Dowbor:
Pra nos tirar da solidão
Trabalhei
anos em países africanos com ambiente social rico: bairros com crianças, avós,
tios e tias, muito barulho e correria, zero privacidade, mas também muitas
risadas. Era vida pulsando. E as ruas eram um lugar para socializar. Na minha
infância em São Paulo, lembro que minha mãe ficava rouca de tanto gritar para
nos chamar do meio da rua na hora do almoço. O mundo nos permitia explorar, e
aprender a identificar o que valia a pena correr atrás — e do quê era melhor
fugir.
Jonathan
Haidt menciona, em The Anxious Generation: How the Great Rewiring of Childhood
Is Causing an Epidemic of Mental Illness, a fragilidade social de crianças
superprotegidas, refugiando-se em seus smartphones, com pouca experiência de
liberdade para explorar o mundo ou de interação social espontânea. Mas isso não
é um problema apenas para as crianças. A vida social foi empobrecida — e
profundamente transformada — para todos.
Nos
estádios de futebol, vemos milhares de pessoas gritando e cantando,
empurrando-se numa explosão de convivência, a felicidade de xingar a mãe do
juiz. Na TV, onde as crianças assistem ao jogo e ouvem, ao fundo, a torcida
cantando refrões agressivos ou obscenos, o comentarista os “traduz”, para
preservar as inocências. Bem,a explosão no estádio é libertadora, mas dura só
algumas horas a cada semana. Quando criança, eu não assistia a jogos – nós os
jogávamos. E xingávamos de forma saudável. Será só nostalgia do passado? Há, de
fato, uma perda de convívio, e a convivência virtual não é a mesma coisa. Uma
grande transformação está na estrutura familiar. Ela varia conforme o país ou a
comunidade, mas, no geral, esse pilar da organização social mudou.
Tomo o
exemplo norte-americano, expresso na figura abaixo: entre 1960 e 2023, o que
antes era o paradigma do American way of life — um casal com filhos (se
possível, com TV, carro, quintal e churrasqueira) — passou de 44,2% dos lares
para apenas 17,9%. Os políticos ainda insistem em tratar a família como
“alicerce sagrado da sociedade”, e os pastores fazem o mesmo, mas seria bom
eles olharem os dados com mais atenção. Na realidade, as pessoas que vivem
sozinhas, que representavam 13,1% dos lares em 1960, agora somam 29%. É uma
fratura profunda na estrutura social. Se adicionarmos casais sem filhos,
chegamos a 58,4% dos lares estadunidenses compostos por adultos casados ou
solteiros sem crianças, como destacado no gráfico. Há ainda parceiros não
casados e pais/mães solo. O ponto crucial não é apenas a perda das ruas como
espaço de convivência, a obsessão com smartphones, mas também o isolamento do
lar.
• Entra gráfico
A
erosão da família tradicional impacta claramente a nova geração: crianças
solitárias com pais trabalhando, sem espaço para vagar livremente ou para
escolhas individuais e eternamente instruídas sobre o que fazer e como agir.
Seja na escola, nas aulas extras especializadas ou com os primeiros terapeutas
infantis, o horário das crianças está cada vez mais ocupado. No pouco tempo
livre que resta, elas ficam coladas ao smartphone, em busca de tantos likes
quanto possível — e ansiosas com críticas ou rejeições. E têm acesso a toda a
pornografia que desejarem: o smartphone não é um bairro físico, com limites
reais. Haidt explora em profundidade como isso criou a “Geração Ansiosa”. Para
muitas crianças, já não há mais aquele tempo no colo do avô, fazendo perguntas
curiosas sobre o passado.
Max
Fisher mostra, em A Máquina do Caos, como não há liberdade de navegação na
internet – só algoritmos vorazes por atenção. Ao zapear canais de TV, quase
todos me bombardeiam com o mesmo conteúdo: sexo, drogas, violência. É o que
chama atenção – e o que Hollywood nos empurra goela abaixo. É a indústria da
atenção, cujos custos estão embutidos nos preços que pagamos ao fazer compras.
Ao
mesmo tempo, rompeu-se o elo colaborativo entre gerações. Nas famílias
tradicionais, por milhares de anos, ter filhos significava que, quando os pais
envelhecessem e não pudessem mais trabalhar, os filhos adultos cuidariam deles.
Assim, garantia-se um equilíbrio entre a idade adulta produtiva e os
dependentes (crianças e idosos) em uma cadeia de solidariedade intergeracional.
Mas o que acontece quando a maioria dos adultos não tem filhos, como vimos
acima?
Nos
países nórdicos, políticas públicas garantem lares para idosos dignos e saúde
gratuita para a população envelhecida. O que antes era responsabilidade das
famílias, agora é assegurado em escala coletiva. Nos apartamentos exíguos da
família nuclear, não ha espaço para os avós, mas ao menos há apoio público. Já
em países como EUA, e sobretudo no Brasil, os idosos enfrentam apoio familiar
declinante e políticas sociais precárias. Os asilos privados? Caríssimos e mal
administrados – quando não criminosamente negligenciados. Sistemas que só visam
lucro máximo não são opção de gestão adequada – pra dizer o mínimo. E a
ansiedade acerca de nosso futuro quando idosos já é sentida quanto estamos na
meia idade. Precisamos passar por isso?
Há
outras tendências que aceleram a erosão dos laços sociais. O espaço de trabalho
já foi um território essencial de convivência. Todos já vimos os tradicionais
arrozais na Ásia, com fileiras de mulheres cantando enquanto cuidavam juntas
das mudas. No ambiente industrial, grandes grupos de operários compartilhavam
desafios comuns, organizavam-se em sindicatos, sentiam-se unidos por lutas
similares e mantinham intenso contato humano. No cenário atual, dominado por
tecnologia e algoritmos, o espírito de solidariedade da classe trabalhadora
perdeu força — prevalece o cada um por si. É claro que ainda há exceções em
certos ambientes, mas no geral a sensação de colaborar por algo útil, de
construir um futuro não só para si, mas como parte de um projeto coletivo,
enfraqueceu-se. A fragmentação social no trabalho, especialmente com tarefas
isoladas em computadores, aprofunda-se. E há ainda o cenário tóxico de
competição em muitas corporações que adotaram o sistema Jack Welch — onde
colegas são pressionados a se sabotar por sobrevivência.
Com a
crescente sensação de solidão e isolamento — seja nos lares, nas cidades ou nos
ambientes de trabalho —, muitas pessoas buscam refúgio nas inúmeras igrejas
locais. Ali, ao contrário da concentração espiritual silenciosa típica dos
grandes templos católicos, elas podem dançar, gritar, cantar e ouvir sermões
sobre como conduzir suas vidas — inclusive com promessas de que “enriquecerão,
se Deus assim quiser”, desde que contribuam financeiramente para sustentar
pastores. Mais do que uma questão de fé, trata-se de calor humano. Esses
espaços oferecem a ilusão de pertencimento a um grupo social e a sensação de
que a vida, afinal, tem algum significado. Mas está longe de ser uma
solidariedade comunitária, voltada para construir um futuro coletivo; é um curativo
temporário. Esse modelo navega tão bem no estresse generalizado da era moderna
que hoje já temos pastores bilionários…
Um
fator importante é que a organização urbana está muito mais centrada na fluidez
do trânsito do que na criação de espaços de convívio. Já uma cidade como
Toronto oferece muitos espaços públicos arborizados, com jogos de bocha para
idosos e piscinas escolares abertas à comunidade. Em cidades italianas, vi
pegadas pintadas nas calçadas e áreas protegidas para crianças caminharem com
segurança, transmitindo a sensação de que a cidade também é delas — que estão
em casa até nos espaços públicos. Em Lausanne, a prefeitura treinou estudantes
para cuidar de idosos em seus bairros, com um pequeno salário e em seu tempo
livre, em vez de depender de mais asilos. Isso fortalece a solidariedade local
e cria amizades.
No
Brasil, criamos uma rede de Pontos de Cultura – com incentivo público para
jovens desenvolverem arte. Milhares surgiram, e a interação online estimulou a
criatividade local em vez de depender das redes sociais globais passivas. Num
experimento no bairro paulistano da Casa Verde (86 mil habitantes), criamos uma
rede colaborativa local que fomenta interações entre a comunidade, pequenos
negócios e atividades culturais. Os exemplos são muitos: as pessoas estão
descobrindo que, em vez de brigar por “likes” nas redes globais, é possível
construir redes locais que fortalecem o convívio. Organizações comunitárias têm
um campo vasto para florescer.
Neste
ambiente fragmentado, as realidades são extremamente diversas. De um lado,
condomínios fechados – ilhas de luxo isoladas, com regras rígidas e um absurdo
sentimento de pertencer a uma elite. Do outro, os bairros pobres, onde a
desigualdade tornou-se causa fundamental de divisão econômica e cultural,
gerando tensões e violência. Estudos sobre Rio de Janeiro e São Paulo, como os
de Bruno Paes Manso em “A Fé e o Fuzil”, revelam como a ausência de um convívio
social saudável criou um ambiente social destrutivo. Nesse cenário, milícias
ilegais, polícia, facções do tráfico, igrejas neopentecostais e política
populista se misturam, formando um tecido social opressor.
Não se
trata de saber se as tendências são boas ou ruins, mas de compreender a
profundidade da mudança estrutural e aproveitar novas oportunidades. Todos
estamos conectados na internet, e essa nova conectividade abre múltiplas
possibilidades de colaboração criativa. Para as mulheres, em particular, as
oportunidades cresceram muito além da maternidade, e a mudança na estrutura
familiar vista acima está certamente ligada à tecnologia contraceptiva, mas
também a uma mudança geral na estrutura social. A sociabilidade pode ser
reconstruída de novas maneiras, por meio de políticas urbanas, redução da
jornada de trabalho e expansão de atividades culturais, entre outros. Isso
também significa reorientar a lógica geral de nossas economias – da busca
insana de rentas, visando atingir o topo da pirâmide econômica para iniciativas
colaborativas centradas em lares, comunidades, uso inteligente da conectividade
online, além de uma vida cultural mais rica. Não se trata de crescimento do
PIB, mas de qualidade de vida e bem-estar social.
Com o
que produzimos hoje e as tecnologias que temos, não se trata de falta de
recursos, mas de reorganização social e política. Repetir que the business of
business is business, abstrair os interesses econômicos das consequências
sociais e ambientais, ou a recusa machista ao Estado de bem-estar social, visto
como um “Estado babá” tudo isso é pura estupidez.
Ampliar
o prazer de viver para todos – é disso que se trata.
Fonte:
Por Ladislau Dowbor, no Meer | Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras
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