Haroldo Ceravolo
Sereza: O paradoxo da sucessão de Francisco
Em 2013, a escolha do cardeal Jorge
Mario Bergoglio como papa Francisco para o
comando da Igreja Católica pegou parte da imprensa brasileira no contrapé.
Depois de dois
papados conservadores, do papa João Paulo II e do papa Bento XVI,
parecia difícil acreditar que um religioso que construíra parte de sua
trajetória sob o regime militar argentino assumiria uma postura progressista.
A avaliação estava, como se mostrou
rapidamente, errada. Parcialmente porque parte da imprensa conservadora
descrevia uma guinada à direita de alguns dos que viriam a ser os principais
“eleitores” de Francisco, como o brasileiro D. Claudio Hummes.
O que assistimos foi, na prática, a uma
espécie de rearticulação do
clero progressista com parte daqueles, mais ao centro e até à direita, que perceberam os danos causados pelos excessos
políticos de João Paulo II e de Bento XVI.
O jogo político católico não é simples.
Analistas políticos que se atrevem a descrever o que ocorre na Igreja não raro
são traídos por alianças incompreensíveis e por aparentes mudanças de rumo que
escondem disputas internas não explícitas do lado de fora do Vaticano. A
própria transição de Bento XVI para Francisco foi menos intensa do que o
esperado, embora as mudanças de rumo tenham sido expressivas, surpreendendo não
apenas aquele que erraram ao não apontá-lo como papável, mas também aqueles que
previam ou sua adesão a um conservadorismo católico ou, ao contrário, um
enfrentamento explosivo.
O que assistimos, desde 2013, foi o jesuíta
Francisco se consolidando como o primeiro papa progressista do século XXI. Para
escancarar suas referências, santificou João XXIII (que convocou o Concílio
Vaticano II, encontro responsável pela modernização progressista da Igreja no
século passado), beatificou e depois canonizou Paulo VI (que conduziu boa parte
dos trabalhos e implementou as medidas do Concílio) e beatificou João Paulo I
(que foi papa por apenas 33 dias, mas prometia seguir o mesmo caminho), os antecessores
que comandaram a Igreja de 1958 a 1978.
Nestes 20 anos, a Teologia da Libertação
encontrou espaço para florescer e constituir-se numa força religiosa de
transformação em diferentes lugares do mundo, mas sobretudo na América Latina,
ampliando a participação de leigos e mulheres na vida da Igreja, fortalecendo o
trabalho pastoral e colocando o tradicionalismo, como a relevância do latim nas
missas, em xeque.
Para o ritmo da Igreja, foi uma mudança
intensa e rápida, que permitiu inclusive uma revigoração do catolicismo na
América Latina e no Leste Europeu, onde uma liderança neoconservadora se
constituía como oposição aos regimes socialistas. De lá viria o cardeal Karol
Woytila, polonês, escolhido sucessor de João Paulo I.
Woytila adotou o nome João Paulo II,
representando ao mesmo tempo o reconhecimento da importância dessas mudanças do
Concílio (homenageava os três antecessores) e o abandono pelos setores mais
conservadores da Igreja de tentar voltar a um mundo pré-Concílio Vaticano II.
Ou seja, João Paulo II aceitou importantes compromissos com a igreja
progressista, embora tenha se tornado um adversário explícito de muitas de suas
posições e organizações.
No Brasil, por exemplo, as Comunidades
Eclesiais de Base foram esvaziadas e os arcebispos e cardeais em sua maioria
escolhidos entre os conservadores. No mundo, houve uma aliança explícita e
tristemente bem sucedida entre o Vaticano, os Estados Unidos de Ronald Reagan e
a Grã-Bretanha de Margaret Thatcher no combate aos regimes socialistas.
Foi um movimento rápido, com grandes
mudanças, mas, paradoxalmente, com muita permanência dos avanços progressistas.
A Igreja Católica deixou de representar, como foi até à boca da Segunda Guerra
Mundial, a ponta de lança do reacionarismo político. Mesmo com Joseph
Ratzinger, o papa Bento XVI, com seu passado ultradireitista, heranças
significativas do Concílio Vaticano II permaneceram vivas e, a seu modo,
levaram Jorge Mario Bergoglio a ser escolhido papa em 2013.
Francisco é, nesse sentido, um herdeiro de
uma tendência oposta. Os papados de João Paulo II e Bento XVI construíram uma
maioria conservadora com a qual precisou lidar. E, em grande medida, fez isso
com sucesso. Seu legado não é pequeno.
Frei Betto, num artigo recente
publicado na revista Opera, elencou alguns dos
feitos de Francisco. “Francisco puniu com severidade bispos e padres pedófilos,
acolheu as vítimas, enfrentou a ultradireita católica dos EUA e da África e, em
2019, excluiu do cardinalato e do sacerdócio o estadunidense Teodore McCarrick,
ex-arcebispo de Washington, por prática de pedofilia e, em 2023, o Tribunal
Penal do Vaticano condenou a cinco anos de prisão o cardeal italiano Giovanni
Angelo Becciu, de 75 anos, por peculato e fraude financeira”.
Betto continua: “Francisco não esconde seu
descontentamento com Trump e sua simpatia por Lula, apoia a causa palestina e,
em janeiro deste ano, nomeou a religiosa Simona Brambilla prefeita do Vaticano.
Democrata, já convocou seis sínodos no intuito de renovar a Igreja, inclusive
pôr fim ao celibato obrigatório para o clero do Ocidente. No entanto, muitos
bispos e cardeais são oriundos da safra conservadora dos pontificados de João
Paulo II e Bento XVI, que levantam o freio de mão enquanto o papa acelera”.
Em 2015, o papa Francisco lançou a encíclica
intitulada Sobre o Cuidado com a Casa Comum. Foi um dos documentos mais
progressistas lançados por uma liderança política nos últimos anos, num momento
de descenso da esquerda em diferentes países, inclusive no Brasil.
Com a defesa das preocupações coletivas, a
crítica à idolatria do mercado e à ganância estimulada pelos avanços
tecnológicos, representou uma palavra de ordem contra a mercantilização da
natureza e, portanto, um apoio fundamental à luta dos povos originários e à
defesa do meio ambiente.
Recorrendo, evidentemente, à tradição
católica, Francisco buscou os fundamentos para uma intervenção que ataca a
lógica da exploração ilimitada da natureza e do trabalho. Num artigo
bastante interessante, “Bergoglio e o contramovimento: uma
interpretação Polanyiana do pontificado de Francisco”, Daniel Barreiros e
Gabriele Ciapparella recorrem à obra de Karl Polanyi e afirmam que esta
encíclica de Francisco evidencia “a profunda conexão que une os aspectos
ambientais, sociais, econômicos, distributivos e políticos, bem como o desafio
lançado pela busca de uma abordagem integral ao problema”. Esse discurso,
moderado, mas firme, pode ser apropriado por diferentes lutas ao redor do
mundo.
Em tempos de retrocesso político, expresso
por Jair Bolsonaro no Brasil, Donald Trump nos Estados Unidos, Giorgia Meloni
na Itália, mas por tendências direitistas menos radicais, como Emmanuel Macron
na França, Francisco tornou-se uma rara voz da razão, capaz de apontar caminhos
para a resistência ou, nas palavras dos autores do artigo que citei, um contra
movimento.
Bergoglio, como Lula, tentou, sem sucesso,
fazer a Ucrânia aceitar a negociar com a Rússia uma saída para a guerra,
pressionou Israel para parar o genocídio em Gaza até seu último dia de vida e
mostrou-se, dentro dos limites impostos pela Igreja Católica, flexível também
em pautas transversalmente políticas.
Em 2023, por exemplo, divulgou uma diretriz
que autorizava padres a abençoar relacionamentos entre casais do mesmo sexo. A
medida, explicitada no documento “Fiducia supplicans”, manteve a doutrina
tradicional sobre o casamento, mas mudou uma importante orientação sobre a
relação da Igreja com a comunidade LGBTQIA+, afastando uma postura condenatória
e enfatizando a necessidade de compaixão e inclusão. Em 2015 e 2016, o papa
autorizou o perdão pelos sacerdotes em caso de aborto, numa movimentação
semelhante. Não virou a chave da Igreja, mas abriu espaço para a reconciliação
com as mulheres que o praticaram, numa possibilidade renovada de acolhimento.
Evidentemente, isso é pouco, num certo
sentido. Mas não é algo que se ignore, quando pensamos na estrutura mundial da
instituição.
O papa Francisco foi papa num período de
retrocesso político radical, fortalecimento dos setores mais belicistas e
associados ao mercado das igrejas neopentecostais e de inúmeras pressões
contrárias. E, num contrassenso, não podia apelar a suas bases no apoio a
medidas mais radicais, uma vez que os anos de João Paulo II e Bento XVI
construíram uma base católica de leigos e fiéis que estava à sua direita, não à
sua esquerda.
Sem divisões militares, o papa tinha de lidar
com a força conservadora acumulada e disseminada pelos papados de João Paulo II
e Bento XVI. A seu favor, apenas a memória da condução desastrosa do papa Bento
XVI, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, à frente da Igreja, o que foi mais bem
percebido pelos padres, bispos e freiras que pelos sacristãos e frequentadores
da igreja.
Ratzinger seria o representante máximo do
poder do clero na Igreja, enquanto Francisco representou uma tentativa de
reaproximação com os leigos e com os fiéis não tão abertos a suas iniciativas.
Foi, assim, na prática, uma versão moderada
dos religiosos que lideraram a Teologia da Libertação. Com o teólogo brasileiro
Leonardo Boff, por exemplo, um dos grandes nomes da esquerda católica,
estabeleceu um diálogo intenso e bastante discreto, enquanto lidava na prática
com a maioria conservadora da Igreja.
As pontes progressistas lançadas por
Francisco são inúmeras, mas as conquistas são, por enquanto, apenas parciais.
Sua verdadeira capacidade política será posta à prova agora, na sua sucessão.
Os 12 anos de pontificado teriam sido suficientes para mudar a paisagem
conservadora da Igreja Católica e evitar um retrocesso? Ou, numa leitura
bastante mais otimista, seria capaz de apontar para um novo papado mais
progressista que o seu?
É praticamente impossível responder a essas
questões, mas alguns dados ajudam a pensar que o sucessor de Francisco não
necessariamente será mais moderado do que ele. Haverá, claro, uma tentativa de
rearticulação reacionária, mas o eleitorado fechado do conclave pode favorecer
esse avanço.
Segundo frei Betto, os cardeais
nomeados por Francisco somam 79,7% do atual colégio eleitoral. “São 18 eleitores na África, 18 na América do Sul
(entre os quais 7 brasileiros), 20 na América do Norte e América Central, 24 na
Ásia, 54 na Europa, e 4 na Oceania”.
Como já dissemos, o jogo político católico
não é uma emulação da disputa entre progressistas e conservadores do lado de
fora de igreja. Tem regras próprias, que apontam para outras necessidades de
aliança e concertação.
Um bispo de Roma mais progressista, por sua
vez, está longe de ser uma garantia de uma igreja forte para ir algo além
do discurso de resistência, capaz de reorganizar os pobres politicamente como
fez a igreja do Vaticano II.
Quem assistiu ao filme Conclave, de Edward
Berger, que venceu o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado deste ano e foi produzido
com colaboração do Vaticano, ou a Habemus Papam, de Nani Moretti, de 2011,
disponível nas plataformas de streaming, tem uma boa visão das tensões que
envolvem a disputa no Vaticano, até que a fumaça branca suba e anuncie o que
está por vir.
¨
Jorge Mario Bergoglio (1936-2025). Por Tales Ab’Saber
O Papa
Francisco entendia a igreja como tolerante, universalmente amorosa, ecumênica,
aberta e receptiva ao cuidado de todas as violências e exclusões do tempo.
Entendia o cristianismo católico como universalmente comprometido com o
reconhecimento, voltado a todas as situações da vida contemporânea, e não
culpabilizador, excludente, autoritário e estrategicamente violento.
Seu
apostolado era totalmente includente pela misericórdia. Evidentemente, ele foi
lançado ao inferno do ódio dos católicos de direita, que o atacaram de todos os
modos possíveis e imagináveis, sempre confundindo o seu próprio partido
neofascista com as redes sociais, onde vivem. Para essa gente, do Concílio
Vaticano II, de João XXIII, a Francisco, a igreja católica chegou à máxima
decadência imaginável.
Apostasia,
“sede vacante”, heresia, usurpador e até “anti-Cristo”, eram os modos
crescentemente destrutivos que a intolerância e a autodeclarada verdade moral
dos católicos do terror, que se alinharam com as direitas políticas mais
violentas e satisfeitamente burras do tempo – abençoando e servindo a golpes de
Bolsonaros e de Trumps – tratavam o sensível ao outro Francisco.
Sobre a
união do grupo no ódio, o núcleo duro de um mito de superioridade, que se
nomeia como a verdade de deus, exigindo a agência do poder e o rebaixamento da
diferença e dos inferiores, em um movimento que se organiza e se torna orgânico
em oposição a processos democratizantes, socialmente implicados, essa grotesca
e espetacular reação católica contra o seu próprio Papa nos ensina muito sobre
a lógica grupal, de psicologia de massas e modulação do “eu”, das direitas de
nossa época.
Contra-democráticos,
humanamente insensíveis, radicalmente anti-críticos, fascistas fazem apelo a
deus e religiosos fazem apelos a fascistas, tudo através da “religião e partido
das redes sociais”, para aumentar o ganho privado e particular de um grupo de
auto ungidos, que inventam deus, contra todos os demais. Francisco claramente
concebia deus em oposição ao deus fascista e sua política.
Fonte: Opera Mundi/A Terra é Redonda

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