quarta-feira, 23 de abril de 2025

Luiz Marques: Grandes substituições

A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, em O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias, aponta a hipertrofia egoica e a intoxicação narcísica em guinadas ideológicas que conduzem a um “novo conformismo da norma”. Qual os atenienses que veneravam o “navio de Teseu”, os timoneiros atuais, de tanto trocar as peças gastas por outras, não conseguem assegurar que se mantêm na mesma embarcação desde o princípio ao fim da jornada, com coerência filosófica.

Na França, o colonialismo recalcado retorna na forma de conflitos nas periferias, com a violência urbana e a dificuldade de integração das comunidades originárias da imigração árabe e africana aos padrões da metrópole. No Brasil, o genocídio da alteridade nas favelas com o morticínio de jovens pretos pelas forças militares evidencia a exclusão estrutural de sobreviventes do perverso martírio nos engenhos nordestinos e charqueadas gaúchas. O escravismo permanece no DNA da brasilidade.

Nos Estados Unidos, direitos civis ativam núcleos da Ku Klux Klan de apoio ao Blue Lives Matter (Vidas Azuis – dos policiais – Importam) para sopesar o Black Lives Matter dos afrodescendentes. A cobrança dos crimes da “cultura branca” e o “sentimento de vítima” dos caucasianos, diante da discriminação positiva (affirmative action), geram a inversão da pecha ao movimento antirracista. A legislação para punir atos degradantes de segregação étnico-racial é tachada de “racismo reverso”.

Enquanto isso, “nacional-identitários” sentem-se substituídos na globalização e veem o liberalismo, o socialismo e o multiculturalismo como responsáveis por sua tragédia mais imaginária do que real. Mas o temor de os “bárbaros” (migrantes, refugiados) tomarem o lugar de pertença dos supostos “arianos” não se reduz à questão da renda. Entrelaça os valores enaltecidos em uma alternativa ao iluminismo. Há mais variáveis entre o céu e a terra do que adivinha a escolástica dos economistas. Hoje a palavra de ordem “No pasarán!” está nas mãos dos construtores de muros, medos e ódios.

•        A guerra da eternidade

Um tal movimento sinaliza um retrocesso – “o abandono das Luzes”. Na Polônia, na Hungria, na Itália, na Península Escandinava, nos Países Baixos, na Alemanha, na Grécia e no Brexit do Reino Unido nostálgico do domínio colonial aumenta o protesto autoritarista e neonazista contra o eixo do mercado europeu; e a favor do isolamento em redomas de xenofobia protegidas pelas armas.

Na Turquia, Recep Tayiip Erdogan sonha com a volta do Império Otomano. Na Rússia, Vladimir Putin recupera a soberba imperial. Na Índia, Narendra Modi lidera a blitz em nome da “hinduidade” contra os intelectuais e os jornalistas na perseguição às minorias muçulmanas e cristãs. Em Israel, Benjamin Netanyahu extermina os palestinos na Faixa de Gaza. A lista inclui ainda a prepotência da  “America First” que exala uma superioridade biológica, patrimonial, cultural, social e existencial com ares passadistas. Há perigo em ambos os lados do Oceano Atlântico. Todo cuidado é pouco.

No Ocidente branco, judaico-cristão e patriarcal-heterossexual a reação torpedeia a diversidade e o feminismo com a pulsão de morte. Antigas referências são resgatadas: Família, Exército, Nação, Igreja, Pátria – com maiúsculas. Os reacionários têm cartas escondidas na manga para cada ocasião. Sua única certeza é que o presente insuportável resulta da catástrofe histórica imputável a inimigos conhecidos. Antes os judeus, agora a solidariedade geral que se reparte e cresce apesar dos ataques.

Os guardiões dos preconceitos ameaçados na modernidade idealizam hierarquias rígidas, de acordo com o etnógrafo Benjamin Teitelbaum, em A guerra da eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Vide o guru Olavo de Carvalho. Impediu a filha de se alfabetizar. “Mulher não precisa estudar”. Até que a tia descobriu que a menina de treze anos não sabia ler e a matriculou numa escola para crianças com seis anos. Tudo que não reflete o medievo é “totalitário”.

•        Futuro da humanidade

As “grandes substituições” propostas pelo neoliberalismo trocam o Estado de direito pelo regime de exceção; a política governamental pelo empreendedorismo; a liberdade de expressão pela infâmia; o jornalismo pelas fake news; a participação popular pela corrupção dos representantes. A verdade torna-se uma tarifa tributária. O conhecimento e a ciência são postos sob vigilância e suspeição.

Já a fúria iconoclasta irrompe em função de maus-tratos impingidos às parcelas estigmatizadas da sociedade, ao longo de períodos de repressão e sofrimento. A revolta acontece sempre que abolir os sinais do passado antecipa a utopia radiante. A Revolução Haitiana protagonizada por escravizados garantiu a Independência do Haiti, em 1804. A Revolução Cubana liderada por Fidel Castro e Che Guevara pôs abaixo a ditadura de Fulgêncio Batista, em 1959, com uma inflexão anti-imperialista.

Só a esquerda pode barrar a expansão da apatia e do conservadorismo. O ecossocialismo é vital no combate à acumulação do capital a qualquer custo decidida pelo negacionismo do apocalíptico e errático presidente norte-americano: “Vou assinar a ordem executiva liberando as florestas para que possamos derrubar as árvores e ganhar muito dinheiro”. O absurdo evoca a foto dos lenhadores do século XIX, na pose desavergonhada junto a uma sequoia gigante tombada. A unipolaridade em declínio aprofunda a necropolítica, sem corrigir ou eliminar a gramática do rentismo financeiro.

O planeta está em uma acelerada destruição com os eventos climáticos do antropoceno – o degelo, a elevação do nível dos mares, as enchentes, o desmatamento, as secas, os incêndios. Cabe à estrela da manhã civilizacional orientar nossa esperança para a liberdade e a igualdade, numa democracia socioambiental sustentável. Nunca foi tão urgente uma edição de massas do Fórum Social Mundial (FSM) para debater e organizar o futuro da humanidade. Sem anistia aos contumazes golpistas.

•        Heteronomia. Por Vinicio Carrilho Martinez

Quando vivemos tempos de retrocesso, em que verdadeiras organizações criminosas assaltam o Estado, os cofres públicos, algumas instituições e institucionalidades precisam ser retomadas, como se precisássemos readquirir a legitimidade das ações, a boa fé pública, a garantia de que as ações públicas, institucionais, não reverberem somente os interesses egoístas, mesquinhos.

Esse é o sentido mais geral proposto pelo conto “A sereníssima república”, em que Machado de Assis (1994) diagnostica a multiplicação de regras (sem legitimidade) e, com elas, os defeitos da coisa pública. Afinal, velhos jogadores da política, com regras novas, no jogo da “soma-zero”, terminam em confronto para agir pelas “lacunas da lei”.

Talvez um exemplo emblemático de um confronto como esse seja o dos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023, quando grupos (de dentro do próprio Estado e de civis comuns) que rejeitavam o resultado eleitoral tentaram agir pelas lacunas da lei, buscando enfraquecer as instituições. A resposta do Estado, buscando a criminalização e a punição, com base em regras previamente estabelecidas – Constituição Federal de 1988 e Código Penal –, reafirmou o papel da heteronomia como fundamento da ordem jurídica e democrática.

Costuma-se associar heteronomia à autonomia: por oposição. Porém, o que faria mais sentido, do ponto de vista pragmático, seria a similitude negativa (por exclusão) entre heteronomia e anomia: sendo a primeira uma imposição de regras e de normas de forma coercitiva e generalista e, por exclusão, a anomia implicando na “ausência de regras” ou em sua total ineficácia.

A heteronomia se associa a um sentido de organização (normas que normalizam sistemas e funcionamentos), ao passo que a anomia aponta para o desmonte de uma “ordem projetada”, e assim implica numa desordem do status quo. Pensemos na pandemia de Covid-19: a fragilidade ou até mesmo ausência de normas sanitárias defendidas por algumas figuras políticas e até mesmo do campo médico levou a situações de quase anomia.

A força da heteronomia é visível em casos em que foram implementadas medidas como o uso obrigatório de máscaras e o distanciamento social. Nesse período de crise, a heteronomia organizou a vida coletiva mesmo frente à resistência de grupos que reivindicavam uma autonomia plena e irresponsável – os chamados “não-vacinados”, ligados a um amplo segmento que defende a “antivacina”.

Se a autonomia é associada à liberdade (ou até emancipação), “tomar as rédeas para si”, controlar as escolhas e os caminhos adotados, a heteronomia não implica exatamente no seu oposto, uma vez que as escolhas continuam (ou podem continuar) a existir; apenas, digamos assim, não são escolhas aleatórias, uma vez que ocorrem dentro de um cenário possível (previsível), mais ou menos delimitado como horizonte dos fatos. E dessa forma, a autonomia assinala a liberdade positiva (uma suposta “livre escolha”) e a heteronomia sinaliza para a “liberdade negativa”: para garantir a liberdade no exercício da cidadania, o Estado tem que ser limitado em seus poderes.

É dentro dessa “liberdade comprometida” pela margem de ação, pelos marcos decididos, pelas regras minimamente ajustadas, que a liberdade se manifesta: nunca haverá liberdade plena, total, como um ideal absoluto; especialmente porque “onde todos podem tudo, ninguém pode nada” (e, neste caso, teríamos anomia). Esse princípio pode ser observado nos debates sobre o PL das fake news (PL 2630/2020), no Brasil.

O projeto tem como objetivo regular as plataformas digitais para coibir a disseminação de desinformação, mas os grupos contrários a tal proposta (aqueles velhos jogadores da política) afirmam que se trata de ameaça à liberdade de expressão. O PL sinaliza a necessidade de se criar limites institucionais que garantam a convivência democrática no espaço público digital.

Não é que na heteronomia a liberdade seja vigiada ou que não exista autonomia nenhuma, mas sim que seja definida, delimitada para todas e todos. Há um marco legal, ético, político, cultural em que certas coisas, ações, decisões, são possíveis, aceitadas, e outras são recusadas, anuladas, condenadas. Por exemplo, diante da racionalidade o negacionismo deve ser recusado, atacado em qualquer tentativa de validação.

Desse modo, a heteronomia pode ser associada ao Estado – como ente jurídico e político – ou não, como ocorre no interior de grupos, associações, comunidades, culturas, etnias que se autorregulam: uma vez que se decida coletivamente (autogestão), a decisão só tem sentido se for cumprida por todos os indivíduos (heteronomia). E implica, ainda, dizer que a força impositiva das decisões (normatização), uma vez que tenha transcorrido o momento das deliberações, deve ser geral e se fazer presente nas ações de todos os indivíduos envolvidos. Portanto, na heteronomia há forças que se destacam pela generalidade, anterioridade e coercitividade.

Também vemos que a heteronomia pode decorrer da autonomia, aquele momento da liberdade criadora em que se corrigem, afirmam ou constroem caminhos e decisões – ainda que, em seguida, devam ser aceitos e realizados por todos os indivíduos. É mais usual pesar-se que a heteronomia venha listada junto ao aparato estatal, porque se pensa nas regras e nas normas como atribuições advindas do Estado: o chamado monopólio legislativo. Ocorre como se a normalização (o que é aceitável) derivasse unicamente do Estado, sendo este a única fonte geradora validável das tais normas e regras – chama-se isto de “positivismo jurídico”.

Enfim, heteronomia tem a ver com o sentido amplo de hétero ou diferente: fora, acima, distante. A norma e a regra surgem dentre os “mesmos”, a partir da vontade desses “mesmos indivíduos”, tidos em liberdade e isonomia, porém, trata-se de um resultado (norma) com uma constituição diversa, uma forma distinta, diferente das vontades iniciais. Há um processo de subsunção, que se descola da origem, das parcelas de vontades anunciadas e se converte em uma diretriz comum, uniforme, diretiva, e que volta a regular inclusive os dados, indivíduos, vontades originais.

Portanto, no Brasil, a própria institucionalização da República precisa agir sobre nós com força de heteronomia, em que não apenas acreditemos no ideal da salus publica, da saúde preservada da coisa pública, e em que todas as “saúvas” da corrupção pública sejam fortemente punidas.

Antes que isso ocorra será difícil associar o Estado brasileiro à instituição por excelência em que ocorre (transcorre) a centralização e a organização do poder, em torno dos interesses do nosso povo (dignidade), com a preservação da integridade do nosso território e a afirmação da soberania (tendo-se a soberania institucional, mas, igualmente a soberania popular).

 

Fonte: Sul 21/A Terra é Redonda

 

Nenhum comentário: