quarta-feira, 23 de abril de 2025

Haroldo Ceravolo Sereza: O paradoxo da sucessão de Francisco

Em 2013, a escolha do cardeal Jorge Mario Bergoglio como papa Francisco para o comando da Igreja Católica pegou parte da imprensa brasileira no contrapé.

Depois de dois papados conservadores, do papa João Paulo II e do papa Bento XVI, parecia difícil acreditar que um religioso que construíra parte de sua trajetória sob o regime militar argentino assumiria uma postura progressista.

A avaliação estava, como se mostrou rapidamente, errada. Parcialmente porque parte da imprensa conservadora descrevia uma guinada à direita de alguns dos que viriam a ser os principais “eleitores” de Francisco, como o brasileiro D. Claudio Hummes.

O que assistimos foi, na prática, a uma espécie de rearticulação do clero progressista com parte daqueles, mais ao centro e até à direita, que perceberam os danos causados pelos excessos políticos de João Paulo II e de Bento XVI.

O jogo político católico não é simples. Analistas políticos que se atrevem a descrever o que ocorre na Igreja não raro são traídos por alianças incompreensíveis e por aparentes mudanças de rumo que escondem disputas internas não explícitas do lado de fora do Vaticano. A própria transição de Bento XVI para Francisco foi menos intensa do que o esperado, embora as mudanças de rumo tenham sido expressivas, surpreendendo não apenas aquele que erraram ao não apontá-lo como papável, mas também aqueles que previam ou sua adesão a um conservadorismo católico ou, ao contrário, um enfrentamento explosivo.

O que assistimos, desde 2013, foi o jesuíta Francisco se consolidando como o primeiro papa progressista do século XXI. Para escancarar suas referências, santificou João XXIII (que convocou o Concílio Vaticano II, encontro responsável pela modernização progressista da Igreja no século passado), beatificou e depois canonizou Paulo VI (que conduziu boa parte dos trabalhos e implementou as medidas do Concílio) e beatificou João Paulo I (que foi papa por apenas 33 dias, mas prometia seguir o mesmo caminho), os antecessores que comandaram a Igreja de 1958 a 1978.

Nestes 20 anos, a Teologia da Libertação encontrou espaço para florescer e constituir-se numa força religiosa de transformação em diferentes lugares do mundo, mas sobretudo na América Latina, ampliando a participação de leigos e mulheres na vida da Igreja, fortalecendo o trabalho pastoral e colocando o tradicionalismo, como a relevância do latim nas missas, em xeque.

Para o ritmo da Igreja, foi uma mudança intensa e rápida, que permitiu inclusive uma revigoração do catolicismo na América Latina e no Leste Europeu, onde uma liderança neoconservadora se constituía como oposição aos regimes socialistas. De lá viria o cardeal Karol Woytila, polonês, escolhido sucessor de João Paulo I.

Woytila adotou o nome João Paulo II, representando ao mesmo tempo o reconhecimento da importância dessas mudanças do Concílio (homenageava os três antecessores) e o abandono pelos setores mais conservadores da Igreja de tentar voltar a um mundo pré-Concílio Vaticano II. Ou seja, João Paulo II aceitou importantes compromissos com a igreja progressista, embora tenha se tornado um adversário explícito de muitas de suas posições e organizações.

No Brasil, por exemplo, as Comunidades Eclesiais de Base foram esvaziadas e os arcebispos e cardeais em sua maioria escolhidos entre os conservadores. No mundo, houve uma aliança explícita e tristemente bem sucedida entre o Vaticano, os Estados Unidos de Ronald Reagan e a Grã-Bretanha de Margaret Thatcher no combate aos regimes socialistas.

Foi um movimento rápido, com grandes mudanças, mas, paradoxalmente, com muita permanência dos avanços progressistas. A Igreja Católica deixou de representar, como foi até à boca da Segunda Guerra Mundial, a ponta de lança do reacionarismo político. Mesmo com Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, com seu passado ultradireitista, heranças significativas do Concílio Vaticano II permaneceram vivas e, a seu modo, levaram Jorge Mario Bergoglio a ser escolhido papa em 2013.

Francisco é, nesse sentido, um herdeiro de uma tendência oposta. Os papados de João Paulo II e Bento XVI construíram uma maioria conservadora com a qual precisou lidar. E, em grande medida, fez isso com sucesso. Seu legado não é pequeno.

Frei Betto, num artigo recente publicado na revista Opera, elencou alguns dos feitos de Francisco. “Francisco puniu com severidade bispos e padres pedófilos, acolheu as vítimas, enfrentou a ultradireita católica dos EUA e da África e, em 2019, excluiu do cardinalato e do sacerdócio o estadunidense Teodore McCarrick, ex-arcebispo de Washington, por prática de pedofilia e, em 2023, o Tribunal Penal do Vaticano condenou a cinco anos de prisão o cardeal italiano Giovanni Angelo Becciu, de 75 anos, por peculato e fraude financeira”.

Betto continua: “Francisco não esconde seu descontentamento com Trump e sua simpatia por Lula, apoia a causa palestina e, em janeiro deste ano, nomeou a religiosa Simona Brambilla prefeita do Vaticano. Democrata, já convocou seis sínodos no intuito de renovar a Igreja, inclusive pôr fim ao celibato obrigatório para o clero do Ocidente. No entanto, muitos bispos e cardeais são oriundos da safra conservadora dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, que levantam o freio de mão enquanto o papa acelera”.

Em 2015, o papa Francisco lançou a encíclica intitulada Sobre o Cuidado com a Casa Comum. Foi um dos documentos mais progressistas lançados por uma liderança política nos últimos anos, num momento de descenso da esquerda em diferentes países, inclusive no Brasil.

Com a defesa das preocupações coletivas, a crítica à idolatria do mercado e à ganância estimulada pelos avanços tecnológicos, representou uma palavra de ordem contra a mercantilização da natureza e, portanto, um apoio fundamental à luta dos povos originários e à defesa do meio ambiente.

Recorrendo, evidentemente, à tradição católica, Francisco buscou os fundamentos para uma intervenção que ataca a lógica da exploração ilimitada da natureza e do trabalho. Num artigo bastante interessante, “Bergoglio e o contramovimento: uma interpretação Polanyiana do pontificado de Francisco”, Daniel Barreiros e Gabriele Ciapparella recorrem à obra de Karl Polanyi e afirmam que esta encíclica de Francisco evidencia “a profunda conexão que une os aspectos ambientais, sociais, econômicos, distributivos e políticos, bem como o desafio lançado pela busca de uma abordagem integral ao problema”. Esse discurso, moderado, mas firme, pode ser apropriado por diferentes lutas ao redor do mundo.

Em tempos de retrocesso político, expresso por Jair Bolsonaro no Brasil, Donald Trump nos Estados Unidos, Giorgia Meloni na Itália, mas por tendências direitistas menos radicais, como Emmanuel Macron na França, Francisco tornou-se uma rara voz da razão, capaz de apontar caminhos para a resistência ou, nas palavras dos autores do artigo que citei, um contra movimento.

Bergoglio, como Lula, tentou, sem sucesso, fazer a Ucrânia aceitar a negociar com a Rússia uma saída para a guerra, pressionou Israel para parar o genocídio em Gaza até seu último dia de vida e mostrou-se, dentro dos limites impostos pela Igreja Católica, flexível também em pautas transversalmente políticas.

Em 2023, por exemplo, divulgou uma diretriz que autorizava padres a abençoar relacionamentos entre casais do mesmo sexo. A medida, explicitada no documento “Fiducia supplicans”, manteve a doutrina tradicional sobre o casamento, mas mudou uma importante orientação sobre a relação da Igreja com a comunidade LGBTQIA+, afastando uma postura condenatória e enfatizando a necessidade de compaixão e inclusão. Em 2015 e 2016, o papa autorizou o perdão pelos sacerdotes em caso de aborto, numa movimentação semelhante. Não virou a chave da Igreja, mas abriu espaço para a reconciliação com as mulheres que o praticaram, numa possibilidade renovada de acolhimento.

Evidentemente, isso é pouco, num certo sentido. Mas não é algo que se ignore, quando pensamos na estrutura mundial da instituição.

O papa Francisco foi papa num período de retrocesso político radical, fortalecimento dos setores mais belicistas e associados ao mercado das igrejas neopentecostais e de inúmeras pressões contrárias. E, num contrassenso, não podia apelar a suas bases no apoio a medidas mais radicais, uma vez que os anos de João Paulo II e Bento XVI construíram uma base católica de leigos e fiéis que estava à sua direita, não à sua esquerda.

Sem divisões militares, o papa tinha de lidar com a força conservadora acumulada e disseminada pelos papados de João Paulo II e Bento XVI. A seu favor, apenas a memória da condução desastrosa do papa Bento XVI, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, à frente da Igreja, o que foi mais bem percebido pelos padres, bispos e freiras que pelos sacristãos e frequentadores da igreja.

Ratzinger seria o representante máximo do poder do clero na Igreja, enquanto Francisco representou uma tentativa de reaproximação com os leigos e com os fiéis não tão abertos a suas iniciativas.

Foi, assim, na prática, uma versão moderada dos religiosos que lideraram a Teologia da Libertação. Com o teólogo brasileiro Leonardo Boff, por exemplo, um dos grandes nomes da esquerda católica, estabeleceu um diálogo intenso e bastante discreto, enquanto lidava na prática com a maioria conservadora da Igreja.

As pontes progressistas lançadas por Francisco são inúmeras, mas as conquistas são, por enquanto, apenas parciais. Sua verdadeira capacidade política será posta à prova agora, na sua sucessão. Os 12 anos de pontificado teriam sido suficientes para mudar a paisagem conservadora da Igreja Católica e evitar um retrocesso? Ou, numa leitura bastante mais otimista, seria capaz de apontar para um novo papado mais progressista que o seu?

É praticamente impossível responder a essas questões, mas alguns dados ajudam a pensar que o sucessor de Francisco não necessariamente será mais moderado do que ele. Haverá, claro, uma tentativa de rearticulação reacionária, mas o eleitorado fechado do conclave pode favorecer esse avanço.

Segundo frei Betto, os cardeais nomeados por Francisco somam 79,7% do atual colégio eleitoral. “São 18 eleitores na África, 18 na América do Sul (entre os quais 7 brasileiros), 20 na América do Norte e América Central, 24 na Ásia, 54 na Europa, e 4 na Oceania”.

Como já dissemos, o jogo político católico não é uma emulação da disputa entre progressistas e conservadores do lado de fora de igreja. Tem regras próprias, que apontam para outras necessidades de aliança e concertação.

Um bispo de Roma mais progressista, por sua vez, está longe de ser uma garantia de uma  igreja forte para ir algo além do discurso de resistência, capaz de reorganizar os pobres politicamente como fez a igreja do Vaticano II.

Quem assistiu ao filme Conclave, de Edward Berger, que venceu o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado deste ano e foi produzido com colaboração do Vaticano, ou a Habemus Papam, de Nani Moretti, de 2011, disponível nas plataformas de streaming, tem uma boa visão das tensões que envolvem a disputa no Vaticano, até que a fumaça branca suba e anuncie o que está por vir.

¨      Jorge Mario Bergoglio (1936-2025). Por Tales Ab’Saber

O Papa Francisco entendia a igreja como tolerante, universalmente amorosa, ecumênica, aberta e receptiva ao cuidado de todas as violências e exclusões do tempo. Entendia o cristianismo católico como universalmente comprometido com o reconhecimento, voltado a todas as situações da vida contemporânea, e não culpabilizador, excludente, autoritário e estrategicamente violento.

Seu apostolado era totalmente includente pela misericórdia. Evidentemente, ele foi lançado ao inferno do ódio dos católicos de direita, que o atacaram de todos os modos possíveis e imagináveis, sempre confundindo o seu próprio partido neofascista com as redes sociais, onde vivem. Para essa gente, do Concílio Vaticano II, de João XXIII, a Francisco, a igreja católica chegou à máxima decadência imaginável.

Apostasia, “sede vacante”, heresia, usurpador e até “anti-Cristo”, eram os modos crescentemente destrutivos que a intolerância e a autodeclarada verdade moral dos católicos do terror, que se alinharam com as direitas políticas mais violentas e satisfeitamente burras do tempo – abençoando e servindo a golpes de Bolsonaros e de Trumps – tratavam o sensível ao outro Francisco.

Sobre a união do grupo no ódio, o núcleo duro de um mito de superioridade, que se nomeia como a verdade de deus, exigindo a agência do poder e o rebaixamento da diferença e dos inferiores, em um movimento que se organiza e se torna orgânico em oposição a processos democratizantes, socialmente implicados, essa grotesca e espetacular reação católica contra o seu próprio Papa nos ensina muito sobre a lógica grupal, de psicologia de massas e modulação do “eu”, das direitas de nossa época.

Contra-democráticos, humanamente insensíveis, radicalmente anti-críticos, fascistas fazem apelo a deus e religiosos fazem apelos a fascistas, tudo através da “religião e partido das redes sociais”, para aumentar o ganho privado e particular de um grupo de auto ungidos, que inventam deus, contra todos os demais. Francisco claramente concebia deus em oposição ao deus fascista e sua política.

 

Fonte: Opera Mundi/A Terra é Redonda

 

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