Anne Soupa: Dada as tendências atuais, que
resistência podemos esperar?
Na França, assim como no restante do mundo,
os cristãos estão analisando com descrença as reviravoltas surreais da situação
global. Anne Soupa é teóloga e escritora. Estudiosa bíblica do Instituto
Católico de Paris, ela é ex-diretora da revista Biblia, publicada pelos
dominicanos franceses. Em 2009, Soupa cofundadora do Comité de la Jupe,
associação dedicada ao lugar da mulher na Igreja, bem como da Conferência
Católica dos Francófonos Batizados. A seguir encontra-se a meditação que ele
propôs para o 5º Domingo da Quaresma de 2025 na paróquia católica da cidade de
Niort, no centro-oeste do país.
>>> Eis o artigo.
A lei do mais forte não é mais uma realidade
hoje em dia. Mas agora está assumindo proporções perturbadoras: um desejo de
tomar Estados soberanos, colonização e até limpeza étnica, um clima de suspeita
em relação aos direitos das mulheres e das minorias sexuais, negação do risco
ecológico, absolutização do dinheiro, a suposta discriminação contra
estrangeiros, a redução da pessoa humana à condição de mero consumidor,
desrespeito à própria palavra... Além disso, essas atitudes são reivindicadas
pelos cristãos.
De fato, Putin e os neoconservadores
americanos afirmam ser defensores do cristianismo. Mas como podemos deixar de
ver que eles estão explorando o cristianismo para fins políticos? E, acima de
tudo, seu cristianismo ignora sua dimensão social, interessando-se apenas pela
esfera privada. Mas a pessoa é uma só, em seu lar e em sua vida pública. A
responsabilidade cristã é global. Não é de surpreender, então, que os cristãos
estejam profundamente perturbados. O objetivo destas reflexões não é debater
questões jurídicas, econômicas ou ambientais; em vez disso, trata-se de
explorar como os fundamentos do cristianismo estão sendo minados pelas falhas
atuais e que resistência espiritual pode ser oferecida a eles. Este último me
parece não apenas desejável, mas indispensável. Se os cristãos não resistirem,
quem o fará? Eles são os guardiões supremos de uma fonte evangélica da qual a
comunidade humana precisa mais do que nunca. Como e com base em que argumentos
resistir?
• A
cruz: roteiro e regra de vida
A resposta está na contemplação da cruz. Os
cristãos tiram dela suas regras de vida. Aqui estão quatro dessas regras.
o Ao
deixar-se pregar no madeiro da cruz, Jesus dá a sua vida. Não há vida social,
nem mesmo a própria vida, sem um dom. Sem ele, é guerra porque o outro vai
tomar à força o que eu possuo.
o A
cruz mostra o quanto Jesus se recusa a usar qualquer poder. Ele, que não queria
se tornar rei, denuncia a opressão de um sistema de poderes no qual todos estão
presos, cada um exercendo controle sobre alguém menor que ele. Jesus, por outro
lado, adquire considerável autoridade moral ao se tornar um servo, respeitoso
de todos e atento à sua liberdade.
o Na
cruz, Jesus se torna um pária, um fora da lei. Ao tomar o lugar daqueles que
não têm lugar, ele rejeita o próprio princípio da exclusão. Assim, ele trabalha
pela reconciliação da humanidade.
o E
ele se torna irmão de todos.
Doação de si, serviço, reconciliação da
humanidade, fraternidade, este é o “roteiro” cristão.
Notemos que isso também acontece com vários
não cristãos. Muitos países vivem com base nesses mesmos valores, desprovidos
de referências transcendentes, e muito bem resumidos no lema da República
Francesa: "Liberdade, Igualdade, Fraternidade". E indiretamente, isso
também se aplica à maioria das religiões, que têm em comum a “Regra de Ouro”:
“Não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem a você”.
Boa parte da humanidade hoje enfrenta,
portanto, este dilema: respeitar os valores de um judaico-cristianismo
secularizado ou juntar-se ao lado dos predadores?
2025: Apagada do horizonte, é a cruz que está
sendo colocada em uma cruz!
É verdade que nem o dom, nem a primazia do
serviço sobre o poder, nem a reconciliação da humanidade, nem a fraternidade
reinam no mundo. Mas esses valores são o horizonte que muitos se dão. E de
repente, esse horizonte desaparece. Como superar essa grave crise de
consciência, essa experiência espiritual em si?
Os cristãos, por sua vez, não podem deixar de
notar o quanto a mensagem daquele que eles consideram o Filho de Deus está
sendo deixada de lado, colocada fora de cena. A cruz não é mais o horizonte do
mundo, mas seu contramodelo. Em vez de dar, há rapacidade diante do lucro; em
vez de rejeitar o poder opressor, há desprezo pelos fracos; em vez de
reconciliação da humanidade e fraternidade, há discriminação, exclusão e ódio
ao próximo. É a cruz que está sendo colocada na cruz, já que ela se tornou o
lugar da falta de sentido.
Quando Jesus pergunta ao Pai: “Por que me
abandonaste?”, ele revela, naquela solidão, a falta de sentido de uma morte que
talvez nunca seja compreendida.
Ele, que passou por esta morte espiritual,
convida os cristãos de 2025, depois de tantos outros ao longo da história, a
permanecerem despertos, com Ele, para enfrentar a negação dos valores que Ele
lhes legou.
Sim, a mensagem da cruz inclui a aceitação de
tudo que a nega. É uma crise de significado radical, que nos põe à prova. Na
nossa atual situação política, o abandono sentido por Jesus está sendo
vivenciado mais uma vez. Tal como ele, estamos perante um “Momento Teológico”.
Como responder? Como sobreviver a isso?
• A
esperança brota de expectativas quebradas e se transforma em ação
É bom então dar outro olhar às riquezas
cristãs. Mesmo que as instituições estejam enfraquecidas pela crise dos abusos,
mesmo que o atual pontificado não seja capaz de lançar as reformas necessárias,
o cristianismo é, por si só, extremamente poderoso. Se a sua força vem da
mensagem ética da cruz, que acabámos de rever, ela consiste também em não
“fugir” do mal, mas em vencê-lo com o perdão que é sempre oferecido.
Mas acima de tudo, o cristianismo convida
cada um de nós, quase obsessivamente, a criar, a viver com confiança, a fazer
frutificar os nossos talentos, a embelezar o mundo. Sua capacidade de
transformação é infinita. Não, o cristianismo não é a religião dos fracos. Diz
simplesmente: “Tudo é possível, mas não sem os fracos”.
Se for assim, cabe a cada um de nós lembrar,
alto e claro, o quanto somos sortudos por sermos cristãos e a felicidade que
isso traz. Protegendo-se de um cristianismo identitário, com tendência ao
"individualismo" e ao isolamento do passado, abrindo-se à dimensão
universal do cristianismo.
Nesta missão, as três virtudes que fortalecem
os cristãos são a fé, a esperança e a caridade. A coisa mais esperada hoje é a
esperança. Neste momento, como em outros, isso se aprende diante da cruz. Um
cristão encontra esperança quando enfrenta zombaria, violência e força bruta, e
se vê controlado por eles. A esperança deles brota e cresce em suas
expectativas quebradas.
Mas essa observação é apenas o começo. A
esperança é uma virtude que se prova pelas ações. O que estamos vendo agora nos
obriga a agir, de muitas maneiras: por meio de palavras, caridade,
fraternidade, inteligência, criatividade, ativismo e também prudência... Cada
uma delas é uma forma da resistência esperada.
• Primeiro
passo, testemunhe
Quanto a mim, proporia aqui um ato inicial de
resistência. É sobre o testemunho. De fato, o testemunho é o pilar de toda
comunidade cristã. Sem ele, não haveria Evangelhos, nem mesmo o cristianismo.
Portanto, todo cristão é uma testemunha, tanto pela palavra quanto pelas ações.
Ele diz o que o cristianismo o faz viver. Isso pode parecer insignificante. Mas
é a pedra angular, o fundamento sobre o qual propor atos concretos de
resistência.
Fonte: Tradução de Yvonne Belaunde, em IHU

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