segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

João Filho: Injustiça no caso Evaldo prova que militares agem com impunidade

Em abril de 2019, o músico Evaldo dos Santos Rosa foi fuzilado com 80 tiros de fuzil pelo exército brasileiro na zona norte do Rio de Janeiro. Ele levava sua família para um chá de bebê quando foi confundido com um assaltante por militares, que decidiram disparar 257 tiros de fuzil contra o carro da família.

Além de Evaldo, Luciano Macedo, um catador de lixo que tentou socorrê-lo, também foi morto pelos disparos.

Na última quarta-feira, 18, o Superior Tribunal Militar, o STM, teve o descaramento de absolver os oito militares que assassinaram à luz do dia dois cidadãos brasileiros. Foram absolvidos pela morte de Evaldo e condenados a uma pena de três anos em regime aberto pela morte de Luciano Macedo.

Venceu a tese de que os militares agiram em legítima defesa. O relator do caso, o tenente-brigadeiro Carlos Augusto Oliveira, concordou com a defesa dos militares e afirmou que os soldados tentavam “conter uma ação criminosa, ainda que imaginária”.

Ou seja, o tribunal entendeu que os homens atiraram 257 vezes em uma espécie de legítima defesa imaginária. Um carro foi metralhado com uma família dentro, mas os militares de toga decidiram que os militares que atiraram são inocentes. As forças armadas executaram civis e tudo ficará por isso mesmo. É um tipo de sadismo que está incrustado historicamente nas forças armadas brasileiras.

À época dos assassinatos, o então super ministro da Justiça, Sergio Moro, tratou o caso como se fosse um acontecimento banal. “Lamentavelmente esses fatos podem acontecer”, minimizou o lavajatista.

O então presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou, com sua desfaçatez habitual, que “o exército não matou ninguém”. Não é difícil imaginar o que teríamos pela frente caso Bolsonaro tivesse tido sucesso em sua tentativa de golpe militar. Os assassinatos de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes seriam talvez o estopim de uma série de assassinatos de civis. 

O desfecho do julgamento não chega a ser uma surpresa. O corporativismo militar sempre se sobrepôs ao compromisso das forças armadas com a democracia. Não há registro na história do STM de condenação de integrantes das forças armadas por crimes graves praticados contra civis, como bem destacou o advogado das famílias das vítimas após o julgamento.

A viúva de Evaldo se sentiu atacada mais uma vez pelas forças armadas: “(Eles) agiram da mesma forma que os militares que atiraram contra o meu carro. Se sentem superiores, se sentem melhores, é lamentável. 257 tiros, pra eles, foi legítima defesa”. 

Além de todos os privilégios garantidos pelo Estado, a casta dos militares conta também com o privilégio da impunidade. A democracia garante aos militares o direito de serem julgados por um tribunal militar quando cometem crimes contra civis. É um escárnio.

Mas, na justiça comum, militares começaram a ser presos por tentativa de golpe. Até aqui já temos oito presos e 27 indiciados. A prisão de Braga Netto na última semana é histórica. Nunca um general quatro estrelas — último posto da carreira nas forças armadas — havia sido preso.

Ainda assim, todos eles têm direito a uma cela especial antes da condenação definitiva. Braga Netto, por exemplo, que está preso, hoje irá dormir em um quarto com armário, ar-condicionado, televisão e banheiro exclusivo.

A prisão fica em uma unidade militar que já foi chefiada pelo general. A família e os advogados têm livre acesso ao local. Esses são alguns dos muitos privilégios que a democracia garante, ainda que provisoriamente, para milicos que tentaram subvertê-la. 

O ministro da Defesa, José Múcio, sempre disposto a passar pano para as forças armadas, insiste na tese de que os crimes de militares são cometidos pelos CPFs e não pelo CNPJ. É como se a instituição fosse vítima da ação de algumas maçãs podres. Nada mais falso.

Nem parece que os oito CPFs que executaram Evaldo e Luciano acabaram de ser absolvidos pelo CNPJ. A história nos mostra que o crime está no DNA das forças armadas e o desejo por tutelar a democracia continua vivíssimo mesmo após a redemocratização. 

O Tribunal de Nuremberg demonstrou com clareza que não bastava julgar os indivíduos, mas principalmente as instituições que os comandavam. A SS, a Gestapo e o Partido Nazista foram julgados, considerados culpados e dissolvidos. 

As forças armadas precisam passar por algo parecido. Não bastará punir o CPF dos golpistas e absolver o CNPJ que continuará sendo uma incubadora de golpistas. Este é um problema que a democracia precisa resolver com urgência. Não é possível que as forças armadas continuem se sentindo livres para ameaçar a democracia de tempos em tempos ou metralhar civis sem motivo.

A impunidade que livrou da prisão os militares que assassinaram civis inocentes é o principal motor do golpismo. Ela está enraizada na cultura militar brasileira e nada mudará caso prevaleça a tese do ministro da Defesa.

A realidade é que o governo Lula, até aqui, tem sido uma mãe para a instituição. Este, sem dúvidas, não é um problema de fácil solução, mas o governo precisa parar de pisar em ovos e atuar politicamente por uma reformulação completa das forças armadas. O momento é propício, a conjuntura é favorável e o presidente tem habilidade política necessária. Esta é uma batalha difícil, mas inadiável. 

Múcio sinalizou que quer deixar o cargo. Não dá para escolher outro ministro frouxo que queira poupar a instituição e penalizar indivíduos. A Justiça e a Polícia Federal têm feito a sua parte. Há uma mudança em curso.

Mas ainda falta um ministério da Defesa atuante, que esteja disposto a passar toda a instituição a limpo, sem fulanizar as responsabilidades. Com a saída de Múcio, Lula tem uma oportunidade de ouro para iniciar esse enfrentamento e terminar o governo com uma marca histórica.

É preciso interromper de uma vez por todas esse ciclo interminável de impunidade e conciliação com os militares.

 

¨      “Não tenho mais alma”: a carta de um pai de vítima da violência da PM paulista

O médico Julio Cesar Acosta Navarro, pai de Marco Aurélio Cardenas Acosta, divulgou uma carta aberta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em suas redes sociais pedindo pelo final da violência policial em São Paulo.

Estudante de medicina, Marco Aurélio Cardenas Acosta foi morto aos 22 anos por um tiro disparado por um policial militar em abordagem realizada na Vila Mariana, zona sul da capital paulista, no último dia 20 de novembro.

“Sinto a dor dilacerante, a angústia e a raiva, de lembrar as últimas imagens dele me pedindo para salvá-lo, deitado numa sala de emergência, em choque hemorrágico, sussurrando: ‘Pai, me ajuda, pai, me ajuda…’. Hoje não tenho vida nem essência, nada. Um fantasma vale mais, porque ele tem alma e eu não mais”, escreveu Acosta em texto publicado no Instagram.

Além de criticar a postura dos policiais ao buscar informações sobre o caso, Julio Cesar também criticou o trabalho do secretário de Segurança do Estado de São Paulo, Guilherme Derrite, ao afirmar, dentre outros pontos, que ele “mais parece um palhaço tirado dos tempos da Inquisição”.

Professor da Faculdade de Medicina da USP, Julio Cesar também criticou o governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos), “célebre pela sua crueldade e desprezo pelo sofrimento de famílias, desafiando até a ONU, se burlando do público e afirmando publicamente que não estava “nem aí” incentivando a mais assassinatos pela PM sobre gente humilde”.

Ao ressaltar que Tarcísio só se posicionou sobre a morte de Marco Aurélo após 40 horas de pressão da mídia, o médico destaca que viu ao longo dos últimos dias “os assassinos não sendo presos, os chefes da PM dando declarações à grande mídia com falsidades sobre o meu filho e outros dando risadinhas passeando em jatos particulares (…)”.

<><> Leia abaixo a íntegra da carta aberta de Julio Cesar Acosta Navarro.

Sr. Luiz Inácio Lula da Silva

Excelentíssimo Presidente da República Federativa do Brasil

Com o maior respeito e admiração que sempre tive pela sua trajetória de vida, gostaria que você ouvisse as minhas palavras.

