Tudo
menos Marine Le Pen no Élysée
Aquele
domingo, 9 de junho de 2024, amanheceu bonito na França. Fazia primavera como
estação. O clima era ameno. As cidades iam movimentadas. Das metrópoles aos
vilarejos, praças, parques e ruas estavam preenchidos bem além do habitual.
Muito – sim – pelo tempo bom. Mas parte – claro – por ocasião das eleições
europeias.
Aquele
domingo era o último dia para a escolha dos representantes franceses para o
Parlamento europeu em Bruxelas. Uma indiferença costumeira povoava o assunto.
Ninguém nutria paixões pelo tema. Mesmo assim, um e outro francês foram
depositar seus votos em urnas. Que seriam reveladas às 20 horas. O que ocorreu.
Trazendo surpresas. Em verdade, sismos tectônicos. Que modificariam
completamente a ambiência política do país.
O
previsível aconteceu. Mas era indesejável. E ninguém queria acreditar. O Rassemblement
National (RN) – partido de Marine Le Pen – conquistara maioria
imperativa do escrutínio. E não de pouco. 31,5% dos votos. Fazendo, assim, duas
vezes mais que o partido Renaissance – antigo En
Marche – do presidente da República que conseguiu apenas 15,2%. Mais
que o dobro do Partido Socialista (PS) – dos herdeiros de Jean Jaurès
(1859-1914), Léon Blum (1872-1950) e François Mitterrand (1916-1996) – que
ficou com 14%. Quase quatro vezes a mais que La France Insoumise (LFI)
de Jean-Luc Mélenchon que alcançou 8,7%. Perto de cinco vezes o escore de Les
Républicains (LR) do presidente Nicolas Sarkozy que ficou nos 7,2%. E
seis vezes mais que o partido Reconquête de Éric Zemmour que
não ultrapassou os 5,5%.
Uma
tempestade. Seguida de vendaval. Previsível e indesejável. Que, em instantâneo,
causou um choque monumental na opinião pública francesa, europeia e mundial.
Com desdobramentos imediatos sobre toda a classe política francesa. Que – cada
filiação à sua maneira – passou a imaginar o próximo passo de suas carreiras e
a próxima cena daquela sequência: Marine Le Pen, presidente da França.
Uma
sequência, desde muito, anunciada. Mas, quase sempre, ignorada ou
desconjuntada.
Marine
Le Pen havia figurado no segundo turno das presidenciais francesas de 2017 e
2022, sendo derrotada por Emmanuel Macron. Mas, adiante, desde as primeiras
sondagens para as presidenciais de 2027, ela se firmou como favorita sem
partilha. O que o resultado das eleições europeias só fez intensificar.
Tornando tudo ainda mais palpável. Concreto. Quase verdade. Provocando sons e
fúria em todas as partes.
Ciente
do resultado das eleições europeias, o presidente da República convocou as
principais forças políticas estabelecidas – incluindo o primeiro-ministro e a
presidente da Assembleia Nacional – para uma reunião de urgência no Élysée.
Uma reunião de análise da situação. Mas nada além de um encontro de
circunstância. Algo complacente. Simplesmente reconhecer-se a derrota e – no
máximo – aliviar feridas.
Mas,
não. O presidente decidiu reagir. E reagir só. Lançando mão dos poderes
auferidos a ele – e somente a ele – pelo artigo 12 da Constituição francesa,
avançou a decisão de dissolver a Assembleia Nacional da França.
Uma
decisão imponente. Como imponente havia sido a derrota de seu grupo político
ao Rassemblement National nas eleições europeias. Choque e
contrachoque.
Subitamente
a notícia baralhou os espíritos, confrontou humores e confundiu os sinais do
jogo político francês. O alvo era Marine Le Pen. O propósito, afastá-la
do Élysée. Tudo menos Marine Le Pen no Élysée. Eis o
espírito da decisão.
O
presidente Emmanuel Macron – por decência e decoro – não poderia explicitar
essa motivação. Conseguintemente, apresentou a enigmática expressão
“clarificação”. Em seu entender, era necessária uma “clarificação” da realidade
política francesa. Induzindo os franceses a meditar se era aquilo mesmo que
desejavam: manter o Rassemblement National e Marine Le Pen em
marcha acelerada rumo ao Élysée ou inviabilizá-los
terminantemente. Eis o dilema envolto na dissolução.
Dissolveu-se,
assim, a Assembleia Nacional. Tornou-se o primeiro-ministro e todos os
ministros do governo demissionários. Convocou-se os franceses novamente às
urnas. Mas, agora, para decidir o destino da política interna francesa. Em dois
turnos. Sendo o primeiro, dali a três semanas.
Aquele
domingo, 9 de junho de 2024, foi, então, assim. Amanheceu bonito e ameno e
terminou horrível e intranquilo. Levando a sociedade francesa ao martírio e
lançando a integralidade das instituições da República ao desconhecido. Fazendo
o general De Gaulle (1890-1970) novamente revirar-se em tumbas. Pois, ao fundar
a Quinta República Francesa, o general trazia na retina e na memória os
desatinos da Terceira República (1870-1940) que concorreram para a debacle de
1940 e as incongruências da Quarta República (1946-1958) que conduziram o país
à beira da anomia.
Era
evidente que uma e outra surgiram de traumas. A primeira, dos despojos da
ascensão e queda do momentum Napoleão III. A segunda, da
necessidade de superação da tragédia da ocupação e do regime de Vichy. E, por
isso, moldou um conjunto de instituições sob certa ideia da França, da
presidência e do presidente da República. Fazendo, constitucionalmente, do
presidente um soberano absoluto e indiviso. Verdadeiro monarca. Distante,
onisciente e onipotente. Detentor de poderes exclusivos e indiscutíveis. Para jamais
disputar poder com os demais poderes, legislativo e judiciário. Portando,
assim, a prerrogativa de dissolver a Assembleia Nacional.
Desde
1958, dissolver a Assembleia Nacional sempre foi recurso para superação de
crise política. Notadamente quando o presidente perdia maioria parlamentar. O
que claramente perfazia a presidência Emmanuel Macron. Mas não a partir de
2024. Senão que desde a sua reeleição em 2022.
O grupo
de Emmanuel Macron conseguiu 245 cadeiras do Parlamento da França em 2022.
Ficando com maioria numérica. Mas sem maioria absoluta. Impondo complexas
arbitragens para aprovar projetos estruturais como a reforma previdenciária e a
reforma da imigração. Que, no caso da primeira, a primeiro-ministro Elisabeth
Borne fez passar à força – sem a deliberação dos parlamentares – através do
artigo 49,3 da Constituição; e, no caso da segunda, promoveu-se aproximação com
o Rassemblement National de Marine Le Pen.
Nessa
conjuntura, as margens de ação da presidência Emmanuel Macron eram diminutas
desde 2022. Entretanto, com o resultado das eleições europeias no 9 de junho de
2024, poderiam se tornar quase nulas. Vez que – malgrado tratar-se de novos
parlamentares franceses em Bruxelas – o Rassemblement National e
Marine Le Pen tendiam a, claramente, capitalizar a vitória e impor pressão
interna ante a presidência de Emmanuel Macron. Levando-a a desgaste e, quem
sabe, até à renúncia.
Uma
conjuntura com notas de desespero. Ao qual o presidente agiu rápido.
Dissolvendo a Assembleia Nacional. Intentando ganhar respiro. Mesmo que por
tempo indefinido. Curto ou longo. Enviando o peso do momento à classe política.
Que precisou se movimentar.
O Rassemblement
National de Marine Le Pen interrompeu seus festejos para cadastrar
candidaturas para as novas eleições nacionais. O LFI de Jean-Luc Mélenchon
propôs uma aliança entre as esquerdas – especialmente com o PS – para barrar a
ascensão do Rassemblement National, criando-se, assim, o Nouveau
Front Populaire (NFP), em alusão ao Front Populaire de
1936. Da parte da maioria presidencial, seguiu-se com Ensemble. Do
lado das sensibilidades mais liberais, o presidente do LR, Éric Ciotti,
promoveu uma aliança – amplamente contestada pelos seus correligionários – com
o Rassemblement National.
Um
momento de euforia. Três semanas de suspensão, êxtase e apreensão. Que
avançariam para a revelação do primeiro turno. Que só faria confirmar o
favoritismo do Rassemblement National, que conquistou 34% do
escrutínio frente a 28,1% do NFP e 20,3% do Ensemble.
Nova
hecatombe política. O Rassemblement National ainda chegava
mais perto do Élysée. Fazendo de Jordan Bardella, presidente do
partido, um potencial primeiro-ministro em coabitação com a presidência de
Emmanuel Macron. Ou, pior, firma-se um cenário ideal para se forçar a
renúncia do presidente da República.
Algum
pânico tomou conta dos espíritos. A opinião pública submergia em impressões
confusas para escamotear o fato de que o Rassemblement National e
Marine Le Pen eram mais que frequentáveis e possuíam preferência popular
concreta para ascender aos mais relevantes postos políticos do país. Agora,
após as legislativas, a Matignon. Três anos depois, em 2027,
ao Élysée.
Essa
imagem – no fundo, uma comprovação – conduziu o establishment a
proteger-se. Reabilitando o espírito de 2002 para construir-se uma aliança
nacional para conter o Rassemblement National.
Fez-se,
assim, o Front Républicain. Uma reunião de todos – ou quase todos –
os partidos contra o Rassemblement National. Como resultado, três
semanas depois, como produto do segundo turno das eleições legislativas, o
propósito foi realizado. O Rassemblement National não
conseguiu maioria absoluta. Mas, por outro lado, nenhuma agremiação conseguiu.
E, pior que tudo, a Assembleia Nacional ficou ainda mais fragmentada.
Com a
NFP aquinhoando 182 assentos, Ensemble com 168 e o RN com 143.
Impossibilitando qualquer força política de constituir o governo. Ou seja,
inviabilizando a indicação tranquila de um primeiro-ministro. Lançando o país
novamente ao desconhecido. Vez que o regime político perdia ali a sua razão de
existir.
Mesmo
assim, na edição do dia seguinte ao resultado, O jornal Libération traduziu
o sentimento de muitos com a expressão “C’est ouf” – que alívio, por
pouco. O Rassemblement National não teria feito maioria
parlamentar na França. Mas, observando-se com mais calma, o Rassemblement
National foi o único vencedor do pleito. Saindo de 89 cadeiras em 2022
para 125 agora.
De toda
sorte, no quesito parlamentar, nem Macron nem Marine.
Mas a
agonia política ainda subsistia. Caberia ao presidente a indicação de um novo
primeiro-ministro, ciente da ausência de maioria parlamentar. Sem saber o que
fazer, o presidente decidiu pela “pausa política” durante o mês, junho-julho,
que a França sediaria os Jogos Olímpicos.
Findos
os Jogos e finda a pausa – estando o país há mais de dois meses com um governo
demissionário; para não dizer, sem governo nenhum –, o presidente Macron
chegou, enfim, a um nome: Michel Barnier.
Michel
Barnier era aquele mesmo diplomata francês que conduziu as negociações pela
efetivação da saída do Reino Unido da União Europeia. Reputado, porquanto,
exímio negociador. Mas não duraria três meses como primeiro-ministro. Tendo
sido nomeado em setembro e derrubado – por força de uma moção de censura – em
dezembro. O que levou o presidente Macron a nomear François Bayrou, atual
primeiro-ministro francês.
Elisabeth
Borne, Gabriel Attal, Michel Barnier e François Bayrou. Quatro
primeiro-ministros franceses em dois anos e meio de presidência. Uma franca
fragilidade intensa, numa primeira leitura. Mas um inquestionável sucesso
político de Emmanuel Macron quando percebido mais ao longe. Pois, mais ao
longe, o conjunto das movimentações de Macron possuem um único target:
conter a ascensão do Rassemblement National e de Marine Le
Pen.
Foi
assim nas eleições presidenciais de 2017 e 2022 e assim naquele gesto extremado
da dissolução de junho de 2024. O movimento Macron – mais que quaisquer de seus
antecessores – estabeleceu a contenção do Rassemblement National e
de Marine Le Pen como imperativo existencial: tudo menos Marine Le Pen no Élysée.
Seria
simplesmente curioso se não fosse também trágico notar o verdadeiro tabu que o
assunto Rassemblement National ainda institui na classe
política e na opinião pública francesa.
O Rassemblement
National advém do Front National (FN), criado e
promovido por Jean-Marie Le Pen a partir de 1972. O FN sempre trilhou caminhos
de divergência. Jamais admitindo o politicamente correto ambiente. E sempre
repisando traumas nacionais latentes como a debacle de 1940, a ocupação nazista
e a dominação da Argélia.
Sob a
presidência de François Mitterrand (1981-1995), esses traumas ganharam a
roupagem de imigração, segurança pública e segurança nacional e conduziram
Jean-Marie Le Pen ao centro do debate político francês. Com o propósito de
promovê-lo e/ou implodi-lo. Datando desse período a sua avaliação controversa
sobre o extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Sob a
presidência Jacques Chirac (1995-2007), a ascensão do FN e de Jean-Marie Le Pen
foi ainda mais fulgurante. Levando-os ao segundo turno das eleições
presidenciais de 2002.
Entretanto,
sob a presidência Nicolas Sarkozy (2007-2012) virou imperativo entre os Le Pen
a necessidade de renovação do partido. Jean-Marie Le Pen parecia démodé.
Assim como o FN. O que abriu vazão para troca de guarda. Levando Marine Le Pen,
filha de Jean-Marie Le Pen, à presidência do partido e a transição de FN para
RN – de Front para Rassemblement.
Esses
dois movimentos conduziram a uma intensa profissionalização do partido –
leia-se: adequação a critérios de viabilização eleitoral – que passaria a ter
resultados quase imediatos. Fazendo do Rassemblement National e
de Marine Le Pen entidades incontornáveis da paisagem política francesa depois
da crise financeira mundial de 2008 e da crise do euro de 2009.
Essa
viabilização progressiva conduziu Marine Le Pen ao segundo turno das
presidenciais de 2017 e 2022 além de ampliar decididamente a quantidade de
eleitos Rassemblement National em todas as circunscrições
francesas. Para ficar apenas nos representantes parlamentares, o Rassemblement
National saiu de dois em 2012 para nove em 2017, chegando a 89 em 2022
e 125 em 2024. Conquistando o que nenhum partido francês conquistou.
De modo
que, sim: produziu-se um “risco Le Pen”. Um risco que Emmanuel Macron quer
superar. A qualquer custo.
A
dissolução de 2024 foi o custo mais alto investido por Emmanuel Macron. Esse
gesto extremado fragilizou o regime político e as instituições da Quinta
República França. Sem contar que também expor à luz do dia as incongruências de
todos os partidos e de suas lideranças.
Um
macabro torvelinho que, ao fim das contas, estraçalhou pactos de convivência e
sobrevivência entre vários setores da sociedade. O que permitiria a emergência
de situações impensáveis como a prisão de um presidente da República. No caso,
de Nicolas Sarkozy. Que iniciou o ano de 2025 em prisão domiciliar adicionada
do uso de uma tornozeleira eletrônica.
Quem
poderia imaginar o general Charles De Gaulle na prisão?
A
gravidade da prisão de um presidente da República sob a Quinta República
Francesa indica que o regime não funciona mais. Que os pactos existenciais
cosidos pelas guerras totais, pela superação de Vichy e pela descolonização
parecem não existir mais.
Depois
de Nicolas Sarkozy, Marine Le Pen. Que foi controversamente condenada no 31 de
março de 2025 com o nítido propósito ter inviabilizada a sua participação nas
presidenciais de 2027.
Nada
disso parece salutar a um país como a França. Mas a missão parece estar
cumprida: tudo menos Marine Le Pen no Élysée.
Fonte:
Por Daniel Afonso da Silva, em A Terra é Redonda

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