domingo, 2 de julho de 2023

Junho de 2013: Rebeliões realmente fracassam?

Uma forma frequente de abordar e analisar os protestos, aqui e alhures, é de estabelecer um tipo de tribunal, desde cima, dos seus resultados (imediatos). Isso significa, no contexto brasileiro (mas poderíamos também dizer no chileno, egípcio, sírio ou tantos outros), decretar o fracasso ou derrota das manifestações, ou ainda seu favorecimento da extrema direita. Percebo essa posição de julgamento como equivocada e, além disso, conservadora e ruim para pensar-lutar.

·         longa duração

É conhecido o episódio de Mao Tsé-Tung respondendo ser ainda cedo para falar dos efeitos da Revolução Francesa. Há outra versão desse episódio, mencionando um problema de tradução/compreensão: a pergunta seria sobre 1968 e não 1789. Tal divergência, porém, não influi tanto no propósito aqui, que é o de destacar a longa duração de certas disrupções.

No início de 1848, quando os jovens militantes Marx e Engels jogam no mundo o Manifesto Comunista, o despotismo domina a Europa. Não sabemos se os parceiros o profetizaram, mas nas semanas seguintes todas as tiranias do continente bambeiam. Alguns meses depois, a situação é de restauração generalizada. Mas o que predominou a longo prazo, a legitimidade dinástica, a soberania popular ou a autodeterminação dos povos? Esses embates ainda estão em curso, mas os desdobramentos indicam uma situação muito mais complexa que balanços apressados logo após o evento.

Se o entendimento clássico de revolução rimou, por bastante tempo, com a tomada do poder por uma força de transformação (da política e economia, da sociedade e cultura), dialogando com Immanuel Wallerstein, o antropólogo David Graeber (2015 [2013]) compreende-as como mudanças a respeito dos pressupostos elementares sobre política. O que se entende por política se altera, globalmente, nesses processos e, assim, perspectivas antes extremamente minoritárias viram, rapidamente, senso comum – participação das pessoas, políticas de igualdade, novas sujeitas coletivas.

Os ventos comuns da Revolução Haitiana (Scott, 2018 [1986]), mas também de tantas outras (estadunidense, russa, mexicana ou cubana), sopraram (e ainda sopram) por todo o globo. Essas revoluções ocorreram nesses países, mas, igualmente, no planeta como um todo, influenciando e inspirando, em distintas intensidades, outros pontos. Outras, como as de 1848 ou de 1968, ocorrem quase simultaneamente em dezenas de países. Um deslocamento também se produz ao imaginá-la na pegada do feminismo ou do abolicionismo como movimentos que causam profundas mutações morais – demoradas, agindo sobretudo por fora do sistema político formal, com ações diretas e engrossando um caldo político-cultural, mas cujos efeitos são duradouros.

·         direção

O ciclo de protestos iniciado em Sidi Bouzid na Tunísia no fim de 2010, no bojo da crise financeira de 2008, traz um recado contundente: “a estabilidade está morta” (Comitê Invisível, 2016 [2014]). É nesse contexto que um terremoto político sacode o Brasil no mês de junho de 2013. Milhões de pessoas – transbordando divisões, setores e áreas – tomam as ruas sem nenhuma coordenação centralizada. Fato inédito, chacoalha e transforma o país.

A década precedente é marcada pela ascensão de dezenas de milhões (e pelos debates acerca de suas interpretações). Em quase toda parte, as disputas também se davam nas ruas e não só nas instituições, o Brasil sendo uma exceção. Além de o conectar ao ciclo de revoltas globais, as Jornadas de Junho abrem um paralelo com 68 (Cidade do México, Dakar, Berkeley, Nanterre, Córdoba, Tóquio, Rio e São Paulo) se pensarmos no papel dos novos estudantes universitários: no Brasil seu número explode nos anos anteriores, constituindo um fermento para a revolta — novas possibilidades existenciais para esses jovens trabalhadores se confrontando com um muro de oportunidades diminutas.

Essas lutas não são, evidentemente, um raio em céu azul; têm uma história e uma memória. Uma das faíscas é a luta pelo transporte, com os tradicionais quebra-quebra de bondes nas cidades brasileiras por conta do aumento do preço da passagem. Na primeira metade dos anos 2000 desencadeiam-se as revoltas do Buzu em Salvador e as duas da Catraca em Florianópolis. Daí nasce o Movimento Passe Livre (MPL), influenciado pela experiência zapatista e pelo movimento antiglobalização. Em 2011 e 2012, outras mobilizações precedem a explosão, como as greves selvagens dos barrageiros de Jirau e Santo Antônio e a ampla solidariedade com os Guarani e Kaiowá. Poucas semanas antes de estourarem nacionalmente, acontece a ocupação indígena do plenário do Congresso, o Bloco de Lutas em Porto Alegre e as lutas pelo transporte em Goiânia e Natal, além da organização dos Comitês Populares da Copa. Havia, portanto, todo um caldo mais subterrâneo — de várias formas não visível para as lentes convencionais — que estava se desenvolvendo naquele período.

O medo, em geral sentido pelas pessoas comuns (por conta de sua vulnerabilidade permanente, em vários sentidos), vive uma mutação com o acontecimento: os poderes constituídos passam a senti-lo. Os donos do poder e do dinheiro temeram naqueles dias e isso revela uma verdade da democracia, a de que a potência é dos de baixo que a cedem ao Estado, constituindo o contrato social. Esses momentos de erupção mostram de quem é a potência que não é exercida, e naquele momento passa a sê-lo. Daí vem a grande riqueza desses eventos, e não podemos esquecer dos loucos dias de junho (entre os dias 13 e 20 – entre a erupção e a diminuição das tarifas), quando tudo parecia fugir – e fugia – de qualquer controle, como, por exemplo, no dia 17, na tomada do teto do Congresso em Brasília e na Batalha da Alerj (Jourdan, 2018).

A detonação abre um novo ciclo político e a partir daí todos os atores e setores da sociedade brasileira são obrigados a se reposicionar — isso vale para a direita, a esquerda e o centro, as empresas, bancos e agronegócio, os movimentos indígenas e negros; todos são interpelados pelo evento de 2013. Para o bem ou para o mal, é o fim do momento que o país estava vivendo. Acabou a estabilidade, dizem os protestos, e esse término significa o aguçamento do conflito distributivo, por conta da dificuldade de continuar o processo de diminuição das desigualdades sem tocar em certos interesses materiais do andar de cima. A mágica do lulismo (de distribuir para os pobres sem tomar dos ricos) encontra aí seu limite. Um paradoxo desse em sua moderação e na ausência das “reformas estruturais” situa-se no fato de constituir uma espécie de reviravolta simbólica e concreta. Uma expansão das perspectivas de vida-luta, com uma série de políticas sociais (Bolsa Família, cotas e expansão da universidade pública, universalização da luz), econômicas (aumento do salário mínimo, créditos rural e popular), culturais (do “do-in antropológico” de Gil), mecanismos de participação e os novos vínculos com o mundo. Essas políticas catalisam e inclusive mudam o eleitorado petista até hoje, com o realinhamento eleitoral e conquista do apoio dos mais pobres, sobretudo no Nordeste.

Nas ruas brasileiras em 2013, podiam ser observadas demandas nitidamente provenientes do lado dos de baixo: contra a máfia das empresas de ônibus (serviços ruins e preços altos, sem transparência em relação aos custos e lucros), violências policiais (a outra faísca do dia 13 em São Paulo e os gritos de cadê o Amarildo? no Rio) e por melhorias profundas na educação e saúde públicas. Essas pautas se fortalecem depois das enormes manifestações. Tinham, contudo, sido deixadas de lado pela esquerda no governo (apesar da proposta de tarifa zero nos transportes ser, por exemplo, uma formulação de origem no PT, na gestão da Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo). Isso vale também para questões muito caras, por exemplo, aos movimentos negro, indígena e transfeminista, ignoradas em geral pela sociedade como um todo e em boa parte pela esquerda, como a guerra às drogas e a determinadas pessoas e coletividades. Revoltas, permanentes e ininterruptas, ganham maior visibilidade; assim como os aumentos nos transportes foram revogados em mais de cem cidades, era possível reivindicar e ganhar em outros campos.

As comportas se abrem, ou melhor, são abertas. O número de greves dispara segundo o Dieese: de menos de mil em 2012 para mais de duas mil em 2013 (o maior número desde o início da contagem nos anos 1980), abrangendo setores geralmente menos propensos às paralisações, como a indústria da alimentação, segurança ou limpeza urbana (SAG-DIEESE, 2015). Guilherme Boulos conta que o MTST não estava dando conta dos anseios de ocupação que tomaram as periferias paulistas naquelas semanas. No Rio, que continuará mobilizado por meses (durante a Jornada Mundial da Juventude, no Ocupa Cabral e na greve dos professores), após um ataque a um prédio da emissora, o jornal O Globo publica uma autocrítica acerca do apoio das Organizações Globo ao golpe civil-militar de 1964. A Aldeia Maracanã não vira um estacionamento e segue em resistência.

Junho mostra uma série de caminhos e abre espaço para novas práticas e alianças políticas: as greves dos garis no Rio e uma presença Guarani Mbya de muito mais contundência em São Paulo, numa multiplicação de atos de repercussão e inspiração desde então. Tingindo de vermelho o Monumento às Bandeiras, trancando a Rodovia dos Bandeirantes, ocupando por 24h o escritório da Presidência ou, em particular, retomando a antiga aldeia Kalipety, nessa tekoa onde hoje a cidade vive um dos seus mais belos experimentos cosmopolíticos, de cultivos agrícolas e políticos (Keese dos Santos, 2021).

·         reação

Vivíamos então um recorde de eleições presidenciais seguidas e um certo crescimento econômico com distribuição de renda. Para os integrantes do governo petista, tudo caminhava bem nos indicadores (com desemprego baixo e salários em alta), porém, como outros momentos históricos e contra determinadas expectativas conservadoras, melhores condições de vida geram mais lutas e não acomodamento. O que seria um tipo de coroação (pensando na Copa e Olimpíadas) de um projeto é posto a nu pelos protestos, explicitando as fortes fragilidades desse processo de mudanças: uma democracia de baixa escala (violência, participação limitada, repressão às manifestações, genocídio da juventude negra, etnocídio dos povos indígenas) com suas alianças contraditórias e o poder, nada democrático, de grandes empresas e bancos.

A aposta num Brasil poderoso conecta o apoio aos chamados campeões nacionais e à realização desses grandes eventos. Entre, de um lado, fomentar megaempresas com dinheiro dos bancos públicos e lhes dar projeção internacional e, por outro, financiar a acolhida de competições empresariais-esportivas, com remoções de comunidades, gentrificação das cidades e do esporte e investimentos duvidosos. E, também, seu fiasco, seja nas telecomunicações (recuperação judicial da empresa Oi), na concentração no mercado de carnes (JBS Friboi e seu primeiro lugar mundial como processadora de alimentos), seja na falência do Grupo X de Eike Batista, para a primeira, e a falta de legado substantivo para a população no que toca à segunda. Isso ganha outro relevo com a irrupção.

Por que esse caldo deu, por ora, mais em oportunidades perdidas? Primeiro, o polo da esquerda, que acabou tornando-se mais – digamos – comportada, conduzida pelo PT, mas que abrange outras organizações como a CUT, o MST, e os movimentos feminista e negro mais vinculados ao ciclo de lutas que se inicia no período final da ditadura.

O partido controla, em 2013, os executivos com dois dos orçamentos públicos mais importantes (da União e da maior cidade do país). Seus quadros à frente dessas administrações, contudo, se ativeram a perspectivas tecnocráticas. O prefeito Fernando Haddad se opôs a Junho, o que é curioso, pois sua campanha à Prefeitura no ano anterior falava de um tempo novo e este poderia se conectar com o que emergiu com mais contundência, mas o espírito não reconheceu o corpo encarnando nas ruas e o rejeitou. Dilma Rousseff, como presidente, propôs cinco pactos (sendo um deles o importante programa Mais Médicos e outro a “responsabilidade fiscal” – austeridade numa hora dessas?) e fez um gesto interessante (e talvez inédito nesse ciclo global), ao receber alguns manifestantes no Palácio. No entanto, como disseram militantes do MPL ao fim da reunião, não houve real conversa nem intenção de levar em conta o que tinha sido proposto nas ruas. Apesar da insatisfação crescente e alta, Dilma será até reeleita no ano seguinte, pois a oposição, representada no segundo turno por Aécio Neves, apresentou um projeto pré-Junho e até pré-lulismo.

No fundo, passada a tempestade mais imediata, o mundo petista “tocou a vida”. As consequências foram trágicas para o movimento, para o partido e para o país. O PT não soube ganhar; contribuiu decisivamente, mas não foi capaz de se despir da perspectiva estatal e de aprofundar as conquistas nem quando as ruas apontaram para isso e mudaram a correlação de forças. Mais: talvez tenha provocado um curto-circuito ao promover novas subjetividades e não ir mais a fundo, abrindo flanco para a reação.

O outro polo, de uma esquerda autônoma, incluindo dezenas de organizações e sensibilidades, infelizmente, tampouco deu conta das aberturas de Junho. O MPL, uma de suas expressões, incendiou o Brasil, pautou um tema fundamental para a classe trabalhadora, conseguiu sua inclusão como direito social na Constituição e, sobretudo, ajudou na eclosão de um novo imaginário político radical, mas não logrou articular a luta contra a catraca do transporte para as outras cercas que assolam a sociedade. Tampouco conseguiu aproveitar aquele momento para dialogar com a população de forma mais continuada, no sentido de construir novas conexões e fomentar organizações do cotidiano (mas essa talvez seja “cobrança” demasiada para um conjunto de pequenos coletivos de poucas dezenas de pessoas?).

Muitas pessoas, sobretudo após o dia 13 de junho, participam pela primeira vez em manifestações e mobilizam argumentos despolitizados sobre a corrupção, moralistas sobre a “violência” (o Jornal Nacional do dia 20 de junho impressiona pela quantidade de vezes em que os apresentadores insistem na suposta oposição entre manifestantes pacíficos majoritários e vândalos minoritários) e símbolos verde-e-amarelos capturáveis. O documentário Com vandalismo, do Coletivo Nigéria, retrata esse processo em Fortaleza, mas não é justamente o papel de quem quer transformar, convencer e ganhar mais gente? De alguma forma, as esquerdas se surpreendem com 2013 e essas brechas perdidas são trágicas e abrem espaços para a extrema-direita (lembremos de Walter Benjamin falando do fascismo como resultado de uma revolução fracassada).

Cinco anos depois, um candidato que celebra a máquina de morte (repudiada nas manifestações daquele ano) é eleito, num processo cheio de ilegalidades (golpe, prisão de Lula) e se colocando demagogicamente como alheio a um sistema político em convulsão e com baixa legitimidade. Na medida em que a política institucional não leva em conta o evento de 2013, sua crise se aguça e vamos nos aproximando do sinistro cenário. Junho, em seu questionamento dos representantes, abriu um novo ciclo político e as esquerdas (mais afins às plurais mensagens das ruas) não souberam aproveitar as novas fissuras: a estratégia aberta pela disrupção não encontrou a virtude tática das organizações. A fundação oportunista do Movimento Brasil Livre (MBL) copia a sonoridade do MPL, roubando, de alguma forma, uma sigla e um símbolo, assim como o Vem pra Rua. Ambos, no âmbito da (extrema) direita, tentam corresponder a esse anseio.

O ano de 2013 passa a ser – curiosamente, tanto para a extrema-direita quanto para boa parte da esquerda, ainda que com sinais invertidos – o marco inicial de uma onda conservadora. Não adianta, todavia, culpar a Globo e os conservadores (ou setores estadunidenses) que disputaram os rumos dos protestos, depois de terem apoiado sua repressão. As manifestações posteriores contra Dilma se iniciam logo após a contestação do resultado de 2014 pelo candidato derrotado e se fortificam nos dois anos seguintes, levando ao impeachment. Qualquer pessoa pode perceber, porém, que se trata de outro público, bem mais rico, velho e branco que o de 2013. Surpreendentemente, uma direita que não encarava a rua há décadas soube melhor se posicionar após a explosão, enquanto para as esquerdas, ou, ao menos para parte delas, 2013 talvez tenha ficado como um tipo de trauma.

·         repressão

Junho coloca o aparato implacável em xeque. O sumiço e assassinato de Amarildo Dias de Souza, pedreiro e morador da Rocinha, assume uma fortíssima repercussão. As lutas indígenas, como vimos, anunciam a rebelião, inclusive na batalha contra a hidrelétrica de Belo Monte. A costumeira repressão é, nesse momento, veementemente contestada: gritos pelo fim da Polícia Militar ecoam em toda parte.

O assassinato de Marielle Franco, nos marcos da intervenção militar no Rio, no dia 14 de março de 2018, pode ser lido como uma tentativa de encerrar aquilo que tinha se aberto, ao tirar a vida de um símbolo encarnado das novas subjetividades emergentes. Ao não tratar de forma mais contundente nossas chagas coloniais (genocídio dos jovens negros, etnocídio dos povos ameríndios e desigualdades imorais), essas pendências de justiça que perpassam todas as gerações desde o início do que chamamos Brasil, isso se volta contra o processo político-criativo que estava em curso.

Ao considerar esse aspecto decisivo, o desencontro entre o PT e os protestos se torna ainda mais agudo (o que se expressa com nitidez na lei antiterrorismo, aprovada no momento final do governo Dilma). Uma ampla reação se articula e o Estado brasileiro fortalece “todos os seus instrumentos para reprimir e silenciar vozes dissonantes” (Artigo 19, 2018). Mecanismos são aprimorados a partir da irrupção e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário convergem e colaboram na agenda estatal coercitiva, no contexto dos grandes eventos, ocupações secundaristas e crises política e econômica. Novas armas (mais sofisticadas e variadas) e táticas (como o envelopamento), filmagem e vigilância, infiltração (como no caso Balta Nunes, do Exército) e articulação federativa.

Tal conjunto evidencia ações concertadas para restringir o fundante direito ao protesto. O Governo Federal não freou tal processo, ao contrário. Não brecar essa máquina foi um tremendo erro. O Brasil figura nas primeiras posições nos dados de execuções de militantes (ao lado de México, Colômbia e Filipinas), numa certa política público-privada de assassinatos seletivos (sobretudo nas questões ligadas à terra) de pessoas-chave para termos um país (e um planeta) com dignidade para todes. Desmontar esse aparato repressivo deveria ser uma tarefa fundamental de qualquer governo que busque transformações. Mas quando o MPL pauta, na reunião no Palácio do Planalto com a presidenta no calor das manifestações, a questão da regulamentação das armas menos letais: silêncio.

·         alegria

Ouçamos as vozes, gritos e sussurros manifestantes. “Enfim se respira! Greve dos metalúrgicos” (Weil, 1996 [1936], p. 119). Assim Simone Weil inicia seu relato da experiência de uma onda de ocupações, durante o governo francês da Frente Popular em 1936.

A greve é uma alegria. A escritora, que foi operária na Renault, insiste nessa palavra, que chega a se repetir uma dúzia de vezes numa única página. Alegria logo ao entrar na fábrica, permitida por um sorridente operário; ao estar com todos juntos, comendo, conversando, quando antes havia solidão de cada um enfurnado em sua máquina. Alegria ao ouvir música, cantos e risos em vez do estrondo impiedoso dos equipamentos; agora batem no ritmo humano (da respiração, das batidas do coração) e não na cadência do cronômetro. Alegria de passar na frente dos chefes de cabeça erguida, lembrado Espinosa-Deleuze, para quem “a tristeza serve à tirania e a opressão” e gera impotência – ao contrário da alegria, que ativa (Deleuze, 1981, p. 76).

Tal afeto é onipresente nos relatos das pessoas em movimento. Foi o que sucedeu no Egito no primeiro mês de 2011. Tudo se inverte na praça Tahrir (e no país): ali passam a ser garantidos os serviços que o eram antes, supostamente, nos prédios que a circundam; o mundo de ponta-cabeça, no qual, “em vez de serem vigiados, cidadãos escrutinam o regime” (Weizman, Fischer e Moafi, 2015, p. 44), resistindo aos ataques a camelo de partidários e mercenários de Mubarak e às bombas de gás e tiros das forças repressivas. Uma alegria de estar juntes, cultivando e criando – um participante vai dizer que nunca em sua vida sentiu tanto amor quanto na praça, sendo os momentos mais felizes de sua vida (Ghonim, 2012, p. 264 e 290). Novos seres surgem nesses dias, puxados pelos jovens, mas com pessoas de todas as condições, religiões e idades; um milhão vivendo outras existências, diz outra testemunha (El Aswany, 2011, p. 17-19).

As limitações dessas explosões não são poucas (efemeridade, inconstância, efetividade) e as dificuldades de inventar, concretamente, novas comunidades políticas, suas infraestruturas afetivas e regras comuns, na contracorrente total da máquina estado-capital-colonial e seus valores individualistas, são imensas. Além disso, em tantas partes onde houve erupção, a contrarrevolução está levando a melhor. No emblemático caso egípcio, dois presidentes são derrubados, mas chega um terceiro, das mesmas Forças Armadas do primeiro, também a principal força política e econômica do país. Massacres seguem ocorrendo. A inércia, no entanto, foi quebrada e “quando dizemos ‘a revolução fracassou’ estamos deixando de lado algo fundamental” (El-Tamami, 2016), ainda que insuficiente, como a explosão de humor e imaginação dos cartazes feitos a mão, do colorido dos murais e sobretudo das relações ali construídas e das possibilidades, apostando numa mudança nas pessoas-coletividades que dará frutos.

O que clama 2013, processo brasileiro de um fenômeno global, uma década depois? Que demandas impossíveis não o são, pois movimentos podem parar e tomar a cidade, interpelando a sociedade e arrancando conquistas do poder. A tarifa de um serviço essencial foi diminuída, foi pautada a prioridade do transporte público e se discutiu a utopia da tarifa zero (concretizada em algumas cidades e em número maior nos dias eleitorais nos anos seguintes), além de ter sido colocada em xeque a polícia (por pouco tempo). E é fundamental essa abertura para encarar os prementes desafios de termos uma real democracia: a energia daqueles dias é inspiradora para enfrentar nossas urgências absolutas: desigualdade social e racial obscena, assassinatos recorrentes, encarceramento em massa, má alimentação e crise ecológica.

E é aí que se mostra mais um paradoxo de 2013. Embora predomine na esquerda uma avaliação negativa dos protestos, seria imaginável sem eles a presença de figuras (e suas pautas históricas) no ministério do terceiro governo Lula como Sonia Guajajara, Silvio Almeida, Anielle Franco ou a volta de Marina Silva? A nova leva de deputadas indígenas, negras e trans (Célia Xakriabá, Erika Hilton e tantas) ou o milhão de votos de Boulos? As delicadezas e dificuldades se acentuam, igualmente, como um amigo (André Luzzi) me lembrou outro dia, se pensarmos que dois atores governamentais importantes de Junho de 2013 em São Paulo são agora vice-presidente e ministro da Fazenda desse mesmo governo…

2013 merecia e merece desabrochar, de modo a “não atropelar o tempo próprio da imaginação criadora, para evitar o risco de interromper a germinação de um mundo”. James Baldwin, em outro contexto, fala do perigo de não nos contaminarmos com o acontecimento, pois “toda tentativa que nós faríamos para nos opor a essas explosões de energia levaria a assinar nossa sentença de morte” (Baldwin, 1963, p. 99). Poderia estar falando do Brasil recente? Do desperdício de uma potência coletiva dessas revoltas que “devotam o poder à impotência” (Comitê Invisível, 2016 [2014], p. 89)? O decreto de derrota, por cima, mencionado no início, é um tanto impotente e, além disso, perde uma vertente épica da luta. Esta, numa perspectiva do protesto, não é uma opção, mas o âmago da dignidade frente à guerra ininterrupta ou, segundo uma longa linhagem, tal como formulado por zapatistas, ao anunciarem a viagem recente à Europa: “iremos a dizer ao povo da Espanha […] que não nos conquistaram” (CCRI-EZLN, 2021, p. 282).

A revolta, concebe Camus, é “uma das dimensões essenciais” da existência, “nossa realidade histórica”. Cumpre, em nossa “provação cotidiana”, o mesmo “papel que o ‘cogito’ no âmbito do pensamento: é sua primeira evidência […]. Eu me revolto, logo somos”. A história é, assim, apreendida como “a soma de suas revoltas sucessivas”. Política e invenção: sua “lógica profunda não é a da destruição”, mas a da criação. Em suas razões de ser, a sublevação manifesta uma “louca generosidade”, que dá “sua força de amor e recusa […] da injustiça. Sua honra é de não calcular nada”. Constitui, para o escritor franco-argelino, “o movimento mesmo da vida e que não a podemos negar sem renunciar a viver. Seu grito mais puro, a cada vez, faz um ser se levantar. Ela é então amor e fecundidade ou não é nada” (Camus, 1951, p. 37-38; 141; 356; 379-80). A luta existencial, vida-luta.

O protesto é.

 

Fonte: Por Jean Tible, em Outras Palavras

 

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