Luiz
Marques: Grandes substituições
A
historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, em O eu soberano:
ensaio sobre as derivas identitárias, aponta a hipertrofia egoica e a
intoxicação narcísica em guinadas ideológicas que conduzem a um “novo
conformismo da norma”. Qual os atenienses que veneravam o “navio de Teseu”, os
timoneiros atuais, de tanto trocar as peças gastas por outras, não conseguem
assegurar que se mantêm na mesma embarcação desde o princípio ao fim da
jornada, com coerência filosófica.
Na
França, o colonialismo recalcado retorna na forma de conflitos nas periferias,
com a violência urbana e a dificuldade de integração das comunidades
originárias da imigração árabe e africana aos padrões da metrópole. No Brasil,
o genocídio da alteridade nas favelas com o morticínio de jovens pretos pelas
forças militares evidencia a exclusão estrutural de sobreviventes do perverso
martírio nos engenhos nordestinos e charqueadas gaúchas. O escravismo permanece
no DNA da brasilidade.
Nos
Estados Unidos, direitos civis ativam núcleos da Ku Klux Klan de apoio ao Blue
Lives Matter (Vidas Azuis – dos policiais – Importam) para sopesar o Black
Lives Matter dos afrodescendentes. A cobrança dos crimes da “cultura branca” e
o “sentimento de vítima” dos caucasianos, diante da discriminação positiva
(affirmative action), geram a inversão da pecha ao movimento antirracista. A
legislação para punir atos degradantes de segregação étnico-racial é tachada de
“racismo reverso”.
Enquanto
isso, “nacional-identitários” sentem-se substituídos na globalização e veem o
liberalismo, o socialismo e o multiculturalismo como responsáveis por sua
tragédia mais imaginária do que real. Mas o temor de os “bárbaros” (migrantes,
refugiados) tomarem o lugar de pertença dos supostos “arianos” não se reduz à
questão da renda. Entrelaça os valores enaltecidos em uma alternativa ao
iluminismo. Há mais variáveis entre o céu e a terra do que adivinha a
escolástica dos economistas. Hoje a palavra de ordem “No pasarán!” está nas
mãos dos construtores de muros, medos e ódios.
• A guerra da eternidade
Um tal
movimento sinaliza um retrocesso – “o abandono das Luzes”. Na Polônia, na
Hungria, na Itália, na Península Escandinava, nos Países Baixos, na Alemanha,
na Grécia e no Brexit do Reino Unido nostálgico do domínio colonial aumenta o
protesto autoritarista e neonazista contra o eixo do mercado europeu; e a favor
do isolamento em redomas de xenofobia protegidas pelas armas.
Na
Turquia, Recep Tayiip Erdogan sonha com a volta do Império Otomano. Na Rússia,
Vladimir Putin recupera a soberba imperial. Na Índia, Narendra Modi lidera a
blitz em nome da “hinduidade” contra os intelectuais e os jornalistas na
perseguição às minorias muçulmanas e cristãs. Em Israel, Benjamin Netanyahu
extermina os palestinos na Faixa de Gaza. A lista inclui ainda a prepotência
da “America First” que exala uma
superioridade biológica, patrimonial, cultural, social e existencial com ares
passadistas. Há perigo em ambos os lados do Oceano Atlântico. Todo cuidado é
pouco.
No
Ocidente branco, judaico-cristão e patriarcal-heterossexual a reação torpedeia
a diversidade e o feminismo com a pulsão de morte. Antigas referências são
resgatadas: Família, Exército, Nação, Igreja, Pátria – com maiúsculas. Os
reacionários têm cartas escondidas na manga para cada ocasião. Sua única
certeza é que o presente insuportável resulta da catástrofe histórica imputável
a inimigos conhecidos. Antes os judeus, agora a solidariedade geral que se
reparte e cresce apesar dos ataques.
Os
guardiões dos preconceitos ameaçados na modernidade idealizam hierarquias
rígidas, de acordo com o etnógrafo Benjamin Teitelbaum, em A guerra da
eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista.
Vide o guru Olavo de Carvalho. Impediu a filha de se alfabetizar. “Mulher não
precisa estudar”. Até que a tia descobriu que a menina de treze anos não sabia
ler e a matriculou numa escola para crianças com seis anos. Tudo que não
reflete o medievo é “totalitário”.
• Futuro da humanidade
As
“grandes substituições” propostas pelo neoliberalismo trocam o Estado de
direito pelo regime de exceção; a política governamental pelo empreendedorismo;
a liberdade de expressão pela infâmia; o jornalismo pelas fake news; a
participação popular pela corrupção dos representantes. A verdade torna-se uma
tarifa tributária. O conhecimento e a ciência são postos sob vigilância e
suspeição.
Já a
fúria iconoclasta irrompe em função de maus-tratos impingidos às parcelas
estigmatizadas da sociedade, ao longo de períodos de repressão e sofrimento. A
revolta acontece sempre que abolir os sinais do passado antecipa a utopia
radiante. A Revolução Haitiana protagonizada por escravizados garantiu a
Independência do Haiti, em 1804. A Revolução Cubana liderada por Fidel Castro e
Che Guevara pôs abaixo a ditadura de Fulgêncio Batista, em 1959, com uma
inflexão anti-imperialista.
Só a
esquerda pode barrar a expansão da apatia e do conservadorismo. O
ecossocialismo é vital no combate à acumulação do capital a qualquer custo
decidida pelo negacionismo do apocalíptico e errático presidente
norte-americano: “Vou assinar a ordem executiva liberando as florestas para que
possamos derrubar as árvores e ganhar muito dinheiro”. O absurdo evoca a foto
dos lenhadores do século XIX, na pose desavergonhada junto a uma sequoia
gigante tombada. A unipolaridade em declínio aprofunda a necropolítica, sem
corrigir ou eliminar a gramática do rentismo financeiro.
O
planeta está em uma acelerada destruição com os eventos climáticos do
antropoceno – o degelo, a elevação do nível dos mares, as enchentes, o
desmatamento, as secas, os incêndios. Cabe à estrela da manhã civilizacional
orientar nossa esperança para a liberdade e a igualdade, numa democracia
socioambiental sustentável. Nunca foi tão urgente uma edição de massas do Fórum
Social Mundial (FSM) para debater e organizar o futuro da humanidade. Sem
anistia aos contumazes golpistas.
• Heteronomia. Por Vinicio Carrilho
Martinez
Quando
vivemos tempos de retrocesso, em que verdadeiras organizações criminosas
assaltam o Estado, os cofres públicos, algumas instituições e
institucionalidades precisam ser retomadas, como se precisássemos readquirir a
legitimidade das ações, a boa fé pública, a garantia de que as ações públicas,
institucionais, não reverberem somente os interesses egoístas, mesquinhos.
Esse é
o sentido mais geral proposto pelo conto “A sereníssima república”, em que
Machado de Assis (1994) diagnostica a multiplicação de regras (sem
legitimidade) e, com elas, os defeitos da coisa pública. Afinal, velhos
jogadores da política, com regras novas, no jogo da “soma-zero”, terminam em
confronto para agir pelas “lacunas da lei”.
Talvez
um exemplo emblemático de um confronto como esse seja o dos ataques golpistas
de 8 de janeiro de 2023, quando grupos (de dentro do próprio Estado e de civis
comuns) que rejeitavam o resultado eleitoral tentaram agir pelas lacunas da
lei, buscando enfraquecer as instituições. A resposta do Estado, buscando a
criminalização e a punição, com base em regras previamente estabelecidas –
Constituição Federal de 1988 e Código Penal –, reafirmou o papel da heteronomia
como fundamento da ordem jurídica e democrática.
Costuma-se
associar heteronomia à autonomia: por oposição. Porém, o que faria mais
sentido, do ponto de vista pragmático, seria a similitude negativa (por
exclusão) entre heteronomia e anomia: sendo a primeira uma imposição de regras
e de normas de forma coercitiva e generalista e, por exclusão, a anomia
implicando na “ausência de regras” ou em sua total ineficácia.
A
heteronomia se associa a um sentido de organização (normas que normalizam
sistemas e funcionamentos), ao passo que a anomia aponta para o desmonte de uma
“ordem projetada”, e assim implica numa desordem do status quo. Pensemos na
pandemia de Covid-19: a fragilidade ou até mesmo ausência de normas sanitárias
defendidas por algumas figuras políticas e até mesmo do campo médico levou a
situações de quase anomia.
A força
da heteronomia é visível em casos em que foram implementadas medidas como o uso
obrigatório de máscaras e o distanciamento social. Nesse período de crise, a
heteronomia organizou a vida coletiva mesmo frente à resistência de grupos que
reivindicavam uma autonomia plena e irresponsável – os chamados
“não-vacinados”, ligados a um amplo segmento que defende a “antivacina”.
