Marx,
Engels e a revolução de 1848
Não são
raras as interpretações que apontam para uma natureza teleológica do marxismo,
afirmando que, para essa corrente de pensamento, a revolução seria um processo
que levaria inevitavelmente para o socialismo ou mesmo para o comunismo. O
Manifesto Comunista seria um dos principais exemplos que expressam essa
teleologia marxista, afinal nela Karl Marx e Friedrich Engels teriam previsto
que o capitalismo logo entraria em colapso.
Contudo,
essa é uma interpretação equivocada da obra. Nesse texto, de forma geral, a
“iminência” da revolução que derrubaria o poder da burguesia é perceptível
apenas ao final do texto, quando se afirma: “É sobretudo para a Alemanha que se
volta a atenção dos comunistas, porque a Alemanha se encontra às vésperas de
uma revolução burguesa e porque realizará essa revolução nas condições mais
avançadas da civilização europeia e com o proletariado infinitamente mais
desenvolvido que o da Inglaterra no século XVII e o da França no século XVIII;
e por que a revolução burguesa alemã só poderá ser, portanto, o prelúdio
imediato de uma revolução proletária”.
Como se
percebe, trata-se de uma análise da conjuntura alemã, que de fato de se
confirmou, diante do processo revolucionário continental de 1848. Naquele
contexto, os trabalhadores de diferentes países se mobilizaram na luta por
mudanças sociais. O processo levou, por um lado, a um avanço na organização dos
trabalhadores e, por outro, à consolidação do poder da burguesia.
Karl
Marx escreveu posteriormente, fazendo o balanço da situação da França: “A
Revolução de Fevereiro foi ganha pela luta dos trabalhadores com o apoio
passivo da burguesia. Os proletários se consideraram com razão os vitoriosos do
mês de fevereiro e fizeram reivindicações altivas de quem obteve a vitória.
Eles precisavam ser vencidos nas ruas; era preciso mostra-lhes que seriam
derrotados assim que deixassem de lutar com a burguesia e passassem a lutar
contra a burguesia”.
O
contexto de preparação do processo revolucionário se confunde com a própria
obra de Karl Marx e Friedrich Engels. Um de seus principais méritos foi
explicar os fundamentos econômicos e políticos e as contradições que permeavam
a sociedade capitalista. Nos primeiros capítulos do Manifesto Comunista, além
de levar ao público pela primeira vez de forma sistemática conceitos centrais
do materialismo histórico, Karl Marx e Friedrich Engels demonstraram a
existência de um antagonismo de classes na sociedade capitalista. Traçando
comparações entre as formas de exploração do trabalho em momentos históricos
anteriores, como no sistema escravista da Antiguidade ou o feudalismo medieval,
Marx e Engels apontam as lutas de classes como o fundamento da “história de todas
as sociedades até hoje existentes”.
Em sua
análise específica do capitalismo, os autores mostram o antagonismo entre a
exploração capitalista e a luta do proletariado, que tem como pano de fundo as
contradições das relações de exploração capitalistas estruturais ao próprio
sistema. Segundo os criadores do materialismo histórico, “[…] as forças
produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações
burguesas de propriedade; pelo contrário, tornaram-se poderosas demais para
estas condições, passam a ser tolhidas por elas; e assim que se libertam desses
entraves, lançam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da
propriedade burguesa”.
Karl
Marx e Friedrich Engels apontam que essas contradições não são eternas, ou
seja, haveria um momento em que o proletariado poderia derrubar o poder da
burguesia e construiria um Estado proletário. Como os autores mostram no
Manifesto Comunista, a dinâmica própria do capitalismo permitiria encontrar
formas de superar suas crises cíclicas, optando-se, “de um lado, pela
destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela
conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos”.
Karl
Marx e Friedrich Engels também apontam que a derrubada do capitalismo não seria
um produto natural do antagonismo de classes entre burguesia e proletariado,
mas resultado da ação política organizada dos explorados. Essa ação política
organizada teria um partido à sua frente. Os autores do Manifesto Comunista
afirmavam que “os comunistas constituem a fração mais resoluta dos partidos
operários de cada país, a fração que impulsiona as demais”.
O
caráter estratégico demonstrado pela necessidade da construção do partido
evidencia a principal tarefa do Manifesto comunista, ou seja, apresentar uma
síntese das elaborações teóricas e políticas da Liga dos Comunistas, da qual
Marx e Engels eram membros, enquanto possível direção política que poderia
levar o proletariado à vitória na revolução.
O
processo de elaboração do manifesta está relacionado ao contexto político,
conforme esclarece Engels: “No Congresso da Liga, realizado em Londres em
novembro de 1847, Marx e Engels foram incumbidos de escrever para fins de
publicação um completo programa, teórico e prático do partido. Redigido em
alemão, em janeiro de 1848, o manuscrito foi enviado ao editor de Londres
poucas semanas antes da revolução francesa de 24 de fevereiro. Uma tradução
francesa apareceu em Paris pouco antes da insurreição de junho de 1848”.
O
Manifesto comunista foi escrito para uma conjuntura política específica, quando
a Europa se via agitada pelo fantasma da revolução: “[…] um cataclismo
econômico europeu coincidiu com a visível corrosão dos antigos regimes. Um
camponês que se insurgia na Galícia, a eleição de um papa ‘liberal’ no mesmo
ano, uma guerra civil entre radicais e católicos na Suíça no fim de 1847,
vencida pelos radicais, uma das perenes insurreições autônomas da Sicília, em
Palermo, no início de 1848, foram não só a indicação prévia do que estava para
acontecer, mas se constituíam em verdadeiras comoções prévias do grande tufão”.
Não
eram apenas os socialistas – que se dividiam nas mais variadas correntes, como
é mostrado em um do capítulo específico do Manifesto comunista – ou os
comunistas que falavam em “revolução”. Todas as classes sociais, cada qual com
seus próprios partidos, tinham uma compreensão do processo em marcha e
vislumbravam uma época de transformações políticas. Pode-se dizer que “raras
vezes a revolução foi prevista com tamanha certeza, embora não fosse prevista
em relação aos países certos ou às datas certas. Todo um continente esperava,
já agora pronto a espalhar a notícia da revolução através do telégrafo
elétrico”.
O
Manifesto Comunista tornou públicas as posições de um desses partidos, o dos
comunistas, que, em seu programa, procurava expressar o projeto político do
proletariado e em suas ações organizar os trabalhadores na luta contra a
exploração capitalista. Pouco tempo depois da publicação do Manifesto
comunista, embora não diretamente sob sua influência, foram travadas as grandes
jornadas de lutas na Europa: “[…] a revolução que eclodiu nos primeiros meses
de 1848 não foi uma revolução social simplesmente no sentido de que envolveu e
mobilizou todas as classes. Foi, no sentido literal, o insurgimento dos
trabalhadores pobres nas cidades – especialmente nas capitais – da Europa
ocidental e central. Foi unicamente a sua força que fez cair os antigos regimes
desde Palermo até as fronteiras da Rússia”.
Em sua
forma aparente, o processo revolucionário colocava-se contra os resquícios do
Antigo Regime, ou seja, na defesa do aprofundamento das revoluções sob direção
da burguesia ocorridas nos séculos XVII e XVIII. Contudo, em 1848, esses
resquícios acabaram tendo como aliada a própria burguesia, que buscava com
esses acordos estabilizar os regimes políticos e, dessa forma, controlar o
poder do Estado.
Portanto,
ainda que pudesse se colocar como parte das mobilizações, a burguesia era
também um inimigo a ser derrotado por uma revolução encabeçada pelos
trabalhadores. Karl Marx e Friedrich Engels escreveram sobre o tema em outro
texto, redigido em 1850, analisando a dinâmica dos embates entre as classes
sociais, tendo como objeto a situação da Alemanha: “De fato foram os burgueses
que, após o movimento de março de 1848, imediatamente se apossaram do governo e
usaram esse poder para fazer os trabalhadores, seus aliados na luta,
retrocederem à sua anterior condição de oprimidos. Mesmo que a burguesia não
tenha conseguido fazer isso sem se coligar com o partido feudal derrotado em
março, chegando, no final, a ceder novamente o governo a esse partido absolutista
feudal, ela garantiu para si as condições que com o tempo, em virtude das
dificuldades financeiras do governo, acabariam por colocar o poder em suas mãos
e assegurariam todos os seus interesses, caso fosse possível ao movimento
revolucionário ter uma assim chamada evolução pacífica já nesse momento”.
O
cenário da França também foi analisado posteriormente pelos marxistas, como se
pode ver nesse texto de Engels: “A derrota da insurreição parisiense de junho
de 1848 – a primeira grande batalha entre o proletariado e a burguesia –
colocou novamente em um segundo plano as aspirações sociais e políticas do
operariado europeu. A partir de então, a luta pela supremacia voltou a ser, com
o fora antes da revolução de fevereiro, simplesmente uma luta entre diferentes
camadas da classe proprietária; a classe operária foi levada a limitar-se a uma
luta pela conquista de espaço político, assumindo posições da ala extrema dos
radicais da classe média”.
Na
continuidade desse processo, a própria burguesia poderia vir a ser derrubada,
diante da organização dos trabalhadores. Na medida em que a burguesia
abandonasse seu próprio programa, os trabalhadores poderiam levar adiante essa
luta e o processo revolucionário, superando não apenas os resquícios feudais,
mas inclusive os limites do programa proposta pelas classes dominantes.
Essa é
a fórmula simplificada da chamada “revolução permanente”, assim esboçada por
Karl Marx e Friedrich Engels: “As reivindicações da democracia pequeno-burguesa
aqui resumidas não são defendidas ao mesmo tempo por todas as frações e
pouquíssimas são as pessoas que as têm presentes em seu conjunto como um alvo
bem determinado a atingir. Quanto mais os indivíduos ou as frações que compõem
a democracia avançarem, tanto mais assumirão como suas essas reivindicações e
os poucos que reconhecem no que foi compilado acima o seu próprio programa
julgariam que desse modo teriam proposto o máximo que se pode esperar da
revolução. Porém essas reivindicações de modo algum podem bastar ao partido do
proletariado. Ao passo que os pequeno-burgueses democráticos querem levar a
revolução a cabo da maneira mais célere possível e mediante a realização,
quando muito, das demandas acima mencionadas, é de nosso interesse e é nossa
tarefa tornar a revolução permanente até que todas as classes proprietárias em
maior ou menor grau tenham disso alijadas do poder, o poder estatal tenha sido
conquistado pelo proletariado e a associação dos proletários tenha avançado,
não só em um país, mas em todos os países dominantes no mundo inteiro, a tal
ponto que a concorrência entre os proletários tenha cessado nesses países e que
ao menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do
proletariado”.
Enquanto
os reformistas se limitassem a comemorar as eventuais vitórias parciais, os
revolucionários não poderiam se contentar com essas medidas passíveis de
aplicação dentro na ordem burguesa. Os revolucionários deveriam “exacerbar as
propostas dos democratas, que de qualquer modo não agirão de modo
revolucionário, mas meramente reformista, e transformá-las em ataques diretos à
propriedade privada”.
Embora
a exposição acerca do processo da revolução iminente feita no Manifesto
comunista não tenha se mostrado exata, essa parte conjuntural do documento não
supera em importância o conjunto das discussões apresentadas e, principalmente,
a primeira exposição da dinâmica da exploração capitalista. Os autores
perceberam antecipadamente a complexidade social e política dos acontecimentos
que se desenrolariam naquela conjuntura, ao analisar as contradições do sistema
capitalista.
Mesmo
que Karl Marx e Friedrich Engels não tenham conseguido prever a dinâmica exata
do processo revolucionário em curso na conjuntura de 1848, vinham desenvolvendo
a única forma possível de não apenas explicar aquele processo e sua dinâmica
econômica e política, como também de perceber como essa conjuntura de encaixa
no próprio desenvolvimento histórico do capitalismo. Na análise conjuntural,
Marx e Engels parecem ter subestimado a capacidade que tinha o capitalismo em
superar crises e superestimado as possibilidades do proletariado europeu,
incorporando essas lições nas análises que desenvolveram posteriormente sobre
tática e estratégica.
O
proletariado não subiu ao poder depois dos processos revolucionários da
conjuntura de 1848. Um dos produtos dessa revolução que atravessou o continente
europeu foi a consolidação de governos “republicanos”, paulatinamente pondo fim
aos resquícios do Antigo Regime. Engels aponta que “[…] os acontecimentos e as
vicissitudes da luta contra o capital, as derrotas maiores que as vitórias,
poderiam apenas mostrar aos combatentes a insuficiência de todas as panaceias
em que acreditavam, fazendo-os compreender melhores as verdadeiras condições de
emancipação da classe operária”.
Karl
Marx e Friedrich Engels fizeram importantes balanços daquelas revoluções,
intervindo por meio da Liga dos Comunistas e de outas organizações operárias.
Eles deixaram como legado não apenas um rigoroso método de análise para
entender as contradições e dinâmicas do capitalismo, mas também referências
fundamentais para as ações táticas e estratégicas das gerações posteriores de
revolucionários.
Fonte:
Por Michel Goulart da Silva, em A Terra é Redonda
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