Junho de 2013:
Rebeliões realmente fracassam?
Uma
forma frequente de abordar e analisar os protestos, aqui e alhures, é de
estabelecer um tipo de tribunal, desde cima, dos seus resultados (imediatos).
Isso significa, no contexto brasileiro (mas poderíamos também dizer no chileno,
egípcio, sírio ou tantos outros), decretar o fracasso ou derrota das
manifestações, ou ainda seu favorecimento da extrema direita. Percebo essa
posição de julgamento como equivocada e, além disso, conservadora e ruim para
pensar-lutar.
·
longa duração
É
conhecido o episódio de Mao Tsé-Tung respondendo ser ainda cedo para falar dos
efeitos da Revolução Francesa. Há outra versão desse episódio, mencionando um
problema de tradução/compreensão: a pergunta seria sobre 1968 e não 1789. Tal
divergência, porém, não influi tanto no propósito aqui, que é o de destacar a
longa duração de certas disrupções.
No
início de 1848, quando os jovens militantes Marx e Engels jogam no mundo
o Manifesto Comunista, o despotismo domina a Europa. Não sabemos se
os parceiros o profetizaram, mas nas semanas seguintes todas as tiranias do
continente bambeiam. Alguns meses depois, a situação é de restauração
generalizada. Mas o que predominou a longo prazo, a legitimidade dinástica, a
soberania popular ou a autodeterminação dos povos? Esses embates ainda estão em
curso, mas os desdobramentos indicam uma situação muito mais complexa que
balanços apressados logo após o evento.
Se
o entendimento clássico de revolução rimou, por bastante tempo, com a tomada do
poder por uma força de transformação (da política e economia, da sociedade e
cultura), dialogando com Immanuel Wallerstein, o antropólogo David Graeber
(2015 [2013]) compreende-as como mudanças a respeito dos pressupostos
elementares sobre política. O que se entende por política se altera,
globalmente, nesses processos e, assim, perspectivas antes extremamente
minoritárias viram, rapidamente, senso comum – participação das pessoas, políticas
de igualdade, novas sujeitas coletivas.
Os
ventos comuns da Revolução Haitiana (Scott, 2018 [1986]), mas também de tantas
outras (estadunidense, russa, mexicana ou cubana), sopraram (e ainda sopram)
por todo o globo. Essas revoluções ocorreram nesses países, mas, igualmente, no
planeta como um todo, influenciando e inspirando, em distintas intensidades,
outros pontos. Outras, como as de 1848 ou de 1968, ocorrem quase
simultaneamente em dezenas de países. Um deslocamento também se produz ao
imaginá-la na pegada do feminismo ou do abolicionismo como movimentos que
causam profundas mutações morais – demoradas, agindo sobretudo por fora do
sistema político formal, com ações diretas e engrossando um caldo
político-cultural, mas cujos efeitos são duradouros.
·
direção
O
ciclo de protestos iniciado em Sidi Bouzid na Tunísia no fim de 2010, no bojo
da crise financeira de 2008, traz um recado contundente: “a estabilidade está
morta” (Comitê Invisível, 2016 [2014]). É nesse contexto que um terremoto
político sacode o Brasil no mês de junho de 2013. Milhões de pessoas –
transbordando divisões, setores e áreas – tomam as ruas sem nenhuma coordenação
centralizada. Fato inédito, chacoalha e transforma o país.
A
década precedente é marcada pela ascensão de dezenas de milhões (e pelos
debates acerca de suas interpretações). Em quase toda parte, as disputas também
se davam nas ruas e não só nas instituições, o Brasil sendo uma exceção. Além
de o conectar ao ciclo de revoltas globais, as Jornadas de Junho abrem um
paralelo com 68 (Cidade do México, Dakar, Berkeley, Nanterre, Córdoba, Tóquio,
Rio e São Paulo) se pensarmos no papel dos novos estudantes universitários: no
Brasil seu número explode nos anos anteriores, constituindo um fermento para a
revolta — novas possibilidades existenciais para esses jovens trabalhadores se
confrontando com um muro de oportunidades diminutas.
Essas
lutas não são, evidentemente, um raio em céu azul; têm uma história e uma
memória. Uma das faíscas é a luta pelo transporte, com os tradicionais quebra-quebra
de bondes nas cidades brasileiras por conta do aumento do preço da passagem. Na
primeira metade dos anos 2000 desencadeiam-se as revoltas do Buzu em Salvador e
as duas da Catraca em Florianópolis. Daí nasce o Movimento Passe Livre (MPL),
influenciado pela experiência zapatista e pelo movimento antiglobalização. Em
2011 e 2012, outras mobilizações precedem a explosão, como as greves selvagens
dos barrageiros de Jirau e Santo Antônio e a ampla solidariedade com os Guarani
e Kaiowá. Poucas semanas antes de estourarem nacionalmente, acontece a ocupação
indígena do plenário do Congresso, o Bloco de Lutas em Porto Alegre e as lutas
pelo transporte em Goiânia e Natal, além da organização dos Comitês Populares
da Copa. Havia, portanto, todo um caldo mais subterrâneo — de várias formas não
visível para as lentes convencionais — que estava se desenvolvendo naquele
período.
O
medo, em geral sentido pelas pessoas comuns (por conta de sua vulnerabilidade
permanente, em vários sentidos), vive uma mutação com o acontecimento: os
poderes constituídos passam a senti-lo. Os donos do poder e do dinheiro temeram
naqueles dias e isso revela uma verdade da democracia, a de que a potência é
dos de baixo que a cedem ao Estado, constituindo o contrato social. Esses
momentos de erupção mostram de quem é a potência que não é exercida, e naquele
momento passa a sê-lo. Daí vem a grande riqueza desses eventos, e não podemos
esquecer dos loucos dias de junho (entre os dias 13 e 20 –
entre a erupção e a diminuição das tarifas), quando tudo parecia fugir – e
fugia – de qualquer controle, como, por exemplo, no dia 17, na tomada do teto
do Congresso em Brasília e na Batalha da Alerj (Jourdan, 2018).
A
detonação abre um novo ciclo político e a partir daí todos os atores e setores
da sociedade brasileira são obrigados a se reposicionar — isso vale para a
direita, a esquerda e o centro, as empresas, bancos e agronegócio, os
movimentos indígenas e negros; todos são interpelados pelo evento de 2013. Para
o bem ou para o mal, é o fim do momento que o país estava vivendo. Acabou a
estabilidade, dizem os protestos, e esse término significa o aguçamento do
conflito distributivo, por conta da dificuldade de continuar o processo de
diminuição das desigualdades sem tocar em certos interesses materiais do andar
de cima. A mágica do lulismo (de distribuir para os pobres sem
tomar dos ricos) encontra aí seu limite. Um paradoxo desse em sua moderação e
na ausência das “reformas estruturais” situa-se no fato de constituir uma
espécie de reviravolta simbólica e concreta. Uma expansão das perspectivas de
vida-luta, com uma série de políticas sociais (Bolsa Família, cotas e expansão
da universidade pública, universalização da luz), econômicas (aumento do
salário mínimo, créditos rural e popular), culturais (do “do-in antropológico”
de Gil), mecanismos de participação e os novos vínculos com o mundo. Essas
políticas catalisam e inclusive mudam o eleitorado petista até hoje, com o
realinhamento eleitoral e conquista do apoio dos mais pobres, sobretudo no
Nordeste.
Nas
ruas brasileiras em 2013, podiam ser observadas demandas nitidamente
provenientes do lado dos de baixo: contra a máfia das empresas de ônibus
(serviços ruins e preços altos, sem transparência em relação aos custos e
lucros), violências policiais (a outra faísca do dia 13 em São Paulo e os
gritos de cadê o Amarildo? no Rio) e por melhorias profundas
na educação e saúde públicas. Essas pautas se fortalecem depois das enormes
manifestações. Tinham, contudo, sido deixadas de lado pela esquerda no governo
(apesar da proposta de tarifa zero nos transportes ser, por exemplo, uma
formulação de origem no PT, na gestão da Luiza Erundina na prefeitura de São
Paulo). Isso vale também para questões muito caras, por exemplo, aos movimentos
negro, indígena e transfeminista, ignoradas em geral pela sociedade como um
todo e em boa parte pela esquerda, como a guerra às drogas e a determinadas
pessoas e coletividades. Revoltas, permanentes e ininterruptas, ganham maior
visibilidade; assim como os aumentos nos transportes foram revogados em mais de
cem cidades, era possível reivindicar e ganhar em outros campos.
As
comportas se abrem, ou melhor, são abertas. O número de greves dispara segundo
o Dieese: de menos de mil em 2012 para mais de duas mil em 2013 (o maior número
desde o início da contagem nos anos 1980), abrangendo setores geralmente menos
propensos às paralisações, como a indústria da alimentação, segurança ou
limpeza urbana (SAG-DIEESE, 2015). Guilherme Boulos conta que o MTST não estava
dando conta dos anseios de ocupação que tomaram as periferias paulistas
naquelas semanas. No Rio, que continuará mobilizado por meses (durante a
Jornada Mundial da Juventude, no Ocupa Cabral e na greve dos professores), após
um ataque a um prédio da emissora, o jornal O Globo publica
uma autocrítica acerca do apoio das Organizações Globo ao golpe civil-militar
de 1964. A Aldeia Maracanã não vira um estacionamento e segue em resistência.
Junho
mostra uma série de caminhos e abre espaço para novas práticas e alianças
políticas: as greves dos garis no Rio e uma presença Guarani Mbya de muito mais
contundência em São Paulo, numa multiplicação de atos de repercussão e
inspiração desde então. Tingindo de vermelho o Monumento às Bandeiras,
trancando a Rodovia dos Bandeirantes, ocupando por 24h o escritório da
Presidência ou, em particular, retomando a antiga aldeia Kalipety, nessa tekoa onde
hoje a cidade vive um dos seus mais belos experimentos cosmopolíticos, de
cultivos agrícolas e políticos (Keese dos Santos, 2021).
·
reação
Vivíamos
então um recorde de eleições presidenciais seguidas e um certo crescimento
econômico com distribuição de renda. Para os integrantes do governo petista,
tudo caminhava bem nos indicadores (com desemprego baixo e salários em alta),
porém, como outros momentos históricos e contra determinadas expectativas
conservadoras, melhores condições de vida geram mais lutas e não acomodamento.
O que seria um tipo de coroação (pensando na Copa e Olimpíadas) de um projeto é
posto a nu pelos protestos, explicitando as fortes fragilidades desse processo
de mudanças: uma democracia de baixa escala (violência, participação limitada,
repressão às manifestações, genocídio da juventude negra, etnocídio dos povos
indígenas) com suas alianças contraditórias e o poder, nada democrático, de
grandes empresas e bancos.
A
aposta num Brasil poderoso conecta o apoio aos chamados campeões nacionais e à
realização desses grandes eventos. Entre, de um lado, fomentar megaempresas com
dinheiro dos bancos públicos e lhes dar projeção internacional e, por outro,
financiar a acolhida de competições empresariais-esportivas, com remoções de
comunidades, gentrificação das cidades e do esporte e investimentos duvidosos.
E, também, seu fiasco, seja nas telecomunicações (recuperação judicial da
empresa Oi), na concentração no mercado de carnes (JBS Friboi e seu primeiro
lugar mundial como processadora de alimentos), seja na falência do Grupo X de
Eike Batista, para a primeira, e a falta de legado substantivo para a população
no que toca à segunda. Isso ganha outro relevo com a irrupção.
Por
que esse caldo deu, por ora, mais em oportunidades perdidas? Primeiro, o polo
da esquerda, que acabou tornando-se mais – digamos – comportada, conduzida pelo
PT, mas que abrange outras organizações como a CUT, o MST, e os movimentos
feminista e negro mais vinculados ao ciclo de lutas que se inicia no período
final da ditadura.
O
partido controla, em 2013, os executivos com dois dos orçamentos públicos mais
importantes (da União e da maior cidade do país). Seus quadros à frente dessas
administrações, contudo, se ativeram a perspectivas tecnocráticas. O prefeito
Fernando Haddad se opôs a Junho, o que é curioso, pois sua campanha à
Prefeitura no ano anterior falava de um tempo novo e este poderia se conectar
com o que emergiu com mais contundência, mas o espírito não reconheceu o corpo
encarnando nas ruas e o rejeitou. Dilma Rousseff, como presidente, propôs cinco
pactos (sendo um deles o importante programa Mais Médicos e outro a
“responsabilidade fiscal” – austeridade numa hora dessas?) e fez um gesto
interessante (e talvez inédito nesse ciclo global), ao receber alguns
manifestantes no Palácio. No entanto, como disseram militantes do MPL ao fim da
reunião, não houve real conversa nem intenção de levar em conta o que tinha
sido proposto nas ruas. Apesar da insatisfação crescente e alta, Dilma será até
reeleita no ano seguinte, pois a oposição, representada no segundo turno por
Aécio Neves, apresentou um projeto pré-Junho e até pré-lulismo.
No
fundo, passada a tempestade mais imediata, o mundo petista “tocou a vida”. As
consequências foram trágicas para o movimento, para o partido e para o país. O
PT não soube ganhar; contribuiu decisivamente, mas não foi capaz de se despir
da perspectiva estatal e de aprofundar as conquistas nem quando as ruas
apontaram para isso e mudaram a correlação de forças. Mais: talvez tenha
provocado um curto-circuito ao promover novas subjetividades e não ir mais a
fundo, abrindo flanco para a reação.
O
outro polo, de uma esquerda autônoma, incluindo dezenas de organizações e
sensibilidades, infelizmente, tampouco deu conta das aberturas de Junho. O MPL,
uma de suas expressões, incendiou o Brasil, pautou um tema fundamental para a
classe trabalhadora, conseguiu sua inclusão como direito social na Constituição
e, sobretudo, ajudou na eclosão de um novo imaginário político radical, mas não
logrou articular a luta contra a catraca do transporte para as outras cercas
que assolam a sociedade. Tampouco conseguiu aproveitar aquele momento para
dialogar com a população de forma mais continuada, no sentido de construir
novas conexões e fomentar organizações do cotidiano (mas essa talvez seja
“cobrança” demasiada para um conjunto de pequenos coletivos de poucas dezenas
de pessoas?).
Muitas
pessoas, sobretudo após o dia 13 de junho, participam pela primeira vez em
manifestações e mobilizam argumentos despolitizados sobre a corrupção,
moralistas sobre a “violência” (o Jornal Nacional do dia 20 de junho
impressiona pela quantidade de vezes em que os apresentadores insistem na
suposta oposição entre manifestantes pacíficos majoritários e vândalos
minoritários) e símbolos verde-e-amarelos capturáveis. O documentário Com
vandalismo, do Coletivo Nigéria, retrata esse processo em Fortaleza, mas
não é justamente o papel de quem quer transformar, convencer e ganhar mais
gente? De alguma forma, as esquerdas se surpreendem com 2013 e essas brechas
perdidas são trágicas e abrem espaços para a extrema-direita (lembremos de
Walter Benjamin falando do fascismo como resultado de uma revolução
fracassada).
Cinco
anos depois, um candidato que celebra a máquina de morte (repudiada nas
manifestações daquele ano) é eleito, num processo cheio de ilegalidades (golpe,
prisão de Lula) e se colocando demagogicamente como alheio a um sistema
político em convulsão e com baixa legitimidade. Na medida em que a política
institucional não leva em conta o evento de 2013, sua crise se aguça e vamos
nos aproximando do sinistro cenário. Junho, em seu questionamento dos representantes,
abriu um novo ciclo político e as esquerdas (mais afins às plurais mensagens
das ruas) não souberam aproveitar as novas fissuras: a estratégia aberta pela
disrupção não encontrou a virtude tática das organizações. A fundação
oportunista do Movimento Brasil Livre (MBL) copia a sonoridade do MPL,
roubando, de alguma forma, uma sigla e um símbolo, assim como o Vem pra Rua.
Ambos, no âmbito da (extrema) direita, tentam corresponder a esse anseio.
O
ano de 2013 passa a ser – curiosamente, tanto para a extrema-direita quanto
para boa parte da esquerda, ainda que com sinais invertidos – o marco inicial
de uma onda conservadora. Não adianta, todavia, culpar a Globo e os
conservadores (ou setores estadunidenses) que disputaram os rumos dos
protestos, depois de terem apoiado sua repressão. As manifestações posteriores
contra Dilma se iniciam logo após a contestação do resultado de 2014 pelo
candidato derrotado e se fortificam nos dois anos seguintes, levando ao impeachment.
Qualquer pessoa pode perceber, porém, que se trata de outro público, bem mais
rico, velho e branco que o de 2013. Surpreendentemente, uma direita que não
encarava a rua há décadas soube melhor se posicionar após a explosão, enquanto
para as esquerdas, ou, ao menos para parte delas, 2013 talvez tenha ficado como
um tipo de trauma.
·
repressão
Junho
coloca o aparato implacável em xeque. O sumiço e assassinato de Amarildo Dias
de Souza, pedreiro e morador da Rocinha, assume uma fortíssima repercussão. As
lutas indígenas, como vimos, anunciam a rebelião, inclusive na batalha contra a
hidrelétrica de Belo Monte. A costumeira repressão é, nesse momento,
veementemente contestada: gritos pelo fim da Polícia Militar ecoam em toda
parte.
O
assassinato de Marielle Franco, nos marcos da intervenção militar no Rio, no
dia 14 de março de 2018, pode ser lido como uma tentativa de encerrar aquilo
que tinha se aberto, ao tirar a vida de um símbolo encarnado das novas
subjetividades emergentes. Ao não tratar de forma mais contundente nossas
chagas coloniais (genocídio dos jovens negros, etnocídio dos povos ameríndios e
desigualdades imorais), essas pendências de justiça que perpassam todas as
gerações desde o início do que chamamos Brasil, isso se volta contra o processo
político-criativo que estava em curso.
Ao
considerar esse aspecto decisivo, o desencontro entre o PT e os protestos se
torna ainda mais agudo (o que se expressa com nitidez na lei antiterrorismo,
aprovada no momento final do governo Dilma). Uma ampla reação se articula e o
Estado brasileiro fortalece “todos os seus instrumentos para reprimir e
silenciar vozes dissonantes” (Artigo 19, 2018). Mecanismos são aprimorados a
partir da irrupção e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário convergem e
colaboram na agenda estatal coercitiva, no contexto dos grandes eventos,
ocupações secundaristas e crises política e econômica. Novas armas (mais
sofisticadas e variadas) e táticas (como o envelopamento), filmagem e
vigilância, infiltração (como no caso Balta Nunes, do Exército) e articulação
federativa.
Tal
conjunto evidencia ações concertadas para restringir o fundante direito ao
protesto. O Governo Federal não freou tal processo, ao contrário. Não brecar
essa máquina foi um tremendo erro. O Brasil figura nas primeiras posições nos
dados de execuções de militantes (ao lado de México, Colômbia e Filipinas),
numa certa política público-privada de assassinatos seletivos (sobretudo nas
questões ligadas à terra) de pessoas-chave para termos um país (e um planeta)
com dignidade para todes. Desmontar esse aparato repressivo deveria ser uma
tarefa fundamental de qualquer governo que busque transformações. Mas quando o
MPL pauta, na reunião no Palácio do Planalto com a presidenta no calor das
manifestações, a questão da regulamentação das armas menos letais: silêncio.
·
alegria
Ouçamos
as vozes, gritos e sussurros manifestantes. “Enfim se respira! Greve dos
metalúrgicos” (Weil, 1996 [1936], p. 119). Assim Simone Weil inicia seu relato
da experiência de uma onda de ocupações, durante o governo francês da Frente
Popular em 1936.
A
greve é uma alegria. A escritora, que foi operária na Renault, insiste nessa
palavra, que chega a se repetir uma dúzia de vezes numa única página. Alegria
logo ao entrar na fábrica, permitida por um sorridente operário; ao estar com
todos juntos, comendo, conversando, quando antes havia solidão de cada um
enfurnado em sua máquina. Alegria ao ouvir música, cantos e risos em vez do
estrondo impiedoso dos equipamentos; agora batem no ritmo humano (da
respiração, das batidas do coração) e não na cadência do cronômetro. Alegria de
passar na frente dos chefes de cabeça erguida, lembrado Espinosa-Deleuze, para
quem “a tristeza serve à tirania e a opressão” e gera impotência – ao contrário
da alegria, que ativa (Deleuze, 1981, p. 76).
Tal
afeto é onipresente nos relatos das pessoas em movimento. Foi o que sucedeu no
Egito no primeiro mês de 2011. Tudo se inverte na praça Tahrir (e no país): ali
passam a ser garantidos os serviços que o eram antes, supostamente, nos prédios
que a circundam; o mundo de ponta-cabeça, no qual, “em vez de serem vigiados,
cidadãos escrutinam o regime” (Weizman, Fischer e Moafi, 2015, p. 44),
resistindo aos ataques a camelo de partidários e mercenários de Mubarak e às
bombas de gás e tiros das forças repressivas. Uma alegria de estar juntes,
cultivando e criando – um participante vai dizer que nunca em sua vida sentiu
tanto amor quanto na praça, sendo os momentos mais felizes de sua vida (Ghonim,
2012, p. 264 e 290). Novos seres surgem nesses dias, puxados pelos jovens, mas
com pessoas de todas as condições, religiões e idades; um milhão vivendo outras
existências, diz outra testemunha (El Aswany, 2011, p. 17-19).
As
limitações dessas explosões não são poucas (efemeridade, inconstância,
efetividade) e as dificuldades de inventar, concretamente, novas comunidades
políticas, suas infraestruturas afetivas e regras comuns, na contracorrente
total da máquina estado-capital-colonial e seus valores individualistas, são
imensas. Além disso, em tantas partes onde houve erupção, a contrarrevolução
está levando a melhor. No emblemático caso egípcio, dois presidentes são
derrubados, mas chega um terceiro, das mesmas Forças Armadas do primeiro,
também a principal força política e econômica do país. Massacres seguem
ocorrendo. A inércia, no entanto, foi quebrada e “quando dizemos ‘a revolução
fracassou’ estamos deixando de lado algo fundamental” (El-Tamami, 2016), ainda
que insuficiente, como a explosão de humor e imaginação dos cartazes feitos a
mão, do colorido dos murais e sobretudo das relações ali construídas e das
possibilidades, apostando numa mudança nas pessoas-coletividades que dará
frutos.
O
que clama 2013, processo brasileiro de um fenômeno global, uma década depois?
Que demandas impossíveis não o são, pois movimentos podem parar e tomar a
cidade, interpelando a sociedade e arrancando conquistas do poder. A tarifa de
um serviço essencial foi diminuída, foi pautada a prioridade do transporte
público e se discutiu a utopia da tarifa zero (concretizada em
algumas cidades e em número maior nos dias eleitorais nos anos seguintes), além
de ter sido colocada em xeque a polícia (por pouco tempo). E é fundamental essa
abertura para encarar os prementes desafios de termos uma real democracia: a
energia daqueles dias é inspiradora para enfrentar nossas urgências absolutas:
desigualdade social e racial obscena, assassinatos recorrentes, encarceramento
em massa, má alimentação e crise ecológica.
E
é aí que se mostra mais um paradoxo de 2013. Embora predomine na esquerda uma
avaliação negativa dos protestos, seria imaginável sem eles a presença de
figuras (e suas pautas históricas) no ministério do terceiro governo Lula como
Sonia Guajajara, Silvio Almeida, Anielle Franco ou a volta de Marina Silva? A
nova leva de deputadas indígenas, negras e trans (Célia Xakriabá, Erika Hilton
e tantas) ou o milhão de votos de Boulos? As delicadezas e dificuldades se
acentuam, igualmente, como um amigo (André Luzzi) me lembrou outro dia, se
pensarmos que dois atores governamentais importantes de Junho de 2013 em São
Paulo são agora vice-presidente e ministro da Fazenda desse mesmo governo…
2013
merecia e merece desabrochar, de modo a “não atropelar o tempo próprio da
imaginação criadora, para evitar o risco de interromper a germinação de um
mundo”. James Baldwin, em outro contexto, fala do perigo de não nos
contaminarmos com o acontecimento, pois “toda tentativa que nós faríamos para
nos opor a essas explosões de energia levaria a assinar nossa sentença de
morte” (Baldwin, 1963, p. 99). Poderia estar falando do Brasil recente? Do
desperdício de uma potência coletiva dessas revoltas que “devotam o poder à
impotência” (Comitê Invisível, 2016 [2014], p. 89)? O decreto de derrota, por
cima, mencionado no início, é um tanto impotente e, além disso, perde uma
vertente épica da luta. Esta, numa perspectiva do protesto, não é uma opção,
mas o âmago da dignidade frente à guerra ininterrupta ou, segundo uma longa
linhagem, tal como formulado por zapatistas, ao anunciarem a viagem recente à
Europa: “iremos a dizer ao povo da Espanha […] que não nos conquistaram”
(CCRI-EZLN, 2021, p. 282).
A
revolta, concebe Camus, é “uma das dimensões essenciais” da existência, “nossa
realidade histórica”. Cumpre, em nossa “provação cotidiana”, o mesmo “papel que
o ‘cogito’ no âmbito do pensamento: é sua primeira evidência […]. Eu me
revolto, logo somos”. A história é, assim, apreendida como “a soma de suas
revoltas sucessivas”. Política e invenção: sua “lógica profunda não é a da
destruição”, mas a da criação. Em suas razões de ser, a sublevação manifesta
uma “louca generosidade”, que dá “sua força de amor e recusa […] da injustiça.
Sua honra é de não calcular nada”. Constitui, para o escritor franco-argelino,
“o movimento mesmo da vida e que não a podemos negar sem renunciar a viver. Seu
grito mais puro, a cada vez, faz um ser se levantar. Ela é então amor e
fecundidade ou não é nada” (Camus, 1951, p. 37-38; 141; 356; 379-80). A luta
existencial, vida-luta.
O
protesto é.
Fonte:
Por Jean Tible, em Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário