O peixe venenoso
que invadiu mar brasileiro e pode se espalhar por todo litoral em menos de 2
anos
"Quem
já colocou ele num aquário, por exemplo… Às vezes ele come todos os outros
peixes que estão no aquário."
O
comentário é do biólogo Marcelo Soares, pesquisador do Labomar da Universidade
Federal do Ceará (UFC). A cena insólita ilustra a voracidade do peixe-leão
(Pterois volitans), uma espécie invasora do Indo-Pacífico que chegou
recentemente à costa brasileira e que, em pouco tempo, pode se espalhar por
todo o litoral do país.
Em
menos de dois anos, diz Soares, citando as estimativas mais recentes dos
cientistas, a espécie pode tomar toda a costa brasileira e chegar ao Uruguai,
causando prejuízos à pesca e ao turismo. No Caribe, a passagem do animal é associada
à redução de 80% da população de peixes que habitam recifes de corais em
algumas regiões.
Ele
não tem predadores naturais no Atlântico, é um caçador persistente e ávido, se
adapta a diversos tipos de ambientes e as fêmeas podem colocar até dois milhões
de ovos por ano. A "juba" em volta do corpo é formada por uma série
de espinhos venenosos que não são letais aos humanos, mas podem causar
ferimentos sérios.
• Uma história de quase 40 anos
A
saga do peixe-leão é uma das histórias mais bem-sucedidas de invasão de
espécies de animal marinho.
As
evidências científicas disponíveis apontam que ela começa em 1985, na Flórida.
Foi a primeira vez que o peixe-leão, nativo do Indo-Pacífico, foi avistado no
oceano Atlântico.
Não
se sabe exatamente como ele foi parar ali, próximo da costa de Dania Beach. Uma
das hipóteses é que tenha sido solto no mar por um aquarista. Há relatos também
da liberação acidental de peixes-leão na região em 1992, quando o furacão
Andrew varreu a Flórida e destruiu um aquário local.
Desde
então, a espécie vem se dispersando pelo oceano Atlântico. Tomou o litoral do
sudeste dos Estados Unidos, o Golfo do México, o Caribe…até ser avistado, em
2020, no litoral norte do Brasil.
Avançar
do mar do Caribe para o brasileiro não é tarefa simples para uma espécie
invasora. A foz do rio Amazonas - ou a pluma do Amazonas-Orinoco, na
terminologia técnica - é uma enorme barreira natural que dificulta o trânsito
de animais de um lado para o outro. São bilhões de litros de sedimento
despejados no oceano a cada minuto - e esse material não se dissolve
imediatamente na água salgada, ele se espalha por quilômetros mar adentro e por
metros de profundidade.
Não
é fácil passar. A hipótese é que o peixe-leão tenha usado recifes que existem
na região da pluma do Amazonas como base para atravessar de um lado para o
outro, diz Soares, chegando no Amapá e no Pará. Os cientistas acreditam que
isso tenha acontecido por volta de 2017 e 2018.
"Esses
recifes que existem na Amazônia estão entre 70 e 220 metros de profundidade, é
bem fundo. Mas esse animal aguenta até 300 metros de profundidade, então ele
consegue usar essa área. Fora isso, é um animal muito resistente, aguenta baixa
salinidade."
Uma
vez no litoral brasileiro, o peixe-leão seguiu avançando para o Nordeste, em
uma área em que a corrente marinha flui em direção ao Caribe, acrescenta o
biólogo. Nadando contra a corrente, ele chegou ao Maranhão, Piauí, Ceará, Rio
Grande do Norte.
No
Ceará, Soares e os colegas do Labomar observaram os primeiros animais em março de
2022. Naquela época, os peixes tinham em média entre 14 e 15 centímetros. Um
ano depois, em junho de 2023, o tamanho sobrou: 30 centímetros.
"Hoje
ele já é encontrado em todos os municípios do Ceará, no litoral do Rio Grande
do Norte... e está descendo."
Segundo
o pesquisador, quando o peixe-leão "virou a esquina" do Brasil - a
curva no mapa do Rio Grande do Norte -, ele chegou a uma região em que a
corrente marinha flui para o sul. "O que significa que ele vai mais rápido
agora", comenta.
No
momento, a espécie está na fronteira entre Pernambuco e Alagoas, como aponta a
plataforma de monitoramento organizada por Soares e pelo pesquisador Tommaso
Giarrizzo para acompanhar a dispersão do peixe-leão.
A
ferramenta é colaborativa: pelo computador ou por um aplicativo no celular,
pescadores e mergulhadores enviam imagens e informações sobre seus encontros
com a espécie.
• Qual o problema?
Mas
por que a proliferação de uma espécie exótica como o peixe-leão é um problema
ambiental?
À
medida que compete por recursos com outras espécies e que se alimenta de uma
grande variedade de animais - sem ser ameaçado por predadores -, ele pode
ameaçar a biodiversidade nos locais por onde passa.
Isso
pode impactar o turismo, por exemplo. "Quem faz mergulho quer ver vida,
né?", ilustra o pesquisador.
Com
menos peixes disponíveis, a pesca também pode ser afetada.
No
Ceará, os pescadores artesanais têm uma tradição antiga de criar recifes
artificiais com pneus e outros objetos afundados para atrair peixes, as
chamadas marambaias.
"Isso
vai passando de pai pra filho, a localização do afundamento. É quase como uma
propriedade para pescar no fundo do mar", explica Soares.
Em
uma expedição feita na costa da praia de Jericoacoara, a equipe do Labomar
encontrou vários peixes-leão dentro dessas estruturas.
• O que é possível fazer para evitar o
pior?
O
biólogo diz que é praticamente impossível erradicar o peixe-leão das áreas em
que ele já se estabeleceu, mas o controle da população pode ajudar a diminuir
os impactos negativos.
Nesse
sentido, ele destaca como positivas as iniciativas implementadas em Fernando de
Noronha. Lá, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)
costurou uma parceria com operadoras de mergulho para capturar a espécie.
Por
ser uma área de conservação, contudo, o arquipélago é um caso à parte. Na
maioria das cidades do litoral norte e nordeste por onde a espécie tem se
espalhado, ainda não há iniciativas coordenadas dos governos estaduais e
federal para ativamente tentar controlar o aumento da população de peixe-leão.
"O
ponto positivo é que nós temos uma rede de universidades preparadas para
trabalhar com os órgãos públicos. Basta que a gente faça essa parceria, todo
mundo junto, que é a única forma de combater o problema", diz Soares.
Outros
países na rota de invasão do peixe-leão vêm testando diferentes estratégias nas
últimas décadas.
Cidades
na costa da Flórida, por exemplo, passaram a organizar eventos para a caça da
espécie. Em maio, a região do condado de Okaloosa comemorou um recorde de
animais removidos durante seu torneio anual: 25.699.
Em
alguns locais do Caribe, além da pesca para controle da espécie, a carne é
consumida em restaurantes. É o caso das Ilhas Virgens Americanas, onde Soares
esteve recentemente como professor visitante.
"Claro
que é preciso tratar o peixe, tirar os espinhos, que são venenosos, mas lá ele
é usado na alimentação."
"Eles
também aproveitam o couro para produzir sapatos, carteiras, bolsas…uma espécie
de curtume do couro do peixe-leão. Então existem alternativas econômicas e
sociais que geram a renda e ajudam a eliminar o animal."
Essas
alternativas precisam, contudo, ser cuidadosamente avaliadas pelas autoridades
locais, diz o pesquisador. É preciso primeiro entender se os animais na costa
brasileira estão contaminados e, caso se decida regulamentar o consumo,
preocupar-se em evitar o risco, por exemplo, de dar valor econômico à espécie e
acabar incentivando seu cultivo - o que pioraria o problema.
À
reportagem, o Ibama afirmou que, desde 2014, vem impedindo de forma proativa a
importação desses animais para qualquer finalidade, ainda que a legislação até
pouco tempo permitisse a compra. A proibição veio no ano passado, com a
publicação de uma portaria que veta a importação de cinco espécies de
peixe-leão com finalidade ornamental.
Também
em 2022 a autarquia criou um grupo de trabalho com foco específico no problema.
Entre os objetivos estão a formulação de uma proposta de ato normativo para o
manejo da espécie.
"A
regulamentação normativa a ser construída especificamente para o peixe-leão
trará comandos mais específicos para o uso e aproveitamento desta
espécie", diz o texto enviado à BBC News Brasil.
Nesse
sentido, no segundo semestre deste ano o Ibama estuda organizar um workshop
para debater alternativas para o aproveitamento da carne e do couro do animal,
"caso haja mercado", e para construir um "amplo plano nacional
de combate ao peixe-leão".
No
momento, ainda que não haja uma proibição legal, a autarquia não recomenda o
consumo, por se tratar de uma "espécie venenosa, cujo manejo requer
técnicas específicas".
Fonte:
BBC News Brasil
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