Se a
autonomia é associada à liberdade (ou até emancipação), “tomar as rédeas para
si”, controlar as escolhas e os caminhos adotados, a heteronomia não implica
exatamente no seu oposto, uma vez que as escolhas continuam (ou podem
continuar) a existir; apenas, digamos assim, não são escolhas aleatórias, uma
vez que ocorrem dentro de um cenário possível (previsível), mais ou menos
delimitado como horizonte dos fatos. E dessa forma, a autonomia assinala a
liberdade positiva (uma suposta “livre escolha”) e a heteronomia sinaliza para
a “liberdade negativa”: para garantir a liberdade no exercício da cidadania, o
Estado tem que ser limitado em seus poderes.
É
dentro dessa “liberdade comprometida” pela margem de ação, pelos marcos
decididos, pelas regras minimamente ajustadas, que a liberdade se manifesta:
nunca haverá liberdade plena, total, como um ideal absoluto; especialmente
porque “onde todos podem tudo, ninguém pode nada” (e, neste caso, teríamos
anomia). Esse princípio pode ser observado nos debates sobre o PL das fake news
(PL 2630/2020), no Brasil.
O
projeto tem como objetivo regular as plataformas digitais para coibir a
disseminação de desinformação, mas os grupos contrários a tal proposta (aqueles
velhos jogadores da política) afirmam que se trata de ameaça à liberdade de
expressão. O PL sinaliza a necessidade de se criar limites institucionais que
garantam a convivência democrática no espaço público digital.
Não é
que na heteronomia a liberdade seja vigiada ou que não exista autonomia
nenhuma, mas sim que seja definida, delimitada para todas e todos. Há um marco
legal, ético, político, cultural em que certas coisas, ações, decisões, são
possíveis, aceitadas, e outras são recusadas, anuladas, condenadas. Por
exemplo, diante da racionalidade o negacionismo deve ser recusado, atacado em
qualquer tentativa de validação.
Desse
modo, a heteronomia pode ser associada ao Estado – como ente jurídico e
político – ou não, como ocorre no interior de grupos, associações, comunidades,
culturas, etnias que se autorregulam: uma vez que se decida coletivamente
(autogestão), a decisão só tem sentido se for cumprida por todos os indivíduos
(heteronomia). E implica, ainda, dizer que a força impositiva das decisões
(normatização), uma vez que tenha transcorrido o momento das deliberações, deve
ser geral e se fazer presente nas ações de todos os indivíduos envolvidos.
Portanto, na heteronomia há forças que se destacam pela generalidade,
anterioridade e coercitividade.
Também
vemos que a heteronomia pode decorrer da autonomia, aquele momento da liberdade
criadora em que se corrigem, afirmam ou constroem caminhos e decisões – ainda
que, em seguida, devam ser aceitos e realizados por todos os indivíduos. É mais
usual pesar-se que a heteronomia venha listada junto ao aparato estatal, porque
se pensa nas regras e nas normas como atribuições advindas do Estado: o chamado
monopólio legislativo. Ocorre como se a normalização (o que é aceitável)
derivasse unicamente do Estado, sendo este a única fonte geradora validável das
tais normas e regras – chama-se isto de “positivismo jurídico”.
Enfim,
heteronomia tem a ver com o sentido amplo de hétero ou diferente: fora, acima,
distante. A norma e a regra surgem dentre os “mesmos”, a partir da vontade
desses “mesmos indivíduos”, tidos em liberdade e isonomia, porém, trata-se de
um resultado (norma) com uma constituição diversa, uma forma distinta,
diferente das vontades iniciais. Há um processo de subsunção, que se descola da
origem, das parcelas de vontades anunciadas e se converte em uma diretriz
comum, uniforme, diretiva, e que volta a regular inclusive os dados,
indivíduos, vontades originais.
Portanto,
no Brasil, a própria institucionalização da República precisa agir sobre nós
com força de heteronomia, em que não apenas acreditemos no ideal da salus
publica, da saúde preservada da coisa pública, e em que todas as “saúvas” da
corrupção pública sejam fortemente punidas.
Antes
que isso ocorra será difícil associar o Estado brasileiro à instituição por
excelência em que ocorre (transcorre) a centralização e a organização do poder,
em torno dos interesses do nosso povo (dignidade), com a preservação da
integridade do nosso território e a afirmação da soberania (tendo-se a
soberania institucional, mas, igualmente a soberania popular).
Fonte:
Sul 21/A Terra é Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário