Catolicismo
cordial: Nem mesmo nossos ateus escapam do catolicismo cultural
O
Brasil é um verdadeiro laboratório de contradições religiosas: uma estranha
terra de crucifixos em repartições públicas e terreiros nos quintais; um país
repleto de teólogos da libertação, congressistas neopentecostais e pais de
santo rasputinescos.[1] Por trás de todo o aparente caos,
porém, é plenamente possível vislumbrar uma ordem sutil e engenhosa na vida
espiritual brasileira.
Com o
perdão do clichê, uma boa maneira de entender esse fenômeno é apelar à velha
noção holandiana de cordialidade. Em Raízes do Brasil (1936),
Sérgio Buarque de Holanda define o homem cordial, tipo endemicamente
brasileiro, como aquele que privilegia a materialidade das relações pessoais
sobre a abstração fria e impessoal das instituições. Segundo o autor, essa
lógica manifesta-se inclusive no campo da religiosidade.
Eis que
entre nós, diz Sérgio Buarque de Holanda, a fé católica não se baseia em credos
rígidos, mas em promessas, festas juninas e pactos afetivos com santos, sejam
eles canonizados formalmente pela Igreja ou apenas pela devoção empírica do
povo. Aqui, a missa dominical não diz respeito a doutrinas, mas a uma forma de
sociabilidade ritualizada.[2]
Em
números tanto percentuais quanto absolutos, o Brasil é um país de população
católica expressiva. Conforme já exposto, no entanto, nosso catolicismo se
manifesta em geral não sob a forma de uma doutrina religiosa inflexível, e sim
como uma matriz espiritual-sociocultural bastante difusa, mas nem por isso
supérflua: trata-se, pois, de uma gramática da fé segundo a qual outras
religiões flexionam-se, por variadas razões (algumas, diga-se de passagem, mais
violentas que outras).
O
exemplo mais célebre é o sincretismo afrodiaspórico, pois todos sabem que, no
Brasil, os orixás costumam vestir-se de santos. Para burlar a vigilância
religiosa colonial, no sigilo das senzalas de antanho foi forjada uma teologia
de sobreposição, em que cada orixá era associado a um santo correspondente
(Oxóssi/São Sebastião, Iemanjá/Nossa Senhora da Conceição).
Hoje,
para melhor atingir o público das classes médias urbanas, até o zen-budismo
trazido ao Brasil pelos japoneses comunica-se em termos tais como “missas” e
“abades”,[3] porque o idioma religioso hegemônico é o do
catolicismo. Até mesmo aqueles que se declaram “sem religião” com frequência
reproduzem sensibilidades marcadamente católicas.
Em um
país como o nosso, que já foi um Estado confessional e onde a única educação
formal disponível, por muito tempo, foi aquela fornecida pelos jesuítas, a
existência de tantos católicos culturais não é surpreendente, bem como não o é
a existência de indivíduos culturalmente muçulmanos na Turquia ou culturalmente
protestantes em partes dos Estados Unidos, ou até mesmo a insistente influência
dos valores confucianos na China, a despeito dos esforços da Revolução Cultural
em sentido contrário.
Assim,
o “catolicismo cordial” consiste em uma matriz flexível, avessa a ortodoxias,
na qual o sincretismo emerge como um pacto de conveniência mútua entre
paradigmas diversos. Uma fé sem dogma, uma religião sem culpa, que não exige
conversão total, mas se contenta muitas vezes com adesões pró-forma. Não se
trata, entretanto, de um fenômeno exclusivo a nós.
Max
Stirner, por exemplo, que viveu em um contexto muito diferente daquele de
Sérgio Buarque, observou que, em comparação com o protestantismo então
dominante na Prússia, o catolicismo apresenta a vantagem de situar a autoridade
espiritual nas instituições eclesiásticas, não na consciência individual.[4] O
corolário da noção protestante de uma “relação pessoal com Deus” é a
imanentização da culpa pelo pecado, internalizada e perpétua. Os católicos, por
outro lado, mediante o sacramento da confissão, conseguem ter seus pecados
absolvidos sem grandes traumas existenciais.
Por
isso, a chamada Catholic guilt (“culpa católica”) existe quase
que apenas na mente de um público secular anglo-americano de sensibilidades
culturais protestantes, que provavelmente teve mais contato com um austero
catolicismo à irlandesa. Criaram a imagem fantástica de uma religião de
masoquistas neuróticos, quando de fato, como observou Max Stirner, os católicos
deixam o confessionário livres, leves e soltos.
Também
não é apenas no Brasil que o catolicismo se mostra tão sincretizante: no
México, a “conquista espiritual” empreendida pelos castelhanos deu-se às
avessas, ou, no mínimo, em via de mão dupla. O culto aos velhos deuses
sobrevive hoje não em altares neopagãos dedicados a Tláloc ou Quetzalcoatl nos
apartamentos da descolada juventude urbana da Cidade do México ou de Los
Angeles. Pelo contrário, sobrevive principalmente nas práticas de um
campesinato indígena nominalmente católico.
Foi
entre eles que a Virgem de Guadalupe recebeu o título de Tonantzin (“Nossa
Venerável Mãe” em náuatle), antes atribuída a deusas-mãe telúricas cujo culto
hoje se confunde com a devoção mariana. Similarmente, a confluência entre a
teologia franciscana e a espiritualidade indígena originou, no início do
período virreinal, o culto mesoamericano ao “Cristo Solar”, que persiste ainda
hoje.
O santo
guerreiro Santiago Matamoros (São Tiago), manifestação do
espírito cruzadístico da Reconquista ibérica, foi identificado com
Huitzilopochtli, deus da guerra entre os astecas.[5] Muitos
outros exemplos poderiam ser dados do colorido ecossistema espiritual mexicano
e centro-americano, mas aí já estaríamos enveredando por uma tangente.
Esse
catolicismo cordial, antropofágico, é (guardadas, por óbvio, as devidas
proporções) tolerante por princípio. Não é propriamente uma religião (por mais
que existam, sim, católicos sérios e devotos entre nós), mas um modo de habitar
o sagrado: plural, diplomático, irônico, ao mesmo tempo arcaico e pós-moderno.
Nem
mesmo nossos ateus escapam do catolicismo cultural, carregando no inconsciente
a linguagem dos santos e das promessas (“Ateus, graças a Deus”, como dizia
minha mãe). Nesse contexto, seria impreciso considerar a cordialidade
holandiana um empecilho ou negação da ordem pública. Pelo contrário, o que
temos aqui é a própria cordialidade como ordem pública, cuja negação na verdade
é outra: enquanto o zen-budismo e as religiões de matriz africana habitam essa
matriz maleável e adotam sua linguagem, alguns rejeitam abertamente esse status
quo, a exemplo de certas igrejas neopentecostais.
Se o
catolicismo à brasileira é sinfônico, misturando múltiplas vozes, o
neopentecostalismo, ao invadir terreiros e quebrar imagens de santos em praça
pública (surtos iconoclásticos dignos dos que assolaram o Império Bizantino),
emerge, ao contrário, como ruído. Os perpetradores desses gestos de
iconoclastia quase militante não rejeitam apenas símbolos, mas o próprio “pacto
da cordialidade”.
A
“crentefobia” no Brasil, por assim dizer, parece ser em grande parte resultado
de dois fatores: primeiro, uma certa aversão social àquilo que os antigos
romanos denominavam superstitio, isto é, uma devoção excessiva
(vale lembrar que mesmo os nossos católicos mais observantes são ditos
“carolas”); segundo (e mais importante), um entendimento tácito de que quem
rejeita o “pacto da cordialidade”, as regras não escritas da negociação religiosa
(sincretismo, coexistência), configura uma força antissocial por excelência.
Mesmo
para além das margens dessa matriz do catolicismo cordial, o proselitismo
obstinado típico de tais denominações é frequentemente vivido como uma forma de
agressão cultural. Pensemos, por exemplo, na chamada “Missão Novas Tribos”,
organização fundamentalista dos Estados Unidos cuja autoproclamada missão de
levar a suposta palavra de Cristo a todas as tribos do planeta (muito
atrevimento vindo de quem sequer faz parte de uma sucessão apostólica, diga-se
de passagem) só pode ser descrita como francamente etnocida.[6]
O que
temos aqui, assim, é uma reação quase popperiana, imunológica, a algo percebido
como corpo estranho, ameaça ao status quo cordial. A bem da
verdade, o chamado “Paradoxo da Tolerância” de Karl Popper sequer constitui um
paradoxo: a aparente contradição da “intolerância ao intolerante” desaparece
sob a luz de uma leitura contratualista, ou mesmo da ideia de uma declaração
velada de guerra schmittiana ao “intolerante”. Seja como for, trata-se de um
conceito útil para a compreensão das forças que vêm tensionando o tecido
espiritual-sociocultural do Brasil.
Desse
modo, a solução do problema que ora se impõe à sociedade brasileira no âmbito
da presente discussão passa não apenas por apelos genéricos ao laicismo (que
têm seu lugar e seu papel, mas correm o risco de simplificar demasiadamente a
discussão, ignorando particularidades sociológicas em nome de um ideal abstrato
imposto de cima para baixo), mas também pelo fomento da cordialidade enquanto
ética da convivência, mesmo perante crescentes tensões e desencontros, de modo
a facilitar a acomodação até mesmo dos elementos mais refratários.
Tal é
nossa glória e nosso desafio: ser a pátria onde todos os deuses são bem-vindos,
desde que saibam dançar juntos.
Fonte:
Por Eberval Gadelha Figueiredo Jr., em A Terra é Redonda
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