QUANTO VALE UM
BOLSONARO INELEGÍVEL?
Como em um embate entre Real Madrid e Rio das Pedras F.
C., não havia muita dúvida sobre quem sairia vencedor do confronto entre o PDT,
autor da ação julgada ao longo dos últimos dias pelo Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), e a campanha de Jair Bolsonaro, que tentava preservar sua
elegibilidade. Especulava-se apenas quanto ao tamanho da goleada – previa-se
algo entre um 7 a 0 e um 5 a 2 contra Jair –, e o tamanho dos acréscimos, já
que um pedido de vista poderia retardar o final do certame. Bolsonaro chegou
a pedir publicamente ao ministro
Raul Araújo, primeiro a votar após o relator, que interrompesse o julgamento,
mas não foi atendido. Nem Kassio Nunes Marques, que não costuma desapontar o
Jair, topou esse papelão. Como Araújo, limitou-se a dar razão à defesa, levando
ao placar de 5 a 2 pela condenação. Ainda cabem recursos ao próprio TSE, e ao
STF depois, mas a Lei da Ficha Limpa incide de imediato: Bolsonaro está fora
das urnas até 2 de outubro de 2030.
Por
mais que Bolsonaro e seu entorno tentem criar cismas com o julgamento que levou
à sua inelegibilidade por oito anos, o fato é que julgar políticos por abuso de
poder, especialmente os que ocupam cargos no Poder Executivo, é tarefa corriqueira
da Justiça Eleitoral. O que destoa nesse caso é, primeiro, a estatura da
autoridade punida, pois presidentes da República que buscam reeleição, como foi
o caso de Bolsonaro em 2022, gozam de tamanho recall e
associação aos feitos de toda máquina federal que não faz sentido arriscarem
inelegibilidade em troca de um ato de marketing de ganho marginal inexpressivo.
E também o conteúdo do ato que levou à punição: não foi inauguração de ponte,
escola ou hospital, nem recapeamento de avenida, mas um comício antiurnas que buscava,
hoje não temos dúvida, angariar apoio internacional contra essa mesma Justiça
Eleitoral que tirou Bolsonaro das próximas eleições.
Uma
das principais teses da defesa de Bolsonaro insistia na autoridade do
precedente Dilma-Temer no TSE, segundo a qual uma prova posteriormente trazida
aos autos – no caso, a minuta do golpe – não poderia embasar condenação. Mas o
raciocínio falha em dois pontos. Primeiro, ignora a diferença relevante entre
os dois casos. Naquela ocasião, o fato novo chegou em uma fase já avançada da
ação; mas dessa vez, o documento impugnado pela defesa chegou bem antes, ainda
na instrução, e sem ampliar o objeto da demanda, que sempre versou sobre o uso
dos poderes políticos e econômicos do governo para promover golpismo e ganhar
(ou melar) as eleições a qualquer custo. Além disso, o argumento representa mal
a relação que nossos ministros têm com a autoridade dos precedentes de seus
tribunais. No Brasil, comumente aceitamos que novos ministros trazem consigo
seus próprios entendimentos jurídicos, não ficando incondicionalmente presos às
interpretações dos magistrados que já se foram. E nenhum dos ministros do
julgamento de 2017 segue no TSE. Assim, não era esperado que a composição atual
se mantivesse presa a um entendimento de uma geração inteiramente anterior de
ministros, em um tema decidido por apertados 4 a 3. De qualquer forma, a
presença da minuta do golpe nos autos era o menor dos problemas para Bolsonaro,
pois sua condenação seria de rigor mesmo sem ela.
O
outro argumento relevante da defesa bolsonarista, acatado no voto do ministro
Raul Araújo, e ao final também no de Nunes Marques, alegava ser pouca a
gravidade da conduta de Jair, que não teria tido maiores repercussões – afinal,
ele perdeu as eleições, e a janeirada teve crimes, violência e destruição, mas
o apoio internacional contra a Justiça Eleitoral, almejado pela fatídica
reunião, não veio. A tese de Araújo teve vida curta: logo na sequência, foi
desmontada no voto de um dos novos ministros, Floriano de Azevedo Marques Neto,
que apontou que a gravidade da conduta não se confunde com o sucesso do ato
ilícito. Marques Neto tem razão: não fosse assim, só caberia falar de abuso de
poder em eleições presidenciais quando o presidente conseguisse, com êxito,
desequilibrar as eleições em seu favor, o que daria aos incumbentes grandes
incentivos para usarem toda a força dos cargos para seu benefício, e prejuízo
dos adversários. Evidentemente, não é isso que a lei quer.
Um
pouco como aconteceu nos julgamentos sobre a suspeição de Sergio Moro na Lava
Jato, o escopo formal do processo julgado acabou atropelado pela vida real.
Embora o objeto de uma ação judicial seja limitado pelo universo de fatos
alegados na petição que os inicia, desenlaces subsequentes podem trazer, aos
olhos de juízas e juízes, certos fatos que, embora não sejam formalmente
incorporados ao veredicto final, produzem efeitos inegáveis sobre o livre
convencimento de quem se debruça sobre o caso. “Até porque a vida é um
processo”, como lembrou a ministra Cármen Lúcia, autora do quarto e decisivo
voto pela condenação de Bolsonaro. Ao contrário da figurinha de WhatsApp, o
espírito de quem julga não conhece o colírio do desver. Assim como as
dúvidas sobre a suspeição de Sergio Moro tornaram-se pueris após o vazamento
das mensagens trocadas entre juiz e Ministério Público, também a disposição de
Bolsonaro para abusar de seu cargo a fim de desequilibrar as eleições tornou-se
absolutamente inequívoca depois de tudo a que assistimos no segundo semestre de
2022, chegando ao 8 de janeiro deste ano. A inelegibilidade por abuso visa a
tirar do jogo o ator político que se mostra disposto a usar o poder de seu
cargo para jogar sujo nas eleições e na alternância de poder, e ninguém fez
isso de forma tão explícita e desavergonhada quanto Jair Bolsonaro e seus mais
fiéis seguidores, inclusive em cargos públicos de grande importância.
Essa
é apenas a primeira de diversas ações eleitorais que devem levar a resultados
semelhantes. Além de enroscos na Justiça Eleitoral, vale lembrar que Bolsonaro
se vê ameaçado também na seara criminal, por investigações como a das joias sauditas, a falsificação no cartão de vacinação e a insurreição de janeiro. Quem quer ver
Bolsonaro na cadeia precisará esperar eventuais desfechos condenatórios nessas
outras frentes.
As grandes questões pendentes são de prognóstico
político: o que acontece com um político de forte base popular, como sem dúvida
ainda é o caso de Bolsonaro, que perde seu cargo e passa a enfrentar problemas
na justiça? Os paralelos óbvios do tempo presente são com Donald Trump e Lula.
Na
comparação com Trump, há dois pontos cruciais que tornam a situação de Jair
diferente – e pior. A primeira é que no Brasil, ao contrário dos Estados
Unidos, o Poder Judiciário tem poderes para levar políticos à inelegibilidade,
seja por abuso de poder político e econômico reconhecido pela própria Justiça
Eleitoral, como ocorreu agora, seja por condenações de outras naturezas em
outras instâncias, como previsto na Constituição e em leis como a Lei da Ficha
Limpa. E como sugere cada mensagem adicional descoberta no celular de Mauro
Cid, outras causas de inelegibilidade, inclusive por condenações criminais,
talvez incidam sobre Bolsonaro em um futuro mais ou menos próximo.
A
segunda diferença importante, que em parte decorre da primeira, é que Trump
mantém, na prática, o controle de um partido tradicional, grande e nacionalmente
capilarizado – o Partido Republicano, uma de duas legendas de um sistema
eleitoral de fato bipartidário. Sendo ele ao mesmo tempo elegível e favorito
para ganhar, nas primárias, o direito de disputar a eleição como candidato por
esse partido, é natural que ele se mantenha como a principal opção de poder dos
eleitores conservadores e de direita. Isso atrai apoios, mídia e doadores para
a campanha, e arrefece os ânimos de quem, no campo da direita, queira disputar
sua hegemonia; e de quem, mesmo concorrendo aos legislativos federal e
estaduais, queira ser republicano sem ser trumpista. Basta ver a dificuldade de
Ron DeSantis, governador da Flórida tido como seu principal adversário, para
encontrar discurso e apoio em contraposição a Trump, que segue sendo a figura
central da política institucional pela direita, em volta de quem todos os
demais políticos são obrigados a orbitar, ainda que ele esteja indiciado por
mais de um crime.
Mas
Bolsonaro, além de estar incapacitado para disputar eleições por oito anos, não
controla partido algum. Atualmente, mora de favor no feudo político de Valdemar
Costa Neto, que tem com ele uma relação de pura conveniência. Bolsonaro sabe
que tem abrigo no PL, e apoio de sua bancada, enquanto sua figura for funcional
e útil para o partido no curto prazo. Hoje ele traz votos, e tudo indica que
será um cabo eleitoral importante nas eleições municipais de 2024. Mas isso é
reavaliado de tempos em tempos, e a condenação à inelegibilidade obviamente não
o torna mais forte – ao contrário.
Do
ponto de vista da força política, aí está a principal diferença entre Lula e
Bolsonaro para reagir aos reveses da Justiça. Lula tinha genuíno suporte de um
partido forte, com o qual é indissociavelmente identificado, e com genuína
penetração social. Pôde contar com o apoio e a estrutura da legenda, que criou
estruturas para dar vazão ao suporte da militância, o que evidenciou sua
resiliência mesmo nos momentos mais difíceis. E Valdemar, será que tirará
dinheiro dos cofres do PL para organizar acampamento em praça pública, com
militantes gritando “bom dia, Capitão!” todas as manhãs, por quase seiscentos
dias? Além da popularidade, que Bolsonaro ainda tem, Lula manteve-se de pé no
ringue porque seu partido jamais aceitou construir uma alternativa a seu nome;
já o PL, bem ao contrário, está a olhos vistos lançando balões de ensaio para o
posto de líder popular da direita, a começar pela própria Michelle Bolsonaro.
Nessa toada, Bolsonaro fica mais fraco para reagir politicamente às muitas
ameaças jurídicas que ainda enfrenta. Não bastasse tudo isso, há o óbvio:
politicamente, Lula era a alternativa eleitoralmente viável à destruição
bolsonarista, enquanto Bolsonaro é a própria ameaça que se busca neutralizar.
Ninguém no Judiciário está pensando “ainda bem que temos o Jair, ele pode
salvar a democracia brasileira”.
Talvez
o melhor futuro possível para um Bolsonaro inelegível, tendo que sapatear e
rodar pratinhos para manter-se útil a Valdemar Costa Neto, seja como animador
de campanhas da direita: ganhará casa, escritório e um bom salário para rodar o
Brasil e promover candidaturas reacionárias, fisiológicas, patriarcais e
corruptas, a começar pelos próprios filhos. A não ser que celas, tornozeleiras
eletrônicas e outras restrições judiciais o obriguem a manter-se fixo em
Brasília, e longe até mesmo de comícios e candidatos.
Fonte:
Revista Piauí
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