quarta-feira, 23 de abril de 2025

O futuro do sindicalismo: reinventar para sobreviver ao século XXI

Não é novidade dizer que o mundo do trabalho, nas últimas décadas, atravessa transformações profundas. O perfil do mercado de trabalho no Brasil, com base em dados de 2021, revela uma clara predominância do setor de Serviços, que concentra a maior parte dos postos de trabalho no País. Considerando suas diversas modalidades, esse setor totaliza aproximadamente 75,7% das ocupações formais. Essa expressiva participação evidencia a centralidade dos Serviços na dinâmica econômica e laboral brasileira, superando amplamente a Indústria, que representa 21,2% dos postos, e a Agropecuária, com 3,1%.

Em que pese o baixo desemprego alcançado pelo terceiro governo Lula — medido em 6,2% (6,8 milhões) no 4º trimestre de 2024 —, não se pode perder de vista o aumento do trabalho informal no período. Conforme dados da PNAD Contínua, divulgados pelo IBGE em janeiro de 2024, o mercado de trabalho brasileiro apresentava um total de 38 milhões de empregados no setor privado com carteira assinada. Em contraste, a informalidade permanecia elevada: 13,5 milhões de pessoas atuavam como empregados sem carteira assinada no setor privado, enquanto outros 25,6 milhões trabalhavam por conta própria. Somadas, essas duas categorias representavam 39,1 milhões de trabalhadores em condições de maior vulnerabilidade, sem vínculo formal e com acesso limitado à proteção social e previdenciária — evidenciando a expressiva dimensão da informalidade no País.

Importa verificar, ainda, que não estamos apenas diante de um processo sem precedentes de informatização, uberização, plataformização e informalidade do trabalho — processos que vêm se ampliando em ritmo acelerado. Soma-se a isso a alteração igualmente inédita do modelo de serviço público, por meio da generalização da terceirização e dos contratos temporários. Note-se que não são exceções as cidades e, até mesmo, setores em níveis estaduais, nos quais, em diversos serviços essenciais, o contingente de servidores públicos em cargos de provimento efetivo é inferior ao de contratados temporários. Podemos citar também o exemplo de cidades que têm parte significativa de sua rede básica de saúde pública sob controle de empresas terceirizadas.

Como se percebe, estamos diante de alterações tão profundas na dinâmica das relações de trabalho que impactam, inclusive, a organização estatal e a própria prestação de serviços públicos essenciais, como saúde, segurança pública, educação, assistência social, entre outros.

Diante desse cenário, não se trata apenas de reconhecer os desafios impostos pelas novas formas de organização do trabalho, mas de entender que essas transformações remodelaram profundamente a própria composição da classe trabalhadora. A fragmentação dos vínculos formais, o crescimento do trabalho precário, terceirizado, temporário e por plataformas digitais diluíram a base tradicional sobre a qual os sindicatos se estruturaram ao longo do século XX. Se antes a representação sindical se ancorava majoritariamente no trabalhador formal, hoje a maior parte da classe se encontra em condições de informalidade ou subcontratação, muitas vezes à margem da proteção sindical.

Mas, e os sindicatos de trabalhadores, como ficam em um contexto no qual a dinâmica da exploração do trabalho humano está em acelerada transformação?

Frequentemente, são dadas duas respostas a essa pergunta. A primeira é que os sindicatos estão obsoletos enquanto ferramentas de luta e mobilização dos trabalhadores. A segunda é que, enquanto existir trabalho, os sindicatos existirão e continuarão sendo relevantes. Ambas as respostas contêm meias-verdades e, ao mesmo tempo, meias-mentiras.

Penso que, caso o sindicalismo não busque superar a profunda crise que enfrenta — ligada diretamente à reestruturação do trabalho —, ele pode, sim, perder sua utilidade enquanto ferramenta de luta dos trabalhadores contra a exploração dos patrões, ainda que se mantenha como instituição de representação reconhecida pelo Estado.

O que dá utilidade a qualquer instrumento na luta de classes é sua capacidade de mobilização. Por isso, ainda que sejam instituições com história, reconhecimento estatal e um papel consolidado no cenário político e social, se, em algum momento, o conjunto da classe desenvolver outra forma organizativa mais adequada às suas novas lutas, o sindicalismo será sepultado.

Até hoje, os trabalhadores não criaram uma ferramenta superior aos sindicatos. Ainda que em crise, acredito que, com estudo rigoroso sobre as transformações do mundo do trabalho, reposicionamento estratégico, paciência e, sobretudo, superação de práticas e estruturas obsoletas, os sindicatos ainda têm muito a oferecer. Podem não apenas conter a marcha da superexploração que avança sobre a classe trabalhadora, mas também resgatar o sentido de organização e pertencimento de classe nos locais de trabalho.

Será impossível enfrentarmos o capitalismo do século XXI com instrumentos programados para o capitalismo do século XX.

Para manter sua relevância no século XXI, os sindicatos devem ultrapassar a defesa exclusiva de interesses corporativos e assumir um papel mais abrangente, capaz de representar segmentos que compõem de forma periférica cada categoria.

A classe trabalhadora é, em sua essência, diversa e múltipla. É formada por homens e mulheres, pessoas cis e trans, negras e negros, indígenas, pessoas LGBTQIA+, pessoas com deficiência e tantas outras identidades e vivências que compõem a complexidade da classe que vive do trabalho no Brasil. Essa diversidade não pode mais ser vista como uma questão periférica ou de “minorias”, mas como uma dimensão central das lutas da classe como um todo.

Os sindicatos, se quiserem ser espaços vivos de organização, precisam incorporar de forma plena essas pautas e reconhecer que a luta contra o racismo, o machismo, a LGBTQIA+fobia e outras formas de opressão são lutas que atravessam e estruturam a própria condição de exploração no mundo do trabalho — e que estão presentes nas categorias. Não há mais separação possível entre a defesa dos direitos trabalhistas e a afirmação dos direitos humanos e da dignidade de todas as pessoas que compõem as categorias. Reconhecer essa multiplicidade e construir práticas verdadeiramente inclusivas é um passo fundamental para reorientar a ação sindical e fortalecer a unidade da classe trabalhadora.

No setor público, essa limitação tem se expressado de maneira aguda: muitos sindicatos de servidores mantêm uma lógica corporativa, voltada quase exclusivamente para a defesa dos interesses de determinadas carreiras ou categorias estáveis, enquanto ignoram ou marginalizam os trabalhadores terceirizados e contratados temporariamente. No entanto, são justamente esses trabalhadores que hoje estão à frente de boa parte da prestação dos serviços públicos essenciais, sendo também aqueles que enfrentam de maneira mais contundente a precarização, os baixos salários e a negação de direitos básicos. Incorporá-los de forma franca e efetiva à vida sindical — garantindo participação ativa, direito de voz e voto, e representação nas instâncias decisórias — constitui uma necessidade imprescindível para a reconstrução do poder de mobilização do sindicalismo.

É preciso romper com a lógica segmentada e corporativista que ainda predomina em muitos sindicatos, especialmente no serviço público, e reposicionar a política sindical para um horizonte mais amplo, que reconheça a totalidade da classe trabalhadora como sujeito coletivo das lutas que virão. O sindicalismo no setor público tem um papel estratégico não apenas na defesa das condições de trabalho de seus representados, mas também na luta por serviços públicos de qualidade, de acesso universal e pautados pela laicidade e pelo interesse público. Isso implica disputar ativamente o orçamento público como campo estratégico de luta, resistindo à sua captura por interesses do sistema financeiro e de setores empresariais que operam em favor da lógica do lucro. É preciso afirmar um projeto de financiamento estatal que priorize os direitos sociais e o bem-estar coletivo.

No entanto, essa defesa só será coerente e efetiva se os sindicatos ampliarem sua base de representação, incluindo de forma ativa os trabalhadores terceirizados, temporários e todas as demais formas de vínculo precário que hoje são fundamentais para o funcionamento dos serviços públicos.

Por fim, os sindicatos precisam se reorientar como ferramentas de solidariedade voltadas a costurar o tecido social rasgado por décadas de ofensiva neoliberal, neopentecostalismo ultraconservador e, atualmente, pela avalanche da extrema-direita. Para compreender a crise decorrente da reestruturação do trabalho, também urge perceber que os sindicatos são instrumentos inseridos em uma batalha pela subjetividade da nossa classe.

Nesse sentido, devem ser exemplos de solidariedade ativa entre o conjunto da classe trabalhadora, não se restringindo às suas categorias. Há pouco experimentamos uma pandemia sem precedentes e no Rio Grande do Sul uma enchente de proporções destrutivas e em ambos os casos foram os segmentos que vivem do trabalho, especialmente os mais precarizados, os mais afetados por estes dois eventos extremos. O presente é o tempo da crise climática e do capitalismo de desastre e os sindicatos devem estar à frente das ações de solidariedade de classe, seja no setor público, mais estratégico nesse ponto, seja no privado.

O capital busca a mercantilização total de todo e qualquer aspecto da vida humana. Os sindicatos precisam ser parte essencial de uma nova racionalidade — justamente por serem referências contra a exploração do trabalho, mas também por sua potência associativa, de cultura, lazer e apoio mútuo. Essa potência associativa precisa ser resgatada e ampliada, tornando-os instrumentos vivos de resistência e esperança, capazes de inspirar e organizar a classe trabalhadora nas batalhas do presente e do futuro.

 

Fonte: Por Daniel Severo Schiites, no Sul 21

 

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