Hoje cumpre-se 30 dias após a pior tragédia que destruiu minha vida e de toda a minha pequena família. O assassinato do meu filho Marco Aurélio, estudante de quinto ano da faculdade de medicina, cheio de saúde e alegria, da maneira mais cruel e covarde, pelo Estado de São Paulo, às mãos de membros da PM e com a cumplicidade de toda a hierarquia superior.

Cada manhã que acordo eu não encontro aquele meu garoto amante do futebol, da música e cheio de carinho. Sinto a dor dilacerante, a angústia e a raiva, de lembrar as últimas imagens dele me pedindo para salvá-lo, deitado numa sala de emergência, em choque hemorrágico, sussurrando: “Pai, me ajuda, pai, me ajuda…”. Hoje não tenho vida nem essência, nada. Um fantasma vale mais porque ele tem alma e eu não mais. A dor levaremos a vida toda até o final da nossa existência porque será o desígnio dos deuses, mas a angústia, a humilhação e a raiva contra os criminosos em busca da “justiça dos homens” é o último que me resta agora.

Os policiais militares Guilherme Augusto Macedo e seu comparsa Bruno Carvalho do Prado, que em maior número, maior tamanho, treinamento militar, superprotegidos e armados com todas as armas, atiraram covardemente à queima-roupa no meu filho que usava um short e um chinelo, por opção de sua personalidade.

Na sequência daquela madrugada de terror, membros da Polícia Militar, cujo responsável ainda é o Comandante Coronel Cássio Araújo de Freitas, desenvolveram uma cumplicidade que, ainda com meu filho lutando pela sua sobrevivência, divulgaram oficialmente falsidades, culpando meu filho, acusando-o de querer tirar a arma deles.

Violência contra pessoas pobres e atitudes racistas, como foi o caso do meu filho, foram demonstradas claramente pelos crimes sobre outras pessoas e pelo sofrimento de famílias que se somaram à nossa tragédia, que agora é amplamente conhecida.

Eu mesmo fui testemunha direta naquela madrugada da atitude de outros PMs em várias oportunidades, quando eu cobrava o paradeiro do meu filho ou informações do que tinha ocorrido para poder usar isso tecnicamente no salvamento cirúrgico do meu filho. Me foram negadas informações, além de que todos mostravam uma mania de pegar suas armas como se eu, baixinho, professor de paletó, cabelo grisalho fosse um “Rambo” ameaçador para eles.

Atitude aprendida muito bem nas academias militares com certeza. Nesse inferno de fatos, ressalta a figura do Secretário de Segurança SP Guilherme Derrite, chefe superior da PM que, apesar de ser um oficial com antecedentes e frases incentivando a morte e violência, paradoxal e inexplicavelmente é responsável pela segurança dos cidadãos.

Ainda na sua primeira manifestação pública, após se esconder da mídia e pedir apoio ao padrinho dele, outro personagem vulgar ladrão de joias, inescrupuloso e promotor da morte de centenas de milhares de vidas pelo Covid-19, Derrite ainda definiu o trabalho dele como “o bem” e as denúncias e reclamações pelos crimes da PM como a minha, com esta carta, define como “o mal”. Derrite mais parece um palhaço tirado dos tempos da Inquisição.

Finalmente o Sr. Governador Tarcísio de Freitas, célebre pela sua crueldade e desprezo pelo sofrimento de famílias, desafiando até a ONU, se burlando do público e afirmando publicamente que não estava “nem aí” incentivando a mais assassinatos pela PM sobre gente humilde.

Tarcísio, após 40 horas de pressão total de toda a mídia do país pelo covarde crime de Marco Aurélio, anunciou um lamento público hipócrita e uma promessa de punição severa aos culpados. Somente que, pelo que vi com muita dor nestes trinta longos dias de uma justiça sem tempo, os assassinos não sendo presos, os chefes da PM dando declarações à grande mídia com falsidades sobre o meu filho e outros dando risadinhas passeando em jatos particulares, Tarcísio não disse quando faria isso, porque se referia, claro, ao Juízo Final ou quando os extraterrestres invadem a Terra, esperto ele.

Apelo ao Sr. Presidente, minha última esperança para aliviar a dor da minha família, de outras mais e poder amanhã salvar nossos próprios filhos.

Dr. Julio Cesar Acosta Navarro. - Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

 

Fonte: The Intercept/Jornal GGN

 

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