O
futuro do sindicalismo: reinventar para sobreviver ao século XXI
Não é
novidade dizer que o mundo do trabalho, nas últimas décadas, atravessa
transformações profundas. O perfil do mercado de trabalho no Brasil, com base
em dados de 2021, revela uma clara predominância do setor de Serviços, que
concentra a maior parte dos postos de trabalho no País. Considerando suas
diversas modalidades, esse setor totaliza aproximadamente 75,7% das ocupações
formais. Essa expressiva participação evidencia a centralidade dos Serviços na
dinâmica econômica e laboral brasileira, superando amplamente a Indústria, que
representa 21,2% dos postos, e a Agropecuária, com 3,1%.
Em que
pese o baixo desemprego alcançado pelo terceiro governo Lula — medido em 6,2%
(6,8 milhões) no 4º trimestre de 2024 —, não se pode perder de vista o aumento
do trabalho informal no período. Conforme dados da PNAD Contínua, divulgados
pelo IBGE em janeiro de 2024, o mercado de trabalho brasileiro apresentava um
total de 38 milhões de empregados no setor privado com carteira assinada. Em
contraste, a informalidade permanecia elevada: 13,5 milhões de pessoas atuavam
como empregados sem carteira assinada no setor privado, enquanto outros 25,6
milhões trabalhavam por conta própria. Somadas, essas duas categorias
representavam 39,1 milhões de trabalhadores em condições de maior
vulnerabilidade, sem vínculo formal e com acesso limitado à proteção social e previdenciária
— evidenciando a expressiva dimensão da informalidade no País.
Importa
verificar, ainda, que não estamos apenas diante de um processo sem precedentes
de informatização, uberização, plataformização e informalidade do trabalho —
processos que vêm se ampliando em ritmo acelerado. Soma-se a isso a alteração
igualmente inédita do modelo de serviço público, por meio da generalização da
terceirização e dos contratos temporários. Note-se que não são exceções as
cidades e, até mesmo, setores em níveis estaduais, nos quais, em diversos
serviços essenciais, o contingente de servidores públicos em cargos de
provimento efetivo é inferior ao de contratados temporários. Podemos citar
também o exemplo de cidades que têm parte significativa de sua rede básica de
saúde pública sob controle de empresas terceirizadas.
Como se
percebe, estamos diante de alterações tão profundas na dinâmica das relações de
trabalho que impactam, inclusive, a organização estatal e a própria prestação
de serviços públicos essenciais, como saúde, segurança pública, educação,
assistência social, entre outros.
Diante
desse cenário, não se trata apenas de reconhecer os desafios impostos pelas
novas formas de organização do trabalho, mas de entender que essas
transformações remodelaram profundamente a própria composição da classe
trabalhadora. A fragmentação dos vínculos formais, o crescimento do trabalho
precário, terceirizado, temporário e por plataformas digitais diluíram a base
tradicional sobre a qual os sindicatos se estruturaram ao longo do século XX.
Se antes a representação sindical se ancorava majoritariamente no trabalhador
formal, hoje a maior parte da classe se encontra em condições de informalidade
ou subcontratação, muitas vezes à margem da proteção sindical.
Mas, e
os sindicatos de trabalhadores, como ficam em um contexto no qual a dinâmica da
exploração do trabalho humano está em acelerada transformação?
Frequentemente,
são dadas duas respostas a essa pergunta. A primeira é que os sindicatos estão
obsoletos enquanto ferramentas de luta e mobilização dos trabalhadores. A
segunda é que, enquanto existir trabalho, os sindicatos existirão e continuarão
sendo relevantes. Ambas as respostas contêm meias-verdades e, ao mesmo tempo,
meias-mentiras.
Penso
que, caso o sindicalismo não busque superar a profunda crise que enfrenta —
ligada diretamente à reestruturação do trabalho —, ele pode, sim, perder sua
utilidade enquanto ferramenta de luta dos trabalhadores contra a exploração dos
patrões, ainda que se mantenha como instituição de representação reconhecida
pelo Estado.
O que
dá utilidade a qualquer instrumento na luta de classes é sua capacidade de
mobilização. Por isso, ainda que sejam instituições com história,
reconhecimento estatal e um papel consolidado no cenário político e social, se,
em algum momento, o conjunto da classe desenvolver outra forma organizativa
mais adequada às suas novas lutas, o sindicalismo será sepultado.
Até
hoje, os trabalhadores não criaram uma ferramenta superior aos sindicatos.
Ainda que em crise, acredito que, com estudo rigoroso sobre as transformações
do mundo do trabalho, reposicionamento estratégico, paciência e, sobretudo,
superação de práticas e estruturas obsoletas, os sindicatos ainda têm muito a
oferecer. Podem não apenas conter a marcha da superexploração que avança sobre
a classe trabalhadora, mas também resgatar o sentido de organização e
pertencimento de classe nos locais de trabalho.
Será
impossível enfrentarmos o capitalismo do século XXI com instrumentos
programados para o capitalismo do século XX.
Para
manter sua relevância no século XXI, os sindicatos devem ultrapassar a defesa
exclusiva de interesses corporativos e assumir um papel mais abrangente, capaz
de representar segmentos que compõem de forma periférica cada categoria.
A
classe trabalhadora é, em sua essência, diversa e múltipla. É formada por
homens e mulheres, pessoas cis e trans, negras e negros, indígenas, pessoas
LGBTQIA+, pessoas com deficiência e tantas outras identidades e vivências que
compõem a complexidade da classe que vive do trabalho no Brasil. Essa
diversidade não pode mais ser vista como uma questão periférica ou de
“minorias”, mas como uma dimensão central das lutas da classe como um todo.
Os
sindicatos, se quiserem ser espaços vivos de organização, precisam incorporar
de forma plena essas pautas e reconhecer que a luta contra o racismo, o
machismo, a LGBTQIA+fobia e outras formas de opressão são lutas que atravessam
e estruturam a própria condição de exploração no mundo do trabalho — e que
estão presentes nas categorias. Não há mais separação possível entre a defesa
dos direitos trabalhistas e a afirmação dos direitos humanos e da dignidade de
todas as pessoas que compõem as categorias. Reconhecer essa multiplicidade e
construir práticas verdadeiramente inclusivas é um passo fundamental para
reorientar a ação sindical e fortalecer a unidade da classe trabalhadora.
No
setor público, essa limitação tem se expressado de maneira aguda: muitos
sindicatos de servidores mantêm uma lógica corporativa, voltada quase
exclusivamente para a defesa dos interesses de determinadas carreiras ou
categorias estáveis, enquanto ignoram ou marginalizam os trabalhadores
terceirizados e contratados temporariamente. No entanto, são justamente esses
trabalhadores que hoje estão à frente de boa parte da prestação dos serviços
públicos essenciais, sendo também aqueles que enfrentam de maneira mais
contundente a precarização, os baixos salários e a negação de direitos básicos.
Incorporá-los de forma franca e efetiva à vida sindical — garantindo
participação ativa, direito de voz e voto, e representação nas instâncias
decisórias — constitui uma necessidade imprescindível para a reconstrução do
poder de mobilização do sindicalismo.
É
preciso romper com a lógica segmentada e corporativista que ainda predomina em
muitos sindicatos, especialmente no serviço público, e reposicionar a política
sindical para um horizonte mais amplo, que reconheça a totalidade da classe
trabalhadora como sujeito coletivo das lutas que virão. O sindicalismo no setor
público tem um papel estratégico não apenas na defesa das condições de trabalho
de seus representados, mas também na luta por serviços públicos de qualidade,
de acesso universal e pautados pela laicidade e pelo interesse público. Isso
implica disputar ativamente o orçamento público como campo estratégico de luta,
resistindo à sua captura por interesses do sistema financeiro e de setores
empresariais que operam em favor da lógica do lucro. É preciso afirmar um
projeto de financiamento estatal que priorize os direitos sociais e o bem-estar
coletivo.
No
entanto, essa defesa só será coerente e efetiva se os sindicatos ampliarem sua
base de representação, incluindo de forma ativa os trabalhadores terceirizados,
temporários e todas as demais formas de vínculo precário que hoje são
fundamentais para o funcionamento dos serviços públicos.
Por
fim, os sindicatos precisam se reorientar como ferramentas de solidariedade
voltadas a costurar o tecido social rasgado por décadas de ofensiva neoliberal,
neopentecostalismo ultraconservador e, atualmente, pela avalanche da
extrema-direita. Para compreender a crise decorrente da reestruturação do
trabalho, também urge perceber que os sindicatos são instrumentos inseridos em
uma batalha pela subjetividade da nossa classe.
Nesse
sentido, devem ser exemplos de solidariedade ativa entre o conjunto da classe
trabalhadora, não se restringindo às suas categorias. Há pouco experimentamos
uma pandemia sem precedentes e no Rio Grande do Sul uma enchente de proporções
destrutivas e em ambos os casos foram os segmentos que vivem do trabalho,
especialmente os mais precarizados, os mais afetados por estes dois eventos
extremos. O presente é o tempo da crise climática e do capitalismo de desastre
e os sindicatos devem estar à frente das ações de solidariedade de classe, seja
no setor público, mais estratégico nesse ponto, seja no privado.
O
capital busca a mercantilização total de todo e qualquer aspecto da vida
humana. Os sindicatos precisam ser parte essencial de uma nova racionalidade —
justamente por serem referências contra a exploração do trabalho, mas também
por sua potência associativa, de cultura, lazer e apoio mútuo. Essa potência
associativa precisa ser resgatada e ampliada, tornando-os instrumentos vivos de
resistência e esperança, capazes de inspirar e organizar a classe trabalhadora
nas batalhas do presente e do futuro.
Fonte:
Por Daniel Severo Schiites, no Sul 21

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