Bruno Farias: O capitalismo é um jogo de soma
zero?
Para responder a essa pergunta, é preciso
primeiro esclarecer o que significa “soma zero”. Matematicamente, dizemos que
uma soma é zero quando um número, somado ao seu oposto, anula-se – por exemplo,
7 + (–7) = 0. Se aplicarmos essa lógica à economia, a ideia seria de que o
enriquecimento de um agente implicaria, necessariamente, o empobrecimento de
outro, de modo que a riqueza total criada continuasse inalterada. No entanto, a
história do capitalismo mostra que a questão não se resume a essa operação
aritmética.
Ao longo dos séculos, o capitalismo
demonstrou sua capacidade de produzir riqueza – a pobreza extrema caiu, a
expectativa de vida aumentou e a qualidade de vida, mesmo que de maneira
desigual, melhorou em diversas partes do mundo. Mas a conquista desse progresso
tem um custo que vai muito além de aspectos meramente econômicos.
O sistema não é, em termos estritamente
matemáticos, um jogo de soma zero, porque a riqueza global gerada pelo
capitalismo, historicamente, cresceu. Contudo, essa prosperidade é distribuída
de forma desigual. Quem detém o poder – sejam países, empresas ou indivíduos –
garante a si mesmo as maiores fatias limitando o quanto os demais podem
avançar, forçando-os a permanecer nas margens dessa divisão imperfeita.
Como mostrou o economista sul-coreano Ha-Joon
Chang no livro Chutando a escada, os países que hoje figuram entre
os mais desenvolvidos utilizaram e utilizam medidas protecionistas e
intervenções estatais para fomentar a própria industrialização – ou, como ele
coloca, “chutaram a escada” que depois se fecharia para os que desejam trilhar
o mesmo caminho.
Essa é a dinâmica histórica do sistema
capitalista, que ao distribuir a riqueza de maneira “não exata”, favorece
aqueles que já acumulam poder e reforça uma estrutura de dominação, onde o
enriquecimento de alguns decorre do crescimento limitado ou empobrecimento de
outros.
A globalização intensifica essa dinâmica. Com
a integração dos mercados internacionais, os fluxos de capitais e mercadorias
cresceram de forma exponencial, mas, ao mesmo tempo, as relações de poder e os
termos de troca favoreceram historicamente os países industrializados. Esses
países, investidos em tecnologia e cadeias produtivas sofisticadas, determinam
as regras do comércio global. Já os países inseridos como exportadores de
commodities enfrentam a volatilidade dos preços e uma dependência, mantendo certos
agentes presos a condições de exploração e vulnerabilidade.
Não apenas isso, é preciso colocar nessa
análise uma crítica do ponto de vista ético e moral. Se, do ponto de vista
estritamente econômico, o capitalismo gera um crescimento absoluto, ao
introduzirmos a dimensão dos custos humanitários, a lógica se transforma.
O acúmulo de capital foi e é construído a
parit de um processo humanitário custoso, como, por exemplo, a escravidão, o
genocídio de comunidades tradicionais e a expropriação de culturas e
territórios. O custo humanitário dessa história – as vidas, as culturas e os
saberes que foram sacrificados – impõe um preço que, quando somado à conta, faz
o sistema capitalista ser um jogo de soma zero, para não dizer de resultado
negativo.
O geógrafo Milton Santos, ao analisar o
impacto da globalização e do capitalismo contemporâneo, observava que “a
globalização é o processo que materializa a concentração de poder e de riqueza,
transformando espaços e subordinando culturas”. Esse olhar crítico nos mostra
que o avanço econômico conquistado por meio do capitalismo não pode ser
separado das consequências éticas e sociais que ele impõe. Ao mesmo tempo em
que promove inovações e melhorias em certos indicadores de desenvolvimento, o
sistema se sustenta sobre uma estrutura que marginaliza os mais vulneráveis e
perpetua uma desigualdade estrutural.
A perspectiva marxista reforça essa crítica.
Para Karl Marx, o capitalismo se apoia na extração da mais-valia – a diferença
entre o valor produzido pelo trabalhador e o que ele recebe –, o que
possibilita a concentração de riqueza nas mãos de poucos. Essa lógica de
exploração garante que o sistema funcione não como um mero gerador de riqueza,
mas também como um mecanismo de dominação e exclusão.
Mesmo que o “bolo” econômico cresça, a fatia
que cada ator recebe pode permanecer estagnada ou, pior, diminuir em termos
relativos, como se o ganho de alguns ocorresse exatamente à custa da perda de
outros – nessa perspectiva de uma análise ampliada do que seria um jogo de soma
zero quando os custos sociais, ambientais e culturais e etc. são devidamente
computados.
Se torna fácil perceber quando refletimos
sobre a inserção dos países no comércio internacional. Economias que dependem
da exportação de produtos primários e commodities sofrem com termos de troca
desfavoráveis e uma vulnerabilidade que não acompanha os avanços tecnológicos e
produtivos dos países centrais. Enquanto os centros de poder acumulam capital e
dirigem as regras do mercado global, os países periféricos permanecem em
situação de dependência e têm sua capacidade de desenvolvimento limitada por uma
estrutura internacional desigual.
Enfim, o capitalismo, sob o olhar
estritamente econômico, não é um jogo de soma zero – ele cria riqueza e
transforma o patrimônio global. Mas se considerarmos também os custos éticos,
sociais e humanitários, bem como os mecanismos de extração da mais-valia que
sustentam a acumulação de capital, percebemos que, na prática, o sistema impõe
um resultado nulo ou negativo.
¨
Mario Vargas Llosa e as
ficções do liberalismo. Por Mariana El Khouri Oliveira & André Kaysel
O falecimento do escritor peruano Mario
Vargas Llosa (1936-2025) no último dia 13 de abril o trouxe novamente à cena em
dois personagens, um literário e outro político. Acompanhando as repercussões
no debate público, fica-se com a impressão de que quando um se apresenta, o
outro está na coxia, como um gêmeo oculto. Aqui nos dedicaremos, justamente, a
unificar os personagens que o laureado com o Nobel de Literatura de 2010, seus
apologetas e mesmo alguns de seus críticos buscaram incessantemente separar.
Os holofotes atingem sua face especialmente
na crítica literária e em seu ríspido ataque a seu compatriota, o escritor
indigenista José María Arguedas (1911-1969), em sua obra La utopia
arcaica: José María Arguedas y las ficciones del indigenismo (1996)
que parafraseamos neste título.
Pouco mais de um quarto de século após a
morte de Arguedas, Vargas Llosa publicou a análise acima citada do conjunto de
sua obra, sublinhando alguns aspectos biográficos e seu comprometimento
político com os povos indígenas da serra peruana que são de grande importância
para seus romances, como Los Ríos Profundos (1958) e Todas
Las Sangres (1965), entre outros.
Categorizando-o como um apêndice do
indigenismo, classificação rejeitada pelo próprio José María Arguedas em
seus ensaios, Vargas Llosa renega o valor estético de sua prosa, que conteriam
“una visión de la literatura en la que lo social prevalecía sobre lo
artístico y en cierto modo lo determinaba”. Para ele, José María Arguedas teria
chegado “hasta el sacrificio de su talento” en búsqueda de una “mímica
revolucionaria”. Podemos apreender, portanto, que Vargas Llosa
via a conexão entre política e literatura não apenas como uma escolha errônea,
mas como uma rejeição da dimensão artística na literatura engajada. Aqui se
repõe uma questão fundamental: é possível que exista a arte sem que sejam
perceptíveis algumas inflexões políticas de quem a produziu?
Nas elegias e homenagens à Vargas Llosa, essa
separação aparece tão clara quanto o era para ele. Por exemplo, em um artigo
publicado no diário espanhol El país, no qual o autor manteve
por quase três décadas uma coluna quinzenal, seis escritores peruanos dividiram
suas opiniões entre o “legado literário” e o “legado político-intelectual”. A
completa cisão se disseminou entre seus leitores e mesmo entre seus críticos,
como se o escritor não guardasse nenhuma semelhança com seu gêmeo oculto, o
político. O que estamos propondo é um ponto de vista que, reconhecendo a
grandeza de seus romances, incorpore também suas escolhas em torno de seus
temas, de suas polêmicas e de seus alinhamentos políticos.
Quando se tratava de tomar posições públicas,
Vargas Llosa nunca foi um autor vacilante. Durante a década de 1960, foi
defensor das experiências socialistas, em especial da Revolução Cubana (1959),
tendo visitado a ilha em 1962, em plena crise dos mísseis. No Peru, deu
apoio às reformas de base da ditadura da Junta Militar, representada pelo
general Juan Velasco Alvarado (1968-1975), como a reforma agrária, a
nacionalização das minas e de outras empresas estratégicas.
Nesse período, o autor publicou suas três
primeiras e principais obras: La ciudad y los perros (1962), La
casa verde (1966) e Conversaciones en la Catedral (1969).
Representante do boom latino-americano, apesar de escrevê-los
desde a Europa, seus romances tinham como palco a sociedade peruana. Vargas
Llosa organiza através da literatura o Peru fragmentado e corrupto,
utilizando-se de narrativas complexas, combinando temporalidades e personagens
distintas para a elaboração de relatos que compõem seus livros.
O encantamento com o regime da ilha começou a
se desfazer, em sintonia com diversos intelectuais latino-americanos, devido à
invasão soviética da Tchecoslováquia em 1968 (mesmo ano em que Vargas Llosa
pisou em solo soviético), e o apoio dado por Fidel Castro à intervenção que
liquidou o experimento democratizante da chamada “primavera de Praga”. Para
arrematar a fratura com a Revolução Cubana, deu-se a prisão do jornalista e
escritor Herberto Padilla pelo regime, em 1971.
Mas, ao contrário de outros signatários dos
manifestos em defesa de Herberto Padilla, como seu colega argentino Julio
Cortázar, os franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ou o estadunidense
Noam Chomsky, o escritor peruano levou sua divergência às últimas
consequências, rompendo com o horizonte socialista e às esquerdas em geral.
Na década de 1980, passou a defender
abertamente as ideias neoliberais de Friedrich von Hayeck, liderou a oposição
de direita ao governo do aprista Alan García (1985-1990) e escreveu o prólogo
ao livro El otro Sendero (1988), de seu compatriota Hernando
de Soto, que responsabilizava o Estado pelos males que afligiam tanto o Peru,
como a América Latina em seu conjunto, preconizando como saída reformas de
livre-mercado que impulsionassem o empreendedorismo popular, contido nos
setores ditos informais: “La opción de los ‘informales’ – la de los pobres –
no es el refuerzo y la magnificación del Estado sino su radical
disminuición. No es el colectivismo planificado y regimentado sino devolver al individuo,
a la iniciativa y a la empresa privadas, la responsabilidad de dirigir la
batalla contra el atraso y la pobreza”. Assim, a ruptura com o socialismo levou ao
extremo oposto: as ficções do liberalismo, de uma “ordem social espontânea”,
baseada na livre-iniciativa individual.
Desse modo, o que criticou em José María
Arguedas estava também presente em si mesmo. Ao criticar a “utopia arcaica” de
José María Arguedas, que buscava vincular a identidade nacional peruana às
populações andinas e sua cosmovisão, Vargas Llosa apresenta a sua própria
utopia: a utopia da modernidade capitalista. O foco dado às narrativas que
negam a mágica contida na experiência andina, que negam a coletividade e
qualquer possibilidade de persistência desse ponto de vista no mundo moderno,
calcado em uma racionalidade individualista, apontam para sua concepção sobre
seu país, o continente e o mundo. Isso não significa, ao contrário do que o
próprio Vargas Llosa pontificou em sua análise sobre José María Arguedas, uma
rejeição estética e artística de sua literatura, mas adiciona um conteúdo
político às suas obras.
Retornando ao problema do indigenismo, na
matéria acima citada de El país, o escritor Juan Manuel Robles, em
uma apreciação em geral bastante positiva, conclui afirmando que Vargas Llosa
foi incapaz de compreender as populações indígenas dos Andes e de simpatizar
com suas manifestações. Isso já se evidenciava em seu relatório, produzido por
encomenda do governo peruano sobre os assassinatos de jornalistas na comunidade
de Uchuraccay (1983), em meio ao conflito interno armado entre o Estado peruano
e o grupo maoísta extremista Sendero Luminoso, em que responsabilizou os comuneros “pouco
lúcidos” pelas mortes.
A linguagem de cunho colonial utilizada por
Vargas Llosa em seu figurino político-intelectual para a caracterização destes
camponeses – que, vale salientar, não aparecem em seus romances –, refletem
ainda outro aspecto: a valorização do legado colonial ibérico, associado ao
pertencimento a um “Ocidente atlântico”, resgatando a velha chave “civilização”
versus “barbárie” do liberalismo latino-americano do século XIX. Desse modo,
não é de se estranhar que o escritor peruano, que desde 1993 também era cidadão
espanhol, tenha aceito de bom grado em 2011 o título de Marquês por parte do
então monarca, Juan Carlos I de Bourbon y Bourbon.
Cerca de quarenta anos mais tarde, o escritor
recebeu em 2023 a condecoração da Ordem do Sol no grau de Grande Colar da
Presidenta interina do Peru, Dina Boluarte, cuja ascensão em 2022, na esteira
da destituição de Pedro Castillo, havia levado à morte de cerca de 50 pessoas,
especialmente na região andina de Puno, que protestavam contra o novo governo.
Por que o autor de La guerra del fin del mundo (1981), foi
capaz de empatizar com sertanejos brasileiros do final do século XIX, mas
avaliza o massacre de seus concidadãos indígenas no século XXI?
Possivelmente a resposta resida no fato de
que, nas ficções liberais por ele abraçadas, não existam falas para essas
personagens, salvo talvez sob a fantasia de “empreendedores” nos bairros
populares de Lima, na realidade um precariado que procura arrancar a
sobrevivência no dia-a-dia de uma metrópole caótica.
Enfim, no último ato, as personagens de
Vargas Llosa aparecem reunificadas, demonstrando a inexistência de um gêmeo
oculto nas coxias. Emancipado do figurino, o ator é o mesmo. Perceber a carga
política de seus romances não significa reduzi-los a este aspecto ou subtrair
sua importância, mas complexificá-los.
Fonte: A Terra é Redonda

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