momento
previsto para anunciar o leilão para as empreendedoras interessadas na PPP, a
favela estará vazia.
Em
resposta ao Intercept, a SPU afirmou que ainda não há prazo para a realizar a
cessão do terreno da Moinho ao governo de SP e que a transferência está
condicionada à garantia do direito de moradia.
O
processo de cessão, disse a SPU, “depende de ajustes e complementações, por
parte da CDHU, no plano de reassentamento enviado em abril deste ano, para que
contemple as necessidades dos moradores”. A SPU também aguarda a entrega do
detalhamento do projeto a ser implantado na área pelo Governo de SP. “Somente
após esse acordo será possível avançar nos trâmites administrativos para a
formalização do contrato de cessão”, disse. Ainda assim, a favela do Moinho
amanheceu com a Polícia Militar na porta nesta terça-feira.
Fonte: Por Alice de Souza e Caio Castor, da
Agencia Pública

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