quarta-feira, 23 de abril de 2025

'Francisco fez um papado de resistência à extrema direita'

O papa Francisco liderou a inclusão da Igreja Católica no século 21 e tornou seu papado um foco de resistência à ascensão global da direita mais conservadora, analisa o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. À frente do Vaticano por 12 anos, Francisco tornou o catolicismo mais aberto aos homossexuais, ao autorizar que casais do mesmo sexo recebam a benção de padres, e adotou posicionamentos firmes em questões globais, como o repúdio à concentração de riqueza e à exclusão de imigrantes, exemplifica.

"Com um capital político gigantesco advindo da sua força religiosa, ele soube dar os recados aos poderosos, aos pretensos tiranos. Foi uma voz muito profética de combate a essa extrema direita no mundo", afirma Moraes. "Acho que o maior recado de Francisco é que é possível ser um cristão praticando verdadeiramente o Evangelho no século 21. E isso significa saber escolher as lutas corretas, e, principalmente, ter uma prática coerente com a prática de Jesus Cristo, com a prática de um evangelho vivido na sua integralidade", continuou.

Para o teólogo, a continuidade desse legado dependerá da escolha do seu sucessor.

Na sua visão, o papa Franscisco "foi muito sagaz" na nomeação de novos cardeais ao longo do seu papado. Foi ele que escolheu a maioria dos que vão eleger o novo papa (108 dos 135 eleitores), incluindo mais cardeais de fora da Europa e com visões de mundo mais próximas à sua. Moraes aponta como forte na disputa o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, conhecido como o "papa Francisco asiático". Na sua leitura, porém, a conjuntura política pode levar a escolha de um papa europeu. "A Europa corre o risco hoje de ficar emparedada entre os interesses de superpotências: os interesses da China, os interesses de Trump [presidente Estados Unidos], os interesses de um Putin [presidente da Rússia] com amplos poderes, com um desejo autocrático gigantesco", analisa. "Então, a escolha de um papa europeu, com bom trânsito e com uma cabeça arejada, não me surpreenderia nem um pouco nesse momento. Porque, antes de mais nada, é uma escolha espiritual, mas é também uma escolha política, sem sombra de dúvida", disse ainda.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista:

·        Qual foi o principal legado do papa Francisco? Qual a importância do seu papado?

Gerson Leite de Moraes – Depois de um papado de um homem [Bento 16] muito ligado às questões doutrinárias, às questões relativas à ordem, à disciplina, o papa Francisco aparece em cena e começa a pautar a Igreja em relação a temas extremamente importantes. Ele toca nas questões ambientais, ele toca nas questões de concentração de riqueza. Ele fala às mulheres, fala aos divorciados, fala à comunidade LGBTQIA+, e fala com muita propriedade. Ele ataca as questões relativas às guerras. Então, quando você faz um balanço do papado de Francisco, você percebe que ele é um papa que colocou a Igreja pra tocar em determinadas feridas que precisam ser tocadas. Mais do que ser um homem da ortodoxia, ele foi um homem da ortopraxia, da prática correta. Ou seja, se eu quiser que o evangelho ressoe de uma maneira coerente para as pessoas, eu preciso viver isso. E é um recado claro para a Igreja. Uma igreja que enfrenta inúmeras crises. Ele mesmo pegou uma igreja com problemas de pedofilia e corrupção e, de repente, atacou essas questões. É lógico que você não muda um transatlântico como a Igreja Católica da noite pro dia. Então, isso ainda vai depender muito do próximo papa. A gente ainda vai sentir os efeitos dessas mudanças do Francisco ou não. Se você tiver um papa mais conservador, isso poderá ser um sério problema para a vida da Igreja.

·        O papa Francisco se destacou por uma postura mais simples e pelas falas que você citou. O legado dele fica mais nesse campo da imagem que projetou e das coisas que falou, ou ele também foi capaz de adotar medidas mais concretas que atualizaram e modificaram a Igreja?

Gerson Moraes – As duas coisas. Para ele, o simbolismo era importante, mas um simbolismo que pudesse ser construído na prática. Então, por exemplo, ele adotou medidas que puniam com muito mais rigor os pedófilos. Ele adotou medidas que afastavam clérigos envolvidos em corrupção. E, nesse sentido, eu acho que ele tem uma dupla imagem na sua personalidade. Ele é um jesuíta. E, quando Inácio de Loyola organizou a Companhia de Jesus, os primeiros princípios da Companhia de Jesus eram de obedecer como um cadáver. Perinde ac cadaver é a expressão latina. Ele obedeceu como um cadáver, foi um homem da igreja, mas quando ele assumiu o papado e o Bergoglio virou Francisco, assumiu uma outra postura, que é a opção preferencial pelos pobres, pelos necessitados. Então ele é um jesuíta, mas um jesuíta franciscano. Por exemplo, acabou aquela tradição de enterrar o papa em três caixões. Até o ano passado, o enterro de um papa teria que acontecer num caixão de cipreste, num caixão de chumbo e num caixão de olmo. E, de repente, ele vai lá e simplifica tudo isso. Então, até no momento da morte ele concilia o símbolo e a prática, assumindo uma postura humilde do começo ao fim. No fundo, ele sabia que a hora dele, a Páscoa dele, chegaria. Mesmo depois de morto, ele continua assumindo uma postura muito interessante.

·        O papado do Francisco foi marcado por uma mudança na conjuntura internacional, com a ascensão de uma direita mais conservadora em muitos países. Qual foi o papel do seu papado nesse contexto?

Gerson Moraes – O papado dele é uma resistência a tudo isso. Com um poder gigantesco nas mãos, um capital político gigantesco advindo da sua força religiosa, ele soube dar os recados aos poderosos, aos pretensos tiranos. Então, nesse sentido, ele foi uma voz muito profética de combate a essa extrema direita no mundo, que, no fundo, é um grande retrocesso. Porque é uma onda reacionária que, no final das contas, trabalha com a lógica da exclusão. Francisco era um homem que tentava incluir, um homem que tentava trazer para dentro da Igreja todos os segmentos.

·        Quais foram esses recados?

Gerson Moraes – Acho que o maior recado de Francisco é que é possível ser um cristão praticando verdadeiramente o Evangelho no século 21. Essa é a grande mensagem dele. E isso significa saber escolher as lutas corretas, as pautas corretas e, principalmente, ter uma prática coerente com a prática de Jesus Cristo, com a prática de um evangelho vivido na sua integralidade.

·        Quais pautas seriam essas? A questão ambiental, a desigualdade de renda, a pauta dos imigrantes?

Gerson Moraes – Sim, todas elas, porque todas elas trabalham com a lógica de optar pelo mais fraco. Quando ele critica a renda concentrada, ele está dizendo "esse mundo é injusto". Quando ele critica o tratamento que as superpotências dão aos imigrantes, ele está dizendo "isso não faz sentido, afinal de contas, quem mais sofre são as pessoas mais humildes que estão se deslocando no mundo, não porque querem, mas porque precisam sobreviver". E quando ele critica guerras, por exemplo, ele está dizendo claramente que quem mais sofre são crianças, são idosos, são pessoas necessitadas. Quer dizer, aqueles que não têm nada a ver com os interesses dos poderosos são aqueles que acabam padecendo sob o tacão da tirania.

·        Em 2023, o Vaticano autorizou padres a abençoar relacionamentos de casais do mesmo sexo, mas manteve proibido o casamento homossexual. O papa Francisco se equilibrava entre o progressismo e as estruturas milenares da Igreja?

Gerson Moraes – Ele está mudando um transatlântico. Ou seja, são séculos, milênios de posicionamentos da Igreja Católica. E a política, mesmo a política eclesiástica, ela é a arte do possível. Então, o que foi possível, o que esteve ao alcance dele, ele implementou. "Ah, mas não foram as mudanças que nós precisamos ou que gostaríamos". Mas foi o que foi possível. Ou seja, você coloca mais um degrau, você abre mais um espaço. E, nessa disputa por espaço é importante que esses avanços continuem acontecendo. O difícil seria um retrocesso nesses avanços conquistados por Francisco. Por exemplo, pouca gente fala, e eu também não quero criar polêmica com isso, mas Francisco meio que protestantizou o casamento para os homossexuais. Em que sentido? Veja só, o que é um casamento pra um evangélico, pra um protestante? É uma bênção. O casal vai lá na frente do pastor, já se casaram no civil, mas eles pedem a bênção de Deus através desse sacerdote, que é um pastor. Ora, por quê? Porque na igreja evangélica e na igreja protestante, o casamento não é um sacramento. Ele é uma benção. É um culto onde os noivos estão pedindo a benção de Deus. O que o Francisco faz? Ele vai lá e diz: os gays podem receber uma benção. É um casamento. Mas não é um casamento no estilo católico, no estilo sacramental, mas não deixa de ser uma bênção. Então, se vale para o protestante, vale para o católico homossexual. Ou seja, é possível fazer isso, ter essa saída? Então vamos adotá-la. Então, está aí a sabedoria do Francisco.

·        Francisco nomeou a maioria dos cardeais que elegerá o novo papa (108 dos 135) e ampliou a diversidade, com mais cardeais de fora da Europa. Como isso vai impactar na escolha do novo papa?

Gerson Moraes – Então, Francisco foi muito sagaz nessa composição da Cúria, nessa composição dos cardeais que vão participar do conclave. Esses cardeais foram escolhidos por ter uma certa afinidade com o pensamento do papa. Não significa que todos eles serão fiéis no momento em que estarão votando, mesmo porque há toda uma conjuntura política que transcende essas questões. Nós tivemos um papa latino-americano, que deu um recado para o mundo, que foi uma forma de resistência ao poder da extrema direita. E aí, diante dessa situação toda, a gente espera que a Igreja continue com essas mudanças. Mas tem gente que aposta no seguinte: "a Igreja é como o mar, às vezes avança, às vezes recua". Então, houve um certo recuo com o Bento 16, agora houve um avanço com o papa Francisco, pode ser que o próximo papa seja mais conservador? Pode, faz sentido, mas ninguém consegue imaginar como a Igreja vai se posicionar. Algumas pistas podem ser elencadas. Por exemplo, eu acho muito complicado o cenário europeu neste momento. A Europa é um local amplamente secularizado, com uma força secularizante gigantesca. Então, isso mereceria um olhar especial da Igreja, como já aconteceu no passado. Mas tem outro agravante: a Europa corre o risco hoje de ficar emparedada entre os interesses de superpotências: os interesses da China, os interesses de Trump [presidente Estados Unidos], os interesses de um Putin [presidente da Rússia] com amplos poderes, com um desejo autocrático gigantesco. Então, a escolha de um papa europeu, com bom trânsito e com uma cabeça arejada, não me surpreenderia nem um pouco nesse momento. Porque, antes de mais nada, é uma escolha espiritual, mas é também uma escolha política, sem sombra de dúvida.

·        O papa Francisco foi o primeiro não europeu em mais de mil anos. A escolha de um novo papa da América do Sul ou, especificamente, do Brasil não está no radar?

Gerson Moraes – Acho pouco provável. Se acontecer, será uma grande surpresa. A América Latina foi contemplada [com a escolha do papa Francisco]. Então, agora precisamos olhar para outros lugares. Há um filipino [cardeal Luis Antonio Tagle] chamado de papa Francisco asiático, que desponta com muita força também, mas há outros que vão aparecendo.

¨      Como crítica ferrenha do papa Francisco aos poderosos impactou muito além de seus fiéis

Durante 12 anos profundamente significativos, o papa Francisco conduziu a Igreja Católica por territórios inexplorados, de maneiras que terão reverberações por muito tempo no futuro. O pontífice trabalhou para suavizar a imagem da Igreja Católica para muitos, afrouxou o controle do Vaticano sobre o poder e interveio em algumas das principais questões sociais do nosso tempo.

Dentro do catolicismo, ele certamente teve seus críticos; alguns tradicionalistas, em particular, ficaram muitas vezes indignados com ações que consideravam um afastamento radical do ensinamento da Igreja. Apesar de ser um pacifista vocal e crítico de ações de grandes nações que ele via como prejudiciais, também houve quem achasse que ele deveria ter sido mais progressista.

Desde o momento em que foi eleito em 2013, o papa Francisco chegou com uma informalidade e um sorriso que deixavam as pessoas à vontade. Era simbólico de um princípio que orientava sua crença de que a Igreja deveria alcançar as pessoas em sua vida cotidiana, onde quer que elas estivessem no mundo. "No início do meu papado, eu tinha a sensação de que ele seria breve: pensei que duraria no máximo três ou quatro anos", disse Francisco em sua autobiografia Esperança, lançada em janeiro de 2025, um livro que nos dá uma visão das reflexões do papa sobre seu legado.

Um de seus primeiros atos como papa foi abrir mão do apartamento papal no terceiro andar do Palácio Apostólico, escolhendo em vez disso viver na mesma casa de hóspedes em que havia se hospedado como cardeal. Alguns viram isso como um sinal de que ele estava abrindo mão dos adornos ostensivos do papado e da humildade pela qual certamente se tornaria conhecido – afinal, ele adotou o nome de um santo que defendia a causa dos pobres. Mas o principal motivo para abandonar o apartamento papal, como ele explicou mais tarde, apontava para outra de suas características: ele gostava de estar cercado de pessoas. Para ele, o apartamento parecia isolado e um lugar difícil para receber convidados. Na casa de hóspedes, estava cercado por membros do clero e raramente ficava sozinho por muito tempo.

Em viagens ao exterior para mais de 60 países, em suas audiências no Vaticano e durante inúmeros eventos, ficava muito claro que estar próximo das pessoas – especialmente dos jovens – era seu combustível.

·        Questões sociais e 'católicos imperfeitos'

Dentro do catolicismo, ele sinalizou uma mudança radical no tom em relação a algumas questões sociais. "Todos são convidados à Igreja, inclusive pessoas divorciadas, homossexuais e transgêneros", escreveu ele em sua autobiografia.

Dado que a Igreja não reconhece o divórcio em seu direito canônico e que papas anteriores haviam se referido à homossexualidade como um distúrbio, e não como "um fato humano", como Francisco a descreveu, essa mudança novamente preocupou os tradicionalistas.

Mas o papa parecia querer que a Igreja explorasse e compreendesse as lutas do dia a dia das pessoas sob uma nova luz. Ele reconheceu sua própria jornada de transformação em relação a temas que via de forma diferente no passado.

Progressistas acolheram com entusiasmo a compaixão do papa pelos chamados "católicos imperfeitos", mas também houve um reconhecimento mais amplo de que palavras de aceitação vindas de um pontífice poderiam impactar até mesmo aqueles fora da Igreja. "A primeira vez que um grupo de pessoas transgênero veio ao Vaticano, elas saíram em lágrimas, emocionadas porque eu tinha segurado suas mãos, beijado-as... como se eu tivesse feito algo excepcional por elas! Mas elas são filhas de Deus", escreveu em Esperança.

O papa Francisco condenou veementemente os países que consideram a homossexualidade um crime, e falou que o divórcio às vezes é "moralmente necessário", citando casos de violência doméstica.

No entanto, há quem sugira que o papa poderia ter ido mais longe ao incentivar mudanças nos ensinamentos da Igreja. "Atos" homossexuais ainda são considerados pecado no catolicismo, o casamento ainda é restrito a homem e mulher, o divórcio não é oficialmente reconhecido, e o próprio papa permaneceu firmemente contra a redesignação de gênero e a barriga de aluguel.

Ao longo de seu papado, e muito antes dele, o papa Francisco também manteve firmemente sua crença de que as mulheres não deveriam ser sacerdotes. No entanto, ele descreveu a Igreja como "feminina" e incentivou paróquias ao redor do mundo a encontrar mais papéis de liderança para mulheres em formas compatíveis com os ensinamentos católicos, que atualmente não permitem a ordenação feminina.

Em 2021, a irmã Raffaella Petrini foi nomeada secretária-geral do Estado do Vaticano e, sob Francisco, o Vaticano começou um processo de estudo contínuo sobre se as mulheres poderiam assumir o papel de diáconas, auxiliando nos serviços religiosos.

Mesmo assim, alguns reformistas ficaram desapontados com a falta de avanços maiores na igualdade para as mulheres — especialmente considerando que a maioria dos fiéis da Igreja são mulheres. Na parte final de seu papado, o papa lançou um processo de consulta ambicioso de três anos, com o objetivo de ouvir o maior número possível dos mais de 1 bilhão de católicos no mundo.

Foram realizadas dezenas de milhares de sessões de escuta em todo o planeta, para identificar os assuntos mais importantes para os católicos. Ficou claro que o papel das mulheres e formas de inclusão de católicos LGBT+ estavam entre os principais temas. Embora o processo não tenha resultado em ações decisivas, ele refletiu o desejo de Francisco de que seu pontificado não fosse centrado em Roma ou no clero, mas sim na vida dos fiéis ao redor do mundo.

·        Um legado complexo

Durante o papado do argentino, houve um foco particular em alcançar os que estavam às margens na economia e política, com palavras e ações incentivando os padres a se aproximarem dos desfavorecidos.

A dignidade dos migrantes foi uma preocupação constante, assim como a construção de pontes com outras denominações cristãs, outras religiões e pessoas sem fé.

Em algumas ocasiões, esse alcance foi visto por tradicionalistas como inadequado, como em 2016, quando o papa visitou um centro de refugiados nos arredores de Roma e lavou e beijou os pés de muçulmanos, hindus e cristãos coptas (membros da Igreja Ortodoxa Copta de Alexandria, a maior comunidade cristã no Egito e no Oriente Médio).

Além de ser uma voz apaixonada pelos migrantes – inclusive colocando uma coroa de flores nas águas onde muitos haviam morrido em suas jornadas –, ele também associou os impactos da mudança climática à pobreza.

Em discursos, como ao Congresso dos EUA, e em um de seus documentos mais importantes, o decreto Laudato Si, o papa Francisco falou dos danos ambientais como uma forma de os países ricos prejudicarem os pobres.

Veementemente contra a guerra, o papa frequentemente disse que o conflito era um fracasso da humanidade.

Ele chamou a guerra em Gaza de "terrorismo" e desde cedo implorou por um cessar-fogo.

Francisco se reuniu com famílias de israelenses sequestrados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, mas também falou com paixão sobre o sofrimento dos civis palestinos em Gaza, especialmente das crianças, e fazia ligações diárias para a Igreja da Sagrada Família na Cidade de Gaza.

Mas, às vezes, seu desejo de construir pontes foi visto por alguns como um obstáculo para adotar posições firmes contra injustiças.

Aos olhos de muitos, ele falhou ao não denunciar de forma inequívoca a agressão da Rússia à Ucrânia ou enfrentar a questão da vigilância e perseguição a católicos na China.

Desde o início de seu papado, também teve que lidar com problemas internos graves.

A corrupção há muito tempo assombrava os altos escalões da Igreja. Logo no início, Francisco fechou milhares de contas não autorizadas no banco do Vaticano, e mais tarde implementou regras de transparência financeira.

Mas foi na forma como enfrentou os horrores do abuso sexual infantil por membros da Igreja que ele demonstrou consciência da gravidade do problema.

"Desde o início do meu papado, senti que estava sendo chamado a assumir a responsabilidade por todo o mal cometido por certos padres", escreveu em Esperança.

Para ilustrar a dimensão do problema, em 2020 a Igreja Católica divulgou listas de clérigos vivos nos EUA acusados de abusos sexuais — incluindo casos de pornografia infantil e estupro. Eram cerca de 2 mil nomes.

"Com vergonha e arrependimento, a Igreja deve buscar o perdão pelos danos terríveis que esses clérigos causaram com o abuso sexual de crianças, um crime que causa feridas profundas", escreveu ele recentemente.

Entre outras medidas, o papa Francisco criou regras que obrigam membros da Igreja a denunciar abusos caso tenham conhecimento, sob pena de serem removidos de seus cargos.

Embora tenha cometido erros de julgamento — por vezes apoiando publicamente clérigos que falharam em lidar com abusos —, o papa Francisco foi rápido em se desculpar por seus próprios erros e pelas falhas profundas da Igreja.

Tanto no Vaticano quanto em viagens, ele frequentemente se reunia com vítimas. Pedir desculpas pelos abusos foi o foco principal de algumas dessas viagens.

Uma parte enorme de seu legado é a forma como ele mudou a composição do alto clero da Igreja por meio da escolha de novos cardeais.

Na verdade, cerca de 80% dos cardeais que escolherão o próximo papa foram nomeados por ele. O que se destaca nessas nomeações é a diversidade: muitos vêm da América do Sul, África e Ásia.

Isso fazia parte da missão de Francisco de deslocar o centro de gravidade do catolicismo da Europa — onde está em declínio — para regiões onde ele está florescendo, e refletir isso na liderança da Igreja.

A comoção mundial após sua morte é talvez um sinal de que essa mudança está em curso.